Por: Rangel Alves da Costa*
MANIFESTO DA NOITE
Em razão dos últimos ataques infundados, com manifestações injuriosas, caluniosas e difamatórias, que a inocente noite vem recebendo do dia, nós, noctívagos, amantes do clarão da lua e das ruas com serenatas, dos negrumes misteriosos e das coisas escondidas que a escuridão permite, nos sentimos no dever de externar nosso incondicional apoio.
Por isso mesmo é que nós, munidos de incomparável espírito de liberdade noturna, compartilhando dessa necessidade intimista, exclusiva e misteriosa que a noite possui para existir, é que elaboramos o manifesto a seguir, que muito mais que uma carta de princípios, se constitui num estridente uivo de lobo clamando pela sua liberdade de ser em cima de sua montanha escura. E assim:
Que o dia seja o seu tempo, viva suas horas, seja o seu itinerário, seja o seu dia enfim, e deixe que a noite surja e aconteça como sempre fez desde o primeiro dia da Criação: o período noturno que se estende após o pôr do sol, adentra a madrugada e vai até os portais do alvorecer.
Que o dia viva o seu dia a dia e a noite o seu anoitecer, apenas isso. A noite silenciosa e quieta, agindo somente pela questionada lucidez dos seres que a habitam, jamais se intrometeu na vida do dia e sequer abriu sua boca, na boca da noite, para falar daquilo que todo mundo tão claramente vê e sente.
A noite bem poderia falar da violência do dia, das pessoas que fogem apressadas aos olhos de tantos inimigos em todo lugar; das horas que vão passando sem ninguém se reconhecer; do clarão do sol que torna as pessoas malcheirosas, nervosas e doentias. E durante todo o dia desejam que o tempo passe mais depressa para logo chegar a noite e deitar nos seus braços.
Talvez seja isso com que faz com que o dia tenha tanto ódio da noite, crie tanta inimizade a ponto de agora querer desonrá-la totalmente. Se o dia é estafante e a escuridão é amante, a noite não tem nada a ver com isso; se o dia comporta poucos segredos e tudo é revelado demais, a noite não tem culpa por acolher os escondidos; se o dia não tem compromisso com ninguém nem com nada, certamente que a noite não tem culpa de docemente envolver a todos.
E vem o dia cheio de arrogância e aleivosias dizendo que a noite é imoral, pecaminosa, luxuriosa. Na mais pura maldade, afirma ainda que a noite esconde todo o mal, que tudo de ruim acontece nas suas brenhas, que nenhuma confiança se deve ter em ninguém após o tempo escurecer.
Covardemente ainda diz que a noite, diferente de si que é dia, não tem a coragem de mostrar completamente a face para os outros, se esconde no seu breu, age nos escondidos e sempre em nome da volúpia inocente e do pecado corporal. Aponta que a noite é culpada pelos adultérios, pelas traições sexuais, pelas impurezas da alma, pela devassidão, que sob o seu manto estão Sodoma e Gomorra ainda em atividade.
Engana-se, ou tenta enganar os incautos, o dia com tantas e levianas acusações. Ora, a noite apenas chega, abre suas portas e dá plena liberdade aos seus. E sim as pessoas fogem do dia para se revelar somente na escuridão, então é porque as sua cor misteriosa e instigante chama para a ação. E se a ação é em busca do encontro, do prazer, da diversão, do namoro e até da luxúria, eis um fato que somente cada um pode revelar tal aptidão. Se as pessoas gostam da noite, amam a noite, procuram viver em intensamente todos os momentos da noite, certamente que esse período de tempo não é tão desprezível assim como o dia quer deixar transparecer. Porque sabe de sua incapacidade, não cita que é na noite que o amor se faz mais forte e verdadeiro, que os corpos se conquistam, que os suores e gemidos se manifestam como prazer. Ora, os filhos são filhos da noite.
Ademais, que saiba o dia, coisas existem que somente a noite é capaz de oferecer. O sono e o sonho verdadeiros, as lembranças e as recordações volumosas, a embriaguez apaixonada, a doce música que chega com pouca luz. No seu silêncio ou no uivo cortante do lobo, nos seus olhos escondidos ou no seu passo devagar, a noite sempre será o grito de tudo que todo mundo quer dar.
Na noite há uma rua e uma lua, uma esquina adiante, um caminho que ninguém sabe ao certo onde vai chegar. Por mais que seja perigoso seguir, ainda assim ninguém desiste de experimentar esse atraente desconhecido que somente a noite permite. E depois dorme em paz, mas não para viver o dia seguinte. O que mais se deseja é que o sino da igreja anuncie que já passou das
Poeta e cronista
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