Por João Pedro Fracoso
O capitalismo
do coronelismo
jogou num abismo
o nosso Brasil
a fome danada
e o pobre sem nada
soltou a enxada
e pegou no fuzil (GRÚDI, 2015)
INTRODUÇÃO -
EM DEFESA DE UMA ANÁLISE MATERIALISTA
Em 2018,
completaram-se 80 anos do famigerado massacre de Angico, que exterminou o
Capitão Virgulino Ferreira da Silva, vulgo Lampião, e seu bando de cangaceiros.
Os cangaceiros eram sertanejos armados, que andavam em bandos e atuavam
saqueando grandes propriedades, vilas e cidades no Nordeste Brasileiro. Foram
consagrados no imaginário e na cultura popular brasileira por décadas de
literatura de Cordel e por inúmeras produções cinematográficas. Apenas para
citar as mais conhecidas, os clássicos “Deus e o Diabo na Terra do Sol” e “O
Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro”, do cineasta Glauber Rocha. A morte
de Lampião e seu bando representou a decadência do Cangaço, que veio a se
encerrar definitivamente em 1940, com a morte de Corisco, “o Diabo Loiro”, e a
captura de sua esposa, Dadá.
Em decorrência
desta data, o jornal britânico BBC publicou uma matéria sobre a polêmica, ainda
existente em Serra Talhada – PE (terra natal de Lampião), sobre a possibilidade
da construção de uma estátua de Lampião, que foi posta em votação, o que
reascendeu o debate sobre o caráter e as ações do cangaceiro (MENDES, 2018).
Teria sido ele
um herói, um “Robin Hood do sertão”, defensor dos fracos e oprimidos, ou um
bandido sanguinário, oportunista, que se aliava a coronéis e políticos para
massacrar o povo pobre? Mais de 80 anos após sua morte, tal questão ainda não
está solucionada para a maior parte dos brasileiros.
O objetivo do
presente artigo é promover uma análise marxista desse fenômeno tão
contraditório, o Cangaço, abandonando as visões simplistas e buscando uma
metodologia de classes para determinar o papel na história que esse movimento
exerceu.
Rejeitamos, de
antemão, a visão romantizada de Lampião enquanto um “Robin Hood do sertão” e um
defensor dos pobres. Afinal, “para os componentes do bando, o cangaço é
modalidade de ganhar a vida” (FACÓ, 1963), ou como afirmou Lampião, é um
negócio bem-sucedido (LAMPIÃO APUD ALBUQUERQUE, 2011). Sendo o Cangaço um modo
de vida, ou uma espécie de profissão, não faz o menor sentido pensar em um
Lampião distribuidor de riquezas. Os cangaceiros acumulavam fortuna própria
pois era o seu meio de vida, e não repartiam a mesma com ninguém (e se
repartiam, era geralmente com coiteiros e demais simpatizantes do Cangaço).
Também é
incorreto limitar os bandos de cangaceiros a meras expressões de banditismo,
resultantes do desequilíbrio social que permeia o Nordeste. Existe neles um
fator profundamente revoltoso (e porque não protorrevolucionário?), presente em
boa parte das expressões de Banditismo Rural/Social (como veremos
posteriormente). Mesmo historiadores que rejeitam a análise marxista, como
Frederico Pernambucano de Mello, reconhecem a complexidade do Cangaço em
relação a outras formas de banditismo, o classificando muito mais como uma insurgência
cultural, do que como um “desvio de personalidade ou expressão de psicopatia”
(MELLO, 2010).
Refutando
assim, as principais análises simplistas sobre o fenômeno do Cangaço, vamos
para a análise marxista sobre o assunto. E como produzir essa análise?
Para tal,
devemos analisar todas as contradições intrínsecas a realidade na qual o
Cangaço estava inserido. Citando o filósofo e teórico marxista Vladimir Lênin,
sobre o conceito de contradição e o papel da mesma no método dialético:
Identidade dos
contrários significa o reconhecimento ou a revelação das tendências contrarias,
que se excluem reciprocamente, em todos os fenômenos e processos da natureza
(na qual cumpre incluir também o espírito e a sociedade). Para se conceber
amplamente todos os processos do mundo em sua "auto dinâmica", em seu
desenvolvimento espontâneo, em sua verdadeira vida, é necessário conhecê-los
como um todo constituído de contrários. A evolução é uma "luta" de
princípios antagônicos. Há duas maneiras de conceber a evolução (digamos, duas
possibilidades, ou, então, dois aspectos dados pela história): a evolução como
redução, o acréscimo como repetição; ou, então, essa mesma evolução como
unidade de contrários (desdobramento do um em princípios que se excluem e
relações entre esses princípios antagônicos). (LÊNIN, 1915)
Citando ainda
Mao Zedong:
Toda a forma
de movimento contém em si as suas próprias contradições específicas, as quais
constituem aquela essência específica que diferencia um fenómeno dos outros. É
essa a causa interna, a base, da diversidade infinita dos fenómenos no mundo.
Existe na Natureza uma imensidade de formas de movimento: o movimento mecânico,
o som, a luz, o calor, a eletricidade, a dissociação, a combinação, etc. Todas
essas formas de movimento da matéria estão em interdependência, mas
distinguem-se umas das outras na essência. A essência específica de cada forma
de movimento é determinada pelas suas próprias contradições específicas. É
assim não apenas para a Natureza, mas também para os fenómenos da sociedade e
do pensamento. Cada forma social, cada forma de pensamento, contém as suas
contradições específicas e possui a sua essência específica. (ZEDONG, 1937)
Sendo a
contradição, portanto, o motor básico de todo fenômeno (seja natural ou
social), se faz necessário que toda tentativa de análise do Cangaço (ou de
qualquer outro movimento), parta da identificação das contradições que
determinaram o surgimento do mesmo. Sendo assim, quais eram as contradições da
sociedade nordestina que levaram um sertanejo pobre a virar um cangaceiro?
PORQUE OS
CANGACEIROS ERAM... CANGACEIROS?
O Cangaço
surge, em maior escala e em franca ascendência, no final do século XIX. Existem
registros de vários cangaceiros anteriores a esse período, remetidos até de
tempos coloniais. Entretanto, é nessa época onde há o maior surto dos bandos,
junto com os Fanáticos (líderes religiosos que ajuntavam milhares de camponeses
em defesa da terra, como Antônio Conselheiro, por exemplo).
Como se sabe,
ao passo que no Sul a ocupação foi tardia, o que garantiu uma maior formação de
minifúndios (ainda que mantendo o coronelismo, vide a Guerra do Contestado), o
Nordeste foi colonizado ao molde dos feudos portugueses, mantendo uma profunda
desigualdade social e uma economia semifeudal. Tal situação foi mantida dentro
das capitanias hereditárias, passando pelos latifúndios coronelistas, que
existem até hoje. Citando Moniz Bandeira:
Os direitos
senhoriais e certas relações feudais de produção, que perduravam em Portugal,
estenderam-se, ainda que com características pobres e indefinidas, ao Brasil,
onde a colonização, determinada pelo mercantilismo e revestida de caráter
militar, não se efetuou de modo idêntico e uniforme em todas as regiões. O
próprio Jacob Gorender, em sua obra O Escravismo Colonial, reconheceu que “os
moldes jurídicos da apropriação da terra no Brasil-colônia teriam de proceder
do direito português da época, correspondente a certo estágio da evolução do
feudalismo”, ainda que não se confundissem com o regime territorial em si
mesmo, pois este devia obedecer às exigências do modo de produção estabelecido
na colônia[49]. Nessa e em outras passagens de sua obra, Gorender não negou nem
podia negar a existência de elementos feudais na colonização do Brasil. Os
portugueses não recomeçaram ali a história e não podiam deixar de transplantar
certas instituições feudais ainda existentes em Portugal, em seu sistema tanto
econômico como, principalmente, jurídico e político, evidenciado pela
existência do beneficium, dos privilégios da nobreza e de alguns costumes e
instituições, tais como, entre outros, o morgadio, o direito da primogenitura,
a vassalagem e os deveres de fidelidade (fealty) ao soberano. (BANDEIRA, 2005)
Além da enorme
concentração de terras, o Nordeste era assolado por um mau que outras regiões
brasileiras não sofrem em demasia: as secas. Tendo como bioma a caatinga, no
qual as chuvas são escassas, não raro se vê migrações em massa para o Norte (à
época relativamente estável, com o surto da borracha) ou para o Sudeste/Sul.
Dentro de todo
esse contexto, há uma severa disputa entre a genuína burguesia nacional e os
coronéis latifundiários. Após a abolição da escravatura, o fim do Império, (que
garantia de forma irrestrita o poder dos coronéis, vide a Lei de Terras,
aprovada pelo Imperador Dom Pedro II) e a proclamação da República, iniciou-se
uma das primeiras (a segunda depois de Mauá, para ser exato) tentativas dos
industriais brasileiros de consolidarem sua Revolução Burguesa. Essa tentativa
foi representada pelo governo relativamente nacionalista de Floriano Peixoto
(apesar das contradições conhecidas), que, entretanto, não se consolidou. A
burguesia nacional não foi capaz (devido as dinâmicas do capital internacional)
de submeter os coronéis as suas exigências, e teve de então ceder a um pacto
conciliatório com os mesmos. Citando Facó:
Com a
derrubada da Monarquia, em 1889, na República partilhavam do poder do Estado os
latifundiários e a burguesia, ambos se temendo mutuamente. Os primeiros, depois
de perderem a escravaria, receavam perder os feudos; os segundos, sonhando com
empreendimentos industriais, ferroviários, modernização da agricultura,
necessitavam de braços livres, mas temiam liquidar o regime latifundiário.
[...] Encontrava pela frente a barreira do latifúndio a nova tentativa da
burguesia brasileira (a segunda, pela sua importância, depois de Mauá) de tom
ar impulso e lançar-se a empreendimentos tipicamente burgueses, resumidos no
"encilhamento", geralmente encarado, de maneira errônea, como simples
especulação. Ocorria precisamente que a débil e retardatária burguesia
brasileira, premida de um lado pelos empréstimos da Inglaterra e, de outro,
pelo latifúndio semifeudal que não se atrevera a derrocar, via-se condenada à
impotência. Mais uma vez predominava, vitorioso, o latifúndio, esmagando toda
veleidade de radicalismo burguês. Que restaria, senão a "renúncia"
aos ideais "republicanos históricos", e como resultado inevitável o
compromisso aberto com os restos feudais? "O País varrera de si os dogmas
franceses... Submerge a República teórica, que não fora exequível, e se impõe a
República que podemos ter" — reconhece um historiador objetivo, sem dar,
no entanto, o nome aos bois¹. Deve- se acrescentar que essa "República que
podemos ter" era a do compromisso feudal-burguês, com evidente
predominância dos latifundiários, depois de Floriano Peixoto — a última
tentativa séria e malograda para levar avante as mais radicais aspirações
burguesas. Este fracasso custaria caro ao povo. (FACÓ, 1963)
Temos,
portanto, a contradição que falamos anteriormente. Em um contexto no qual a
terra está concentrada na mão de poucas pessoas, ao passo que a maior de
sertanejos passa fome, a contradição entre o latifúndio e o campesinato é
inevitável. Somando isso a todos os outros fatores naturais e, voila, a fórmula
para o caos: assim nasce o Bandido.
O BANDIDO
SOCIAL
O Bandido que
tratamos aqui, é claro, não é o criminoso comum ou urbano. Falamos aqui do
Bandido-rebelde, ou como denominou o historiador Eric Hobsbawm, um Bandido
Social. Não se trata de um mero lumpem, mas sim de um revoltoso, um rebelde
primitivo, que está disposto a mudar sua situação de algum modo, mas não é um
revolucionário, não sabe como alterar sua realidade e não tem consciência
política para tal. Dessa forma, atua dentro do Banditismo, cometendo assaltos,
vinganças e afins. É um sujeito visto pelo seu povo, horas como herói, devido a
sua bondade, horas como vilão, devido a sua crueldade. O Bandido Social surge
em contextos como o já citado: realidades semifeudais, nas quais a população
está sob o jugo de coronéis, e não tem outras formas de se defender que não por
meio do Banditismo. Citando Hobsbawm:
O ponto básico
a respeito dos bandidos sociais é que são proscritos rurais, encarados como
criminosos pelo senhor e pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da
sociedade camponesa, e são considerados por sua gente como heróis, como
campeões, vingadores, paladinos da Justiça, talvez até mesmo como líderes da
libertação e, sempre, como homens a serem admirados, ajudados e apoiados. É essa
ligação entre o camponês comum e o rebelde, o proscrito e o ladrão que torna o
banditismo social interessante e significativo. Além disso, ela o distingue de
dois outros tipos de crime rural: as atividades de grupos originários do
"submundo" profissional ou de meros pilhadores ("ladrões
comuns") e das comunidades para as quais o roubo faz parte da vida normal,
como, por exemplo, os beduínos. [...] O banditismo social dessa espécie é um
dos fenômenos sociais mais universais da História [...] Do ponto de vista
social, parece ocorrer em todos os tipos de sociedade humana que se situam
entre a fase evolucionária da organização tribal e de clã, e a moderna
sociedade capitalista e industrial, incluindo porém as fases da sociedade
consanguínea em desintegração e a transição para o capitalismo agrário.
(HOBSBAWM, 1969)
Desse ponto de
vista, o cangaceiro nada mais é que um Bandido Social, um sertanejo revoltado
com sua situação, que não viu outra saída senão recorrer as armas e encarar um
modo de vida insurgente. Questionando o interlocutor sobre o caráter do
cangaceiro e do fanático, sendo apenas exemplos de criminalidade comum,
responde Facó:
Evidentemente,
não. Constituiriam, se assim fosse, uma percentagem de criminosos de todo
anormal, desconhecida em qualquer país, em qualquer época histórica. Eram muito
mais frutos do nosso atraso econômico do que eles próprios retardatários. Hoje,
compreendemos e sentimos que eles eram uma componente natural do nosso processo
evolutivo, a denúncia do nosso próprio retardamento nacional, o protesto contra
uma ordem de coisas ultrapassadas e que deveria desaparecer. (FACÓ, 1963)
Nesse sentido,
é possível resumir o cangaceiro nessa sentença:
Euclides da
Cunha já compreendera que o homem do sertão [...] está em função direta da
terra"¹. Se a terra é para ele inacessível, ou quando possui uma nesga de
chão vê-se atenazado pelo domínio do latifúndio oceânico, devorador de todas as
suas energias, monopolizador de todos os privilégios, ditador das piores
torpezas, que fazer, senão revoltar-se? Pega em armas, sem objetivos claros,
sem rumos certos, apenas para sobreviver no meio que é o seu. (FACÓ, 1963)
CONTRADIÇÕES
EVIDENTES E ALGUMAS CRÍTICAS
Isso não quer
dizer, obviamente, que o cangaceiro era isento de contradições. Assim como
todos os demais Bandidos Sociais verificados mundo afora, o Cangaço era
extremamente heterogêneo, e as supostas “motivações” para se participar dele
eram enormes. Isso ocorre devido isolacionismo cultural e ideológico inerente à
condição semifeudal. Se sabe, por exemplo, que há distintas formas de atuação
de um cangaceiro, e, consequentemente, seu respaldo popular é alterado. Antônio
Silvino e Jesuíno Brilhante, por exemplo, são lembrados por suas boas ações, ao
passo que Rio Preto e Zé Baiano, pela sua crueldade, destinada inclusive contra
a população pobre (HOBSBAWM, 1969). O cangaceiro, portanto, engloba todas as
facetas do Bandido Social, desde o vingativo e cruel, até o bondoso e generoso.
A figura de
Lampião é um tanto conciliatória e ainda mais contraditória: ainda que não seja
lembrado pelos cangaceiros que viveram ao seu lado pela sua crueldade (MELLO,
2010), é sabido que diversas vezes adotou posturas conciliatórias com coronéis:
acordos para coitos, alianças estratégicas e etc. Citando um artigo de José
Ferreira Júnior:
Ademais,
também deve-se chamar a atenção para a rede de informantes e protetores
construídas por Lampião, à qual se convencionou chamar coiteiros, composta por
sertanejos paupérrimos, militares (que, em tese, deveriam estar em lado
contrários) e, principalmente, fazendeiros latifundiários, conforme relato na
dissertação “A apropriação da memória lampiônica como elemento de construção da
identidade de Serra Talhada – PE” (2010). (JÚNIOR, 2016)
O mesmo vale
para as já mencionadas justificativas do cangaceiro. Por exemplo, o sertanejo
geralmente adentrava nessa vida por motivos vingativos. Vejamos os casos de
Lampião e Antônio Silvino:
O exemplar
mais famoso entre os cangaceiros é Virgulino Ferreira da Silva, Lampião,
descendente de uma morigerada família de pequenos criadores e cultivadores do
município de Serra Talhada, Estado de Pernambuco. A exemplo do que aconteceu
com o Conselheiro, com Antônio Silvino e tantos outros, famílias poderosas
locais, os Nogueiras e Saturninos, perseguem a sua família. Um dia, matam-lhe
uma cabra. Os irmãos Ferreira vingam-se, assassinando um desafeto. Para escapar
às malhas de uma justiça que será contra eles, fogem para o Estado vizinho de
Alagoas. Aí mesmo, em 1918 ou 1919 o velho Ferreira é assassinado a mando das
mesmas famílias que já o haviam perseguido em Pernambuco. Os filhos, Virgulino,
Antônio, Ezequiel e Livino, — que morreriam todos em combate com a polícia —
ingressaram no cangaço, juntando-se Virgulino ao bando de Sebastião Pereira,
Sinhô, então, dos cangaceiros mais famosos do Nordeste. Seu objetivo confesso é
vingar a morte do pai. (FACÓ, 1963)
Entretanto,
como se sabe atualmente, Lampião já havia entrado no Cangaço antes da morte de
seu pai (ainda que com o objetivo explícito de retalhar Saturninos) e nem
sequer se vingou, visto que os responsáveis viveram ainda longos anos (JÚNIOR,
2016). Por conta disso, vários autores acusam a análise de Hobsbawm e Facó (que
estamos seguindo) de ser uma distribuição de marxismo simplificado (MELLO,
2011), de ignorar os fatores oportunistas, culturais e até éticos do Cangaço
(as motivações que havíamos citado). Citando mais uma vez Júnior:
Essa concepção
proto-revolucionária cangaceira tem registro no livro “Cangaceiros e
Fanáticos”, de autoria de Ruy Facó, um jornalista, advogado e militante do
Partido Comunista [...] Mas, essa concepção, foi combatida em “Os Cangaceiros”,
de Luis Bernardo Pericás. Apoiava-se a ideia de Ruy Facó em uma leitura
equivocada do movimento cangaceiro feito, à época, por militantes do Partido
Comunista Brasileiro (PCB) que, na opinião de Pericás, despossuídos eram de
preparo teórico sistemático e orgânico, além de pouco conhecimento da formação
histórica, econômica e social da nação.[...] Também em seu “Guerreiros do Sol”
(2004), Frederico Pernambucano de Melo, promove explicação à não consecução da
vingança lampiônica: a manutenção de um escudo ético, que lhe viabilizasse a
continuidade de sua estada no cangaço. Matar os dois desafetos implicaria ter
que deixar o cangaço, uma vez que se concluiria seu objetivo de estar nas
fileiras cangaceiras. Não matá-los, porém, gerava justificativa para a
permanência na vida cangaceira. (JÚNIOR, 2016)
Não temos
pretensão nesse artigo, de criticar outras visões sociológicas do Cangaço,
ainda mais de historiadores tão brilhantes como Frederico Pernambucano de Mello
ou Luiz Bernardo Pericás (que apesar de discordarmos de suas análises, são sem
dúvida duas das maiores autoridades sobre o assunto). Devemos apontar,
entretanto, que apesar das críticas, Facó já respondia essas questões em sua
obra. Ainda sobre a motivação vingativa de Lampião, Facó sentencia que “este
motivo aparente, no entanto, tem a função de gota de água que faz transbordar o
copo.” (FACÓ, 1963).
Não se nega,
portanto, que Lampião arrumou uma justificativa para adentrar o Cangaço. A
vingança completa, certamente, iria tirar tal “escudo ético”. Também não se
nega inúmeros outros fatores (leia-se contradições) apontados para o surgimento
do Cangaço: o apelo a “macheza e a honra” (que explica o cangaceiro vingativo),
a tradição cultural de insurgência contra costumes coloniais, e etc. Isso,
entretanto, não refuta a análise que estamos seguindo. O ponto é: a contradição
principal era indubitavelmente o monopólio da terra, o latifúndio, e isso
condicionou as outras demais. Mesmo que Lampião tenha abandonado e oportunizado
as motivações vingativas para justificar sua permanência no Cangaço, isso ainda
é entendível: o Cangaço era um meio de vida, o único para um sertanejo pobre
que nada tinha senão armas, e um sentimento de revolta contra a situação que lhe
era imposta. Sair desse meio significaria a derrocada de Lampião, e por isso
permaneceu. Todas as outras contradições não podem ser descartadas, mas ainda
são submetidas a esta principal.
E justamente
essas contradições da vida cangaceira, que levaram a certas posturas
conciliatórias, que jamais foram desconhecidas por Facó e pelos marxistas
(acusados de “ignorar tais fatos”). Fatos que, no entanto, não devem ser
generalizados. Os assaltos a grandes propriedades sempre foram a preferência de
ataques dos cangaceiros, inclusive de Lampião. As diversas alianças com os
senhores de terra, muitas das vezes, eram feitas como forma de pressionar o
fazendeiro a ceder concessões ao bando. Citando novamente Facó:
Desde o início
de suas atividades, o grupo ataca de preferência grandes propriedades, aquelas
onde sabe que poderá obter melhores proventos. Quando o coronel não mora na
fazenda e é, por exemplo, um comerciante na cidade guarnecida onde Lampião não
pode penetrar, reclama este sua presença, para conversarem sobre dinheiro.
Exige-lhe então o cangaceiro determinada quantia, mediante a condição, muitas
vezes expressa em cartas, das quais se conhecem vários exemplares, de que sua
propriedade será poupada e nada sofrerá, mesmo por parte de "outros
cangaceiros". A carta, um simples bilhete, é uma espécie de salvo-conduto
para o fazendeiro. Em geral, o coronel atendia-o, pois sabia antecipadamente
que, do contrário, sua propriedade ficaria visada pelos cangaceiros e poderia
ser depredada. Outras vezes, Lampião exigia abrigo inviolável em fazendas
estrategicamente situadas. Estas se tornavam então seu pouso habitual, lugar
onde se ocultava e onde descansava semanas ou meses, para refazer as forças das
longas caminhadas pelos sertões, desde o Ceará até a Bahia. A fazenda-coito é
também, algumas vezes, o quartel-general do bando, o lugar onde ele se
reabastece de armas e munições compradas por intermédio do fazendeiro —
coiteiro — ou de seus empregados. É sabido que Lampião foi sempre otimamente
provido de material bélico, inclusive fuzis, privativos das forças armadas. É
sabido também que em Juazeiro, em 1926, os chefes locais lhe forneceram
abundante armamento para combater a Coluna Prestes. Mas não era só esta a
origem das armas modernas conseguidas pelos cangaceiros. Eles as compravam
normalmente não só através dos fazendeiros amigos, dos coiteiros, como de
alguns de seus perseguidores. Numa entrevista que manteve Lampião com um dos
grandes fazendeiros de Alagoas, coronel Joaquim Resende, de Pão de Açúcar,
disse-lhe o chefe cangaceiro que, quanto às forças estaduais que o perseguiam,
ele "se arranjava a seu gosto", "fazendo nessa ocasião graves
acusações a vários oficiais que andavam em sua perseguição" [...] Em todos
estes casos temos um a característica fundamental comum: necessidade de ocupar
um a determinada, área de terra. Isto, por si só, já é motivo de profundas
inquietações por parte dos grandes proprietários, porque, no mínimo, seria
exemplo perigoso a propagar-se, caso subsistisse. (FACÓ, 1963)
Vemos,
portanto, que ao contrário “uma simplificação do Cangaço”, Facó nunca negou o
auxílio de fazendeiros aos bandos. Ele apenas entendia que, apesar dessas
contradições e atitudes distintas do idealizado Robin Hood (que nunca
representou modelo aos cangaceiros), o Cangaço ainda era uma insurgência
sertaneja, potencialmente revolucionária.
A DECADÊNCIA
DO CANGAÇO
Com o
Movimento Revolucionário de 30, a burguesia brasileira (dessa vez, em sua
fração burocrática) almejou mais uma vez exercer seu pleno poder e submeter os
latifundiários às suas demandas. Várias medidas foram tomadas para diminuir a
influência política dos coronéis, desarmando-os por exemplo. Tais políticas,
como se sabe, tiveram o papel muito mais conciliatório do que revolucionário
(como se mostrou a longo prazo), uma vez que a estrutura econômica do Nordeste
permaneceu a mesma. Houve, de fato, um novo pacto burguês-feudal, assim como
ocorreu durante a proclamação da República, mas desta vez, com a burguesia a
frente.
Entretanto,
tais medidas propiciaram a infiltração, ainda que mínima (porém sensível), do
capitalismo agrário no Sertão. A criação de centros urbanos, a parca
industrialização (que promoveu uma sucção de trabalhadores rurais para a
cidade), a centralização política do governo federal, o aumento considerável da
repressão policial, todos esses fatores impossibilitaram a continuação do
Cangaço, e do próprio Banditismo Social, no país. A contradição resultante do
sistema semifeudal ainda permanecia: o camponês e o latifundiário. Entretanto,
ela foi sensivelmente amenizada. Citando Facó:
Mais de vinte
anos transcorreram desde então. Não surgiram novos insubmissos em redutos
fortificados, nem grupos de bandoleiros organizados. O mesmo ano de 1938 vê
desaparecerem duas modalidades principais de revoltas no sertão: o núcleo de
cooperados para a lavra da terra e a criação de gado, que teve em Caldeirão o
último exemplo, com características de misticismo, e o bando de cangaceiros, de
que Lampião foi a expressão mais vigorosa e derradeira. A que se deve esta mudança,
uma vez que a estrutura agrária permanece fundamentalmente a mesma, isto é, uma
vez que se mantêm o latifúndio e ainda em larga escala as relações de produção
pré-capitalistas? [...] A conclusão essencial é esta: rompem-se
irremediavelmente os antigos laços de dependência semifeudal. Havia o capanga
"para o que desse e viesse" quando era abundante a oferta de braços,
quando era difícil a emigração, quando mais nada havia a fazer senão cuidar da
terra e do gado do senhor. Hoje, o morador, o agregado, não se sujeita mais a
morrer pelo patrão. Ser jagunço era meio de vida, como ser cangaceiro — na
expressão sincera de Virgulino Ferreira da Silva Lampião... [...] É verdade que
no Nordeste cerca de 70% da população ainda são rurais. Mas esta população, em suas
camadas profundas, começa a agitar-se. Naturalmente, não se reeditarão os fatos
rocambolescos dos bandos de cangaceiros, com seus heróis de lenda como Silvino
e Lampião. Os tempos são outros, houve mudanças de caráter econômico que, se
bem não tenham sido profundas, minam dia a dia a economia de subsistência,
estendem o âmbito do trabalho assalariado, fomentam relações mercantis, ampliam
o mercado interno, tanto de bens de consumo como de meios de produção. A
aproximação dos mais distantes rincões do Nordeste aos grandes centros urbanos,
o devassamento do interior pelas autoestradas, as linhas de aviação comercial
que ligam o litoral ao sertão em poucas horas, tudo isto, fruto de mudanças de
caráter econômico em primeiro lugar, impossibilita o ressurgimento dos
Lampiões, dos Silvinos, dos Brilhantes do passado. (FACÓ, 1963)
Isso,
obviamente, não altera o caráter semifeudal de nossa nação, e muito menos
limita o potencial revolucionário do campesinato. Pelo contrário, os movimentos
camponeses contam hoje com algo que Lampião não teve: consciência de classe. E
assim, podem de fato ascender a grupos revolucionários, que levem a cabo um
projeto de Revolução Agrária e eliminem os resquícios feudais do país. Citando
mais uma vez Facó:
Não se pense
que por não serem mais possíveis os grupos de cangaceiros [...] essa massa
enorme de miseráveis vá cruzar os braços à espera de planejadas transferências
maciças para o Maranhão ou o Brasil Central — onde sua vida pouco se
modificaria, porque o latifúndio subsiste com todas as suas taras semifeudais,
opondo todos os obstáculos ao desenvolvimento da propriedade individual
próspera ou de cooperativas agrícolas de produção [...] Não se exclui hoje
sequer a possibilidade de que o próprio Estado atual seja arrastado na queda
que irremediavelmente liquidará com semelhante estrutura agrária, caso persista
em sustentá-la. Porque os pobres do campo dispõem hoje dá mais poderosa das
armas, uma que não possuíam antes: vão ganhando consciência de sua situação de
míseros explorados e oprimidos e organizam-se como jamais se organizaram os
trabalhadores do campo no Brasil. Esta consciência e organização lhes valem
como um penhor de vitória. (FACÓ, 1963)
CONCLUSÃO
Vimos,
portanto, que o Cangaço foi um modo de vida insurgente, caracterizado dentro do
fenômeno do Banditismo Social, no qual integravam sertanejos revoltados com
suas situações de vida que pegavam em armas para lutar contra seus opressores,
mas não tinham consciência de classe para canalizar tal revolta em uma
verdadeira revolução social. Devido a isso, estavam destinados a serem
engolidos pelo “desenvolvimento” das forças produtivas no Nordeste. Em outras
palavras, eram revoltosos, não revolucionários.
Tal condição
apresentava inúmeras contradições, que revisamos aqui, desde posições
conciliatórias e “oportunistas” até atos classificados como cruéis e violentos.
Entretanto, sendo marxistas, partimos do pressuposto básico de que “é justo
rebelar-se contra a reação”. Sendo assim, independente de nossas críticas as
ações dos cangaceiros (que devem ser feitas), o Cangaço foi um movimento
essencialmente legítimo, um verdadeiro precursor das ligas camponesas atuais,
as quais reivindicam Lampião como um “dos principais lutadores da região”
.(PAULA, 2009)
E o povo
nordestino sabe disso, não importa quantos reacionários busquem demonizar os
cangaceiros. De acordo com a votação que citamos no início da postagem, sobre a
realização de uma homenagem ao falecido Capitão, “76% dos eleitores (2.289
pessoas) votaram pelo ‘sim’, contra 22% do ‘não’ e 0,8% de abstenções” (MENDES,
2018). Lampião foi, apesar de tudo, um herói.
Referências
ALBUQUERQUE,
Ricardo. Iconografia do Cangaço. 2011.
r/noticias/10863-o-rei-do-cangaco-uma-analise-marxista-do-banditismo-rural-no-nordeste-brasileiro?fbclid=IwAR2rf0tztMKZ_-6bvBs0IJcmE3ZeDOUG6Ez7gMQORTYO-ZSiBxnYIiiE0Fo
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