Por Benedito Vasconcelos Mendes
A Fazenda Aracati, de propriedade do meu avô paterno, José Cândido Mendes,
localizada no Semiárido cearense, nas cercanias do distrito sobralense de
Caracará, a 60 quilômetros da cidade de Sobral, sofreu, em 1958, uma das piores
secas de todos os tempos. A severa e catastrófica seca de 1958 teve duração de
apenas um ano, que na prática correspondeu a 20 meses totalmente sem chuvas,
começando em julho de 1957 e se prolongando até março de 1959. Seus efeitos
foram devastadores, matando de fome e sede quase todo o rebanho bovino e grande
parte das cabras e ovelhas da Fazenda Aracati. Até os bichos de pena (galinhas
caipiras, capotes, patos, marrecas nativas e perus) escaparam muito magros
desta terrível seca, pois nem milho para comprar se conseguia, já que os grãos
produzidos em outras regiões do Brasil não eram trazidos para o Nordeste, por
falta de caminhões e de condições de tráfego das poeirentas estradas
carroçáveis.
Naquela época não se preparava e guardava silagem nem feno e nem tão pouco se
plantava capim irrigado. A imprevidência era total. As bicheiras eram curadas
com creolina e óleo queimado (óleo lubrificante usado). As pontas dos
chifres eram aparadas com serrote. O vermífugo dado aos caprinos, ovinos e
bovinos era a batata de purga e o remédio para empanzinamento era o vinagre.
Comida concentrada (industrializada) para o gado só tinha o resíduo (torta de
algodão mocó), que era escassa e cara, o que a tornava de uso inviável para a
grande quantidade de gado existente na Fazenda Aracati. Um tipo de alimento
volumoso industrializado, mais barato do que a torta, que existia no comércio
de Sobral era o piolho de algodão (resto de linter e de casca das sementes de
algodão herbáceo que era coletado no descaroçador de algodão). O milho e o
feijão de uso na fazenda eram armazenados em tambores de ferro de 200 litros
(tambores de transportar combustíveis). Às vezes, aparecia para venda, umas
batatas de cipó, mais fina e maior do que as raízes de mandioca, de casca preta
e miolo branco, trazidas das praias das proximidades das cidades de Camocim e
Acaraú. Dois tipos de alimentos volumosos, de péssima palatabilidade e de baixa
qualidade nutritiva, levados em caminhões para oferecer ao gado era a palha de
carnaúba e a casca do fruto da oiticica (subproduto da indústria de óleo de
oiticica).
O cavalo “Estrela” do meu avô e a
égua “Lua” da minha avó eram milhados diariamente, pela manhã e à tarde, com
uma mancheia de milho colocada na mochila de couro. O cavalo Estrela, utilizado
para derrubar boi brabo no mato garranchento e espinhento, quase não era mais
usado, pois o tipo de manejo alimentar do rebanho, dando comida na boca e a
fraqueza orgânica das reses, tornava o gado dócil e submisso. O mais bonito e
famoso touro da fazenda, de nome “Dione”, azebuado, de porte avantajado, com
peso aproximado de 40 arrobas, de pescoço e corpo volumosos, de chifres
grossos, grandes e arqueados, de pelagem acinzentada, com peito e castanha
carnudos e quase pretos, de barbela e bainha extensas, foi salvo da seca pelos
cuidados especiais dispensados pelo meu avô. À medida que os meses foram se
passando e a seca se tornando mais severa, foi ficando muito triste assistir a
morrinha do gado, que amanhecia urrando de fome, enquanto os agregados saiam
desesperados, com foice e machado no ombro, rumo aos poucos Juazeiros,
canafístulas, macambiras, xique-xiques e mandacarus, para derrubar para o gado
comer.
As cactáceas (mandacaru e xique-xique) e a bromeliácea (macambira) eram
arrancadas e levadas, em lombos de burros e de jumentos, para o terreiro da
casa. Lá, os espinhos eram queimados em fogueiras improvisadas e os cladódios
das cactáceas fatiados, para alimentar o gado. Depois da queima das folhas
espinhentas das macambiras, as cabeças (caule subterrâneo desta planta,
riquíssimo em amido) eram cortadas em pequenos pedaços e ofertadas ao gado.
Estes alimentos eram jogados no chão, pois não havia disponibilidade de cochos
para o numeroso rebanho.
O
extenso pátio da fazenda era sombreado por numerosos Juazeiros e grande número
de árvores de oiticica. O sofrimento causado pela fome e a agonia da morte dos
animais eram triste de se ver, principalmente daqueles que, de tão fracos, não
conseguiam mais ficar de pé. A vaca “caída”, ou seja, aquela rês que não tinha
mais força para se levantar era colocada “nas correias”, que era uma armação de
quatro estacas fincadas no chão, para sustentar as tiras de couro cru, forradas
com surrões de folhas de carnaubeira, que mantinham a vaca em pé.
As reses caídas tinham o privilégio de se alimentar de rama verde, por ser mais
nutritiva (folhas de juazeiro ou de canafístula) e os outros animais, que ainda
podiam caminhar, alimentavam-se de cabeças de macambira ou de cladódios de
mandacaru e de xique-xique. Os animais que caiam dificilmente escapavam, de
modo que, no final da seca, do numeroso plantel de aproximadamente 1.000 reses
salvaram-se pouco mais de uma centena de bovinos. Uma das cenas chocantes
daquela seca, que ficou gravada na minha mente, foi a enorme quantidade de
carcaças de bovinos, espalhadas no pátio da fazenda, após a seca.
Os animais se concentravam no terreiro da casa grande, onde eram fornecidos as
ramas das forrageiras arbóreas e os cladódios dos cactos. Eles não saiam para o
campo, pois o chão estava limpo, sem pasto. Só se alimentavam daquilo que os
vaqueiros ofereciam. No pátio, as reses extremamente desnutridas caiam, eram
colocadas nas redes (correias), recebiam a pouca e grosseira ração de plantas
nativas e, com o passar do tempo, a debilidade aumentava e depois morriam.
A alimentação da família do meu avô, que antes era farta e baseada na carne de
boi e no leite de vaca, como coalhada, leite cozido, nata, manteiga de garrafa
e queijo de coalho, foi substituída por produtos lácteos derivados do leite de
cabra. O caprino, por produzir leite, ser de menor porte e mais resistente à
seca, foi escolhido para fornecer a alimentação básica da família. O leite de
cabra era também fornecido para as famílias dos agregados (trabalhadores
meeiros que moravam na propriedade). Com o passar do tempo, as reservas de
pastagens nativas da fazenda foram minguando, de modo que, ao chegar no mês de
outubro de 1958, o estoque de alimentos ficou muito reduzido e o gado começou a
morrer.
Outubro foi o mês da desesperança, o mês que meu avô se convenceu que não
restava mais nada a fazer, a não ser esperar a morte de todo o rebanho. Ele não
cruzou os braços, continuou na luta inglória de alimentar o gado, mas com o
único objetivo de diminuir o terrível sofrimento das reses, provocado pela fome
e pela sede. Meu avô se condoía com o urro lamurioso e triste do gado com fome
e, muitas vezes, ia às lágrimas. Foi interessante observar que uma seca
desorganiza o calendário das tarefas que são realizadas em uma fazenda de criar
gado bovino, pois os eventos anuais de apartação dos garrotes das mães, da
castração dos novilhos e da ferra do rebanho não são realizados nos anos de
seca catastrófica.
Na casa grande, minha avó não mais fazia os grandes e saborosos queijos de
coalho, coalhada e manteiga da terra com leite de vaca. Naquele ano de seca, só
se usava leite de cabra. Às seis horas da tarde, depois da labuta exaustiva de
alimentar o rebanho, meu avô tirava o chapéu e o gibão de couro, chamava minha
avó e meus tios e os agregados da fazenda com suas famílias para a sala da
frente do casarão da fazenda, onde situava-se o santuário (oratório), para
rezar, suplicando a Deus força e entusiasmo para continuar o estafante trabalho
de tentar salvar o gado. Pedia a São José que mandasse chuva, o quanto antes,
para fazer rama (brotos e folhas novas) e salvar o rebanho. Pedia a Deus
esperança e ânimo, para não esmorecer diante da brutal dificuldade.
No espaçoso alpendre da frente da casa grande da Fazenda Aracati, havia três
tornos de armar rede ocupados com os arreios e cela do cavalo de meu avô e com
o cilhão e arreios da égua de minha avó passear. Um dos tornos era usado para
pendurar o chapéu, a véstia (gibão, perneira, guarda-peito, luvas e guarda-pés)
e o chicote de pimba de boi usados pelo meu avô. A natureza tornara-se ingrata,
a caatinga caducifólia, totalmente desfolhada e seca, exibindo aqui e ali
poucas plantas perenifólias, como alguns Juazeiros ou umas poucas canafístulas,
porém podados pelos vaqueiros, exibindo pouquíssimas folhas verdes; o chão
desnudo, sem nenhuma cobertura de vegetação herbácea verde ou seca; o Rio dos
Patos (que corta a fazenda) e as lagoas da propriedade, totalmente secos; a
cacimba cavada na areia do leito do rio, com pouca água; o céu azul, sem
nenhuma nuvem para abrandar o calor estafante, provocado pelo sol
incandescente.
No período da seca, os animais nativos e os domésticos não se reproduziram
devido à limitação de alimentos. A natureza viva parecia morrer e as rochas dos
serrotes e os solos ressequidos, sem vegetação, refletiam, com muita força, a
luz e o calor do sol brilhante. A tristeza dos animais magros e famintos
contagiava os moradores da fazenda. A desgraça estava generalizada. Tudo estava
reduzido a um fio de esperança de se ter um bom inverno (período chuvoso) no
próximo ano. O sofrimento, que alterou tudo na rotina da propriedade, só não
diminuiu a fé em Deus dos habitantes da Fazenda Aracati, pois quanto mais
diminuía o rebanho, mais se aumentava as rezas. Depois desta terrível seca,
veio a fartura, a bonança e a multiplicação do rebanho por seguidos anos
chuvosos até a próxima seca de 1970.
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