*Rangel Alves
da Costa
Segundo Luiz
Gonzaga, Padre Vieira falou que o jumento é nosso irmão. Logicamente que numa
alusão ao esforço do animal para ajudar o homem, ao seu companheirismo nos mais
difíceis trabalhos do dia a dia, à sua amistosa disponibilidade para carregar
no lombo o que o sujeito não suportaria levar adiante. Com efeito, há no
jumento um poder essencial de contribuição ao ser humano. Tudo isso, porém,
muito mais em tempos passados. E atualmente será que o jumento continua sendo
reconhecido como tal, como amigo e irmão do homem?
Algumas
explicações antes de seguir adiante. Muita gente confunde o padre Vieira citado
por Luiz Gonzaga na música “O jumento é nosso irmão”, com o Antônio Vieira,
padre jesuíta do século XVII. Na verdade, o religioso da Companhia de Jesus se
preocupou mais com a escrita de sermões do que com a vida desse animal
possivelmente introduzido no Brasil por Martin Afonso de Souza, pelos idos de
1534. Já o outro Vieira, de nome Antônio Batista Vieira, foi um sacerdote,
político e escritor cearense, que viveu até 2003. É de sua autoria o livro “O
Jumento, nosso irmão”, de 1964.
Nesta obra, o
Padre Vieira faz uma apaixonada defesa do jumento e, por extensão, do meio
ambiente e da proteção animal. Numa época em que a conscientização ecológica e
a luta em defesa dos animais ainda eram questões de poucos abnegados, eis que
surge o sacerdote para denunciar os abusos contra os indefesos asininos,
objetos que eram de abates em frigoríficos clandestinos e maus-tratos por parte
de criadores e de parte da população. Observa-se, assim, que antes mesmo do
limiar dos anos 60 já havia truculência contra os animais, e sem a existência
de políticas ou movimentos em defesa dos seus direitos. Apenas vozes como a do
Padre Vieira.
Mas a voz de
Vieira passou a ecoar mais fortemente e a ser devidamente reconhecida quando em
1968 Luiz Gonzaga e José Clementino compuseram “Apologia ao jumento”, mais
conhecida como “O jumento é nosso irmão”, inspirada exatamente naquela obra.
Por isso mesmo que a letra começa reverenciando o padre defensor dos animais:
“É verdade, meu senhor, essa história do sertão, Padre Vieira falou que o
jumento é nosso irmão...”.
E Gonzaga
prossegue justificando a importância do jumento na vida do nordestino: “O
jumento é nosso irmão, quer queira, quer não. O jumento sempre foi o maior
desenvolvimentista do sertão. Ajudou o homem na vida diária, ajudou o Brasil a
se desenvolver. Arrastou lenha, madeira, pedra, cal, cimento, tijolo, telha.
Fez açude, estrada de rodagem, carregou água pra casa do homem. Fez a feira e
serviu de montaria. O jumento é nosso irmão...”.
Em certo
momento, mesmo reconhecendo a petulância e intransigência do animal em certas
ocasiões, quando cisma de não atender nem a chicotadas, Gonzaga afirma mais
adiante: “Mas eu gosto dele porque ele é servidorzinho que é danado. Animal
sagrado, jumento meu irmão eu reconheço teu valor. Tu és um patriota, tu és um
grande brasileiro. Eu tô aqui jumento, pra reconhecer o teu valor meu irmão.
Agora meu patriota, em nome do meu sertão, acompanha seu vigário nesta eterna
gratidão. Aceita nossa homenagem, o jumento é nosso irmão...”.
E já naquela
época falava na ingratidão do homem para com o animal, retribuindo-lhe o
serviço duro com maus-tratos. “E o homem, em retribuição o que, que lhe dar?
Castigo, pancada, pau nas pernas, pau no lombo, pau no pescoço, pau na cara,
nas orelhas...”, é o que diz a letra, refletindo o momento mas também
pressagiando o que se tornaria em verdadeira prática desumana e cruel. E assim
porque não só o jumento continuou sendo vitimado pelas nefastas ações humanas,
mas todas as espécies de animais, domesticados ou das florestas. Contudo, o que
vem acontecendo com o jumento é um tipo de violência diferenciada, vez que
caracterizada pela ingratidão e abandono.
A verdade é
que a chegada dos modismos ao mundo nordestino, principalmente nas lonjuras
sertanejas, uma profunda transformação passou a ocorrer nos modos de vida e nos
costumes da população. As estradas se alargaram, porém não mais para a passagem
segura dos carros-de-boi ou dos animais de montaria, e sim para os veículos e
motocicletas. As motos se tornaram verdadeira febre nos rincões matutos e
fizeram com que o homem desprezasse de vez outros meios de montaria e
transporte.
Ao trocar o
lombo do jumento pela motocicleta, aos poucos o homem foi relegando seu antigo
irmão e companheiro ao abandono. E o que se tem hoje em dia é uma verdadeira
leva de animais ao descaso pelos pastos ressequidos, esquecidos no alimento e
no gole d’água, sem quaisquer tipos de cuidados. Quando não abandonados pelos
cercados, simplesmente deixados pelas beiras de pistas, provocando problemas
nas rodovias e tendentes a matar ou morrer em acidentes.
Padre Vieira
certamente ficaria entristecido com a situação de agora do irmão jumento. Em
completo abandono, cada vez mais esquecido, nem tem mais força para relinchar
quando a moto passa jogando poeira em seus olhos. E o homem sequer dá
importância quando os urubus se lançam sobre suas ossadas.
Escritor
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