Por Antonio Corrêa Sobrinho
AMIGOS, leiam
a deliciosa crônica do jornalista Guerra de Holanda, publicada no “Diário de
Pernambuco” de 26 de março de 1948. Nela, a revelação de uma faceta do grande
escritor brasileiro, o paraibano Zé Lins do Rego, e como este percebia os
cangaceiros Antônio Silvino e Virgulino Lampião.
DETALHE PARA A
COMPOSIÇÃO DE UM RETRATO
No almoço que
o advogado Brito Alves ofereceu, em sua residência, ao romancista dos canaviais
nordestinos, podemos perceber um pouco mais de perto, a alma profundamente
mascarada de José Lins do Rego. Durante quase todo tempo da refeição, o autor
de “Pedra Bonita” quedou silencioso, como se estivesse ali contrariado, ou como
se sua glutonaria houvesse paralisado o sentimento da cordialidade. Creio
mesmo, que do aperitivo ao charuto, tempo ocupado extensamente por um cardápio
delicioso, só ouvimos do escritor das bagaceiras, resmungos de “obrigado” ou
“basta’. As perfumadas iguarias seduziam com tanta violência os sentidos de
Lins do Rego, que sua inteligência estava ausente.
Naquele momento, o homenageado era apenas um homem que comia e como se fosse
também um condenado a ouvir a louvação de seus companheiros de mesa. O
romancista que tanto e tão bem escreve, parecia estar de férias, ou ter ficado
à porta da Livraria José Olímpio. Mas que engano! Como diria ele próprio – “que
engano da peste!”
O advogado Brito Alves, incidentalmente, falou no nome do cangaceiro Antônio
Silvino, o que foi o bastante para que a legenda desse nome despertasse no
romancista a vontade de falar. O menino de engenho, que ele não deixa de ser
nunca, animou-se de uma poderosa força de expressão; as recordações da infância
juntaram-se nele e explodiram em anedotas e fatos sobre o cangaço e outros
caracteres de sua terra.
Compreendemos, imediatamente, que é necessário, antes de tudo, um clima, uma
geografia de umbuzeiros e mandacarus, um ambiente de chapéus de couro e de
rifles, uma beira de rio para José Lins falar. Ele é um matuto e um matuto só
sabe mesmo contar as cousas de sua terra, as histórias de amor que são quentes
como o mormaço, as emboscadas dos covardes que se escondem no tronco da baraúna
para matar pelas costas, homens da têmpera desse capitão Vitorino Carneiro da
Cunha, Vitorioso Papa-Rabo.
Por isso, “Eurídice” foi uma espécie de filho natural, um romance que ficou
isolado de sua obra. Rio de janeiro, quando tudo de José Lins do Rego só presta
quando vem do sertão, da zona da mata, do banguê. E essa viagem que ele acaba
de fazer ao Nordeste foi uma reconciliação com a terra e com o homem, um pedido
de perdão a todos nós por ter escrito “Eurídice”, uma promessa de lealdade
telúrica com o aparecimento, em breve, de um novo romance que conte o ciclo da
cana-de-açúcar e que desfaça a má impressão que nos causou esse seu ato ilícito
de amor com a vida carioca.
Isso porque, mais uma vez, na residência do advogado Brito Alves, tivemos a
certeza de que o romancista de “Moleque Ricardo” é outro, quando se refere aos
problemas de sua gente. Foi um prazer ouvi-lo recordar, principalmente os
feitos dos bandidos que ele ama como elemento de composição de nossa árvore
genealógica. Do bandido que para ele é mais um sertanejo de vergonha que se
vinga em obediência a um código de honra, do que mesmo uma excrecência social.
Do bandido de moral primitiva, por isso, violento, por isso, sincero, e muitas
vezes, iluminado por um rasgo de estranha e comovedora nobreza.
Lampião, que era valente e não tinha a covardia na sua norma de conduta,
respeitava por exemplo a vida e as propriedades dos vigários que encontrava
pelo caminho. Respeito esse, aliás, que foi surpreendido também em outros
bandoleiros, como Antônio Silvino. Tanto é assim que o criminalista Brito Alves
nos citou o nome de um sacerdote muito conhecido no Recife, que mandava
frequentemente “peras e uvas” para esse profissional do crime, durante o tempo
em que esteve preso em nossa Casa de Detenção, porque Antônio Silvino, em suas
“expedições punitivas”, respeitava, todas as vezes, os feudos do ilustre
reverendo.
Hoje, porém, o cangaceiro está perdendo a sua fama, o seu heroísmo; está se
tornando um elemento vulgar. E José Lins do Rego observa esse fato, com
indisfarçável melancolia, para logo depois, imediatamente, explicá-lo com uma
irreverência que provoca uma gargalhada de todos: “O sertão é, hoje, uma terra
de filhos de Maria.”
É assim na intimidade esse escritor brilhante, essa imaginação sempre grávida,
essa compleição nervosa que alterna bruscamente os sentimentos mais
contraditórios do coração humano.
O jovem escritor Edson Nery me disse certo dia, que por mais de uma vez,
encontrara o autor de “Doidinho”, perdido nas ruas do Rio, aflito, louco de
aflição, mostrando o pulso aos amigos, pedindo-lhes que verificassem se ia
morrer, em um abatimento que fazia pena. E no entanto, com qualquer palavra
animadora de um amigo, ele se transformava de repente, passava desse estado de
agonia nervosa, para o gosto de viver, de ser elogiado, o elogio que ele tanto
ama, como já nos declarou para o “Diário de Pernambuco”: “eu gosto de elogios
como os meninos gostam de caramelos.”
É assim na intimidade, o romancista José Lins do Rego: um menino de engenho que
as seduções da metrópole não conseguiram matar.
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