Num dia
qualquer na cadeia, Volta Seca estava em sua cela e recebe o comunicado que uma
freira vinha vê-lo. Ele não era dos mais religiosos, aliás, antes mesmo de se
tornar cangaceiro de Lampião, Antônio não era de ir à igreja, mas ele lembra
que assistiu uma missa em Poço Redondo, era dia 19 de abril de 1929. O Padre
Artur Passos estava como sempre celebrando a missa da sexta-feira e do nada as
pessoas se alvoroçaram e Lampião acompanhado de mais dez cabras invadem a
capela. O padre engoliu seco e continuou a missa, pedindo para que as pessoas
continuassem no seus lugares. Os
cangaceiros se sentaram, inclusive Volta Seca. Quando a missa acabou, o padre
foi conversar com o chefe Virgulino e este deu um bilhete com o nome de todos,
menos o de Fortaleza, não se sabe porquê.
Volta Seca que era bem enturmado na cadeia ficou curioso e perguntou o nome da
religiosa e porque ela queria ver ele. Disseram a ele que era uma boa mulher
que ajudava os pobres e que em maio do ano que eles estavam, 1939 ela para
abrigar doentes que recolhia nas ruas, invadiu cinco casas na Ilha do Rato, em
Salvador. Volta Seca gostou dela por ser ousada e aceitou a visita. Era o mesmo
ano de 39, setembro, ele já havia comido sete anos de cadeia, parecia estar
acostumado com a vida lá dentro.
Chegou o dia marcado e a freira fui por volta das 9h. Era jovem ainda, 24 anos,
bonita, branca e baixinha. As pessoas do Presídio do Engenho da Conceição já a
conhecia de nome. Volta Seca percebeu de longe que ela trazia consigo uma
sanfona e um sorriso nos lábios. Ela foi até o pátio principal, sentou e
começou a tocar para os presos que estavam ali. Volta Seca estava a uma grande
distância mas ele sabia que era ela. O som começou a ecoar os becos recheados
de galanteadores, malfeitores e ladrões. A música atraía todos para perto dela.
Alguns soldados ficavam perto, mas eles não ofereciam perigo, não mais. Volta
Seca também foi atraído pela música, assim como os ratos do conto “O Flautista
de Hamelin” dos irmãos Grimm. Ele foi indo na direção da freira, devagar como
sempre e percebeu que outros ex-cangaceiros também estavam sentados lá ouvindo
música.
- Venha pra cá, eu não mordo, venha me ouvir tocar. Antônio dos Santos seu nome
não é?
Os outros presos olharam admirados para o acontecimento e a partir deste
dia Volta Seca passou a ser mais respeitado que nunca. Mas, a princípio ele
ficou calado. Não se sabia se vergonha de falar com ela por ter outras pessoas
ou se era seu jeito de receber o novo. Mas, a música continuou. Depois de umas
três ou quatro canções, Volta Seca fala pela primeira vez.
- Eu já toquei
realejo. Sei umas modinhas.
- Onde você aprendeu?
- Nos tempos de cangaço, mas num gosto de falar disso não, vá continui tocano
prá nóis.
Irmã Dulce não interrogava ninguém, mas passava mensagens de paz aos que
estavam sentados no chão e em tamboretes improvisados com alguns baldes que
estivera sendo usados para lavar o ambiente para a chegada da “Santa”. Ela
estava lá, sem nenhuma vaidade, uma aura clara de paz. Volta Seca havia deixado
pra trás o cangaço, mas naquele instante ele foi rebatizado através da música.
- Se aproxime mais, meu filho, deixa eu ver você de perto. Você é ainda uma
criança, que Deus te abençoe e te faça um homem bom quando sair deste lugar.
Mas, antes mesmo de sair, continue sendo bom.
- Dona Dulce, eu conheci outra Dulce que foi companheira de outro cangaceiro
apelidado de Criança.
- Mas, meu filhinho, esta vida ficou para trás hoje você é Antônio dos Santos,
dois nomes abençoados: “Antônio” do meu padroeiro “Santo Antônio” e “Santos” de
todos os outros santos que restam.
Os presos caíram na risada, até os carcereiros. Não parecia que naquele meio
eram pessoas que haviam cometido as maiores atrocidades, o respeito era
incrível.
- Dona beata, eu não me acostumo com este lugar, mas eu prometo a senhora que
mais nunca vô pegá numa arma em minha vida. Quero aprendê um ofíço aqui dento e
saí cum dinheiro. Todo dinheiro que eu consiguí aqui vô dá prus pobre como eu,
é só eu termina de cumpri minha pena.
- Que gesto bonito, Antônio, só por isso vou tocar uma música pra você que
talvez a reconheça.
-
Mais ôxi, como tú sabe?
-
Deixa eu começar aqui...
“Olê
mulher rendeira
Olê
mulher rendá
Olé,
Mulher Rendeira,
Olé
mulhé rendá
Tu
me ensina a fazer renda,
eu
te ensino a namorá.
Olé,
Mulher Rendeira,
Olé
mulhé rendá,
Tu
me ensina a fazer renda,
Eu
te ensino a namorá.
Olé,
Mulher Rendeira,
Olé
mulhé rendá,
Saudade
levo comigo,
Soluço
vai no emborná.
Olé,
Mulher Rendeira,
Olé
mulhé rendá,
Se
você tá me querendo,
Vamo
pra Igreja, vamo casá.
Olé,
Mulher Rendeira,
Olé
mulhé rendá,
E
depois de nóis casado,
Vou
pra roça, vou prantá.
Olé,
Mulher Rendeira,
Olé
mulhé rendá,
Tu
me ensina a fazer renda,
Eu
te ensino a namorá.
Olé,
Mulher Rendeira,
Olé
mulhé rendá.”
- Essa eu
cunhêço sim, mais cum ôtras prosas, mas bem qui tá bunitinha assim.
- Já estou de saída, Antônio, vim ver você e acabei fazendo uma apresentação
aqui para os outros filhinhos, gostei muito de todos vocês. Quer alguma coisa,
filho?
- Sim, quero qui toda vêiz que vinhé aqui mande me chama, vô na maió carrêra li
vê.
- Combinado.
E a freira se levantou, recebeu palmas e foi se distanciando em direção à porta
principal. Volta seca ainda foi até a grade e a viu entre as gigantescas
palmeiras reais que ficavam do lado de fora do presídio. Esta seria a primeira
vez de várias visitas. Os presos voltaram para suas celas e Volta Seca foi
assoviando com um tímido sorriso a música que ouvira por último...
Santos,
Robério B. Volta Seca. Página 225. 2017 (obra Inédita).
Fonte:
facebook
Página:
Robério Santos
http://blogdomendesemendes.blogspot.com