Do acervo do pesquisador Antônio Corrêa Sobrinho
Rua do Acre,
nº 11. Aí funciona um modesto salão de barbeiro. Meia dúzia de “fígaros” se
entregava afanosamente a escanhoar os rostos de outros tantos fregueses. O
“carioca-repórter” havia prestimosamente informado que ali encontraríamos algo
de interessante, com relação a Lampião. Por isso, um repórter, cujas barbas
ainda não haviam sido raspadas, ali foi ter e ficou à espera de ser
atendido. Enquanto passava o tempo, como de propósito, alguém falou sobre a
morte de Virgulino Ferreira.
Dizia:
- Na verdade, jamais acreditei que Lampião
existisse de fato. Julgo tudo uma balela!
Replicando-lhe, um dos oficiais
falou:
- Isso o senhor pensa. Mas Lampião era mesmo um cangaceiro. Pelo menos
temos aqui um colega que já teve ensejo de vê-lo pessoalmente, aliás, com muito
desgosto, pois é por temos de Lampião que ele veio para o Rio.O repórter aguçou
os ouvidos. Encontrava mais facilmente do que pensava o assunto importante que
motivava a sua presença no salão.Agora, o homem descrente também mostrava curiosidade
e quis saber quem era Lampião. Não foi difícil. O barbeiro não fez segredo e
respondeu prontamente, à primeira interpelação:
- É aquele. E apontou para um
rapaz, tipo nortista, também entregue ao trabalho de cortar o cabelo a um
freguês.
O HOMEM QUE FEZ A BARBA E CORTOU O CABELO DE LAMPIÃO E SEUS SEQUAZES.
Nesse momento o repórter julgou azada a sua intervenção. Fê-lo de maneira a
provocar mais celeuma em torno do assunto e forçar o esclarecimento de novos
detalhes.O barbeiro que havia apontado seu colega, de fato, prontamente
ajuntou:- Olha, moço, o João de Deus Aragão é baiano e algumas vezes nos falou
a respeito de seu encontro, dizendo mesmo que havia sido forçado a fazer a
barba de Lampião e seus sequazes. Não foi mesmo, Aragão? – perguntou ao indicado,
como a querer confirmação do que afoitamente narrara.O outro não parecia muito
inclinado a falar sobre o assunto e apenas respondeu:- É.Insistimos.- Para que
falar nisso?- E por que não? Não tenha receio: Lampião está mesmo morto...João
de Deus Aragão sorriu e aquiesceu, então, em fazer-nos a narrativa.- Foi em
1928 que o fato se verificou – começou. Morava eu então na fazenda Vaz Salgado,
Vila do Amparo, no estado da Bahia, onde tinha o meu salão. Nessa época, em certa
manhã, cerca de 8 de 30 horas, subitamente a localidade foi invadida por um
grupo numeroso de homens montados a cavalo, fartamente municiados. Prontamente
foram reconhecidos como sendo bandidos de Lampião, o já famoso “terror do
cangaço”. Com ele vinham, entre outros cangaceiros, os não menos temíveis
“Corisco” e “Esperança”, bem como um cunhado de Virgulino Ferreira, conhecido
por Modesto. A guarnição policial, composta de sargento e três praças, trataram
de fugir, logo que circulou a notícia da aproximação dos facínoras, certos de
que se ali permanecessem, seriam exterminados sanguinariamente, dado o já
proverbial ódio que Lampião tinha aos “macacos”, como chamava aos elementos da
polícia.Penetrando na pequena vila, Lampião tomou de surpresa a coletoria
local, cujo coletor de então, Sr. Antônio Gonzaga Leite, e o escrivão Vicente
Ferreira de Castro se submeteram sem a menor resistência. O chefe político de
Amparo, Sr. Melchiades Rodrigues da Silva, já a esse tempo havia também deixado
sua residência, indo para Ribeirão do Amparo.
EMOÇÃO QUE SE RENOVA
Tomando posse do dinheiro existente na repartição, Virgulino intimou o coletor
a mandar preparar o almoço para ele e sua gente, de que se incumbiu a família
do mesmo funcionário, todos temerosos de uma vingança, se não
aquiescessem.Depois disso, Lampião mandou chamar-me. Dois “caibras”
compareceram até onde eu me encontrava e me levaram em sua companhia. Sentia um
pavor indescritível, mas que podia fazer?Nesse momento João de Deus Aragão
interrompeu sua descrição. Olhamo-nos mais fixamente e notamos que uma
extraordinária palidez estava estampada em sua face. Percebemos que ainda eram
profundas as recordações que guardava daqueles instantes de emoção e pavor que
então passara.Controlando-se, e à insistência de todos que ali se encontravam ouvindo
atentamente a narrativa, prosseguiu o barbeiro:- Quando cheguei à sua presença,
Lampião ordenou-me: - “Vá para a sua barbearia e prepare as ferramentas, porque
vai atender a mim e aos meus “caibras”.Mais horrorizado ainda, ante essa
perspectiva, à qual não podia e nem tinha coragem para fugir, tratei de cumprir
o mandado. Ajeitei tudo direitinho, apesar de que o medo fez-me cair o pincel e
a bacia em que a espuma era feita. Fiquei esperando. A demora foi pequena, mas
pareceu-me que séculos haviam se passado até quando o bando transpôs os umbrais
do salão, tendo à frente o seu temível chefe, seguido de perto por “Volta
Seca”. Este era ainda rapazola, encarregado de tomar conta da cavalhada, mas já
demonstrava o que seria breves dias depois.Novo intervalo se fez na narrativa,
logo a seguir retomada:- Lampião entrou. Deixou sua arma encostada a um canto,
mas não quis tirar senão o chapéu, conservando as cartucheiras, a “lambedeira”
e outros muitos petrechos que conduzia em volta do tórax. Os outros cangaceiros,
porém, ficaram ao meu redor, com regular distância, todos de arma em punho,
prontos a atirar em mim na hipótese de que pudesse dar um golpe em falso. Mesmo
que eu quisesse, assim, sob a pontaria dos facínoras, não me atreveria a tentar
qualquer gesto suspeito. Entretanto, quase que cometia uma fala involuntária. É
que sentia as pernas trôpegas e tremor incontrolável no corpo, até as
mãos.Percebendo o que se passava, Virgulino disse-me:Está com medo, “mestre”?E
acrescentou:- Não tenha receio, que aqui ninguém lhe fará mal...Empregando toda
a minha vontade, consegui cumprir a tarefa. Aparei os cabelos de Lampião, que
ele trazia muito compridos, deixando-os à altura da nuca, fazendo-lhe ainda a
barba. Quando terminei, entregando-me uma cédula, com grande admiração minha, o
facínora falou-me:- Toma esses 20$000 pelo serviço meu e do meu pessoal.Deixei
o dinheiro sobre a banqueta, receoso de conservá-lo na gaveta e menos ainda no
bolso. A seguir, continuei o trabalho, atendendo a todos os “caibras” que se iam
revezando, enquanto Lampião caminhava para a porta e mandava que a multidão ali
postada – toda formada de gente humilde – se afastasse. E gritou para os
curiosos:- Vão saindo daqui. Está muito calor. É claro que não foi preciso nova
ordem. Todos, num relance, deixaram o local, amedrontados.
FUGIU E NEM QUIS ALMOÇAR
- As pessoas importantes da vila não quiseram ver “Lampião”? – perguntamos.
-
Qual o quê – retrucou prontamente João de Deus. Fugiram todas, logo que
souberam que o “capitão” estava em Amparo. E o homem que afirma ter estado com
a navalha no pescoço de “Lampião” prossegue:
- Quando acabei o serviço, os
cangaceiros deixaram-me sozinhos, partindo para outros pontos da vila, a fim de
se apoderarem de tudo quanto ali encontraram, que representava valor e de fácil
condução, como joias, dinheiro e um cavalo. Logo que os vi distantes, tratei de
correr para a casa de minha mãe, Maria das Mercês Eliot, que ainda vive no
Amparo. Apesar da insistência dessa, não quis almoçar. Apanhei imediatamente
minha mala, com umas poucas pelas de roupa, deixando a Vila e indo para o lugar
denominado Bando de Cipó, com a mala às costas, tomei um caminhão que ia para
os lados de Ilhéus. Dormi uma noite inteira na sarjeta, mas na manhã seguinte
continuei a marcha para São Salvador, de onde, em 1934, vim para aqui. Havia ele
encerrado sua palpitante narrativa, mas ainda lhe fizemos uma pergunta:- Nunca
mais voltou à sua terra, para rever os pais e amigos?João de Deus Aragão tinha
um relâmpago nos olhos quando nos respondeu:- Nunca. É ainda muito viva a
impressão daqueles momentos de pavor, para que eu lá retornasse.
“A NOITE” (RJ) - 30/07/1938.
O barbeiro João de Deus, em foto ilustrativa da matéria, esta, parte integrante
da série de publicações produzidas pelo jornal carioca imediatamente após a
morte de Lampião.
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