Autor – Rostand Medeiros – IHGRN
A atual
Pandemia de COVID-19, o novo coronavírus, não é a primeira situação do gênero
que Natal e o Rio Grande do Norte enfrentam. Talvez poucos saibam, mas em 1957
houve uma pandemia que ficou conhecida como gripe asiática, que aqui chegou
causando medo e confusão.
Veículos das Pioneiras Sociais, utilizados contra a gripe asiática. Foi uma ação do governo Juscelino Kubitschek de Oliveira.
Esse novo vírus teria se desenvolvido no norte da China e nessa época o regime comunista local era extremamente autoritário e controlava a saída de praticamente todas as informações do país para o exterior. O mundo só tomou conhecimento com maiores detalhes desse surto quando esse vírus chegou a Cingapura, onde foi relatado pela primeira vez em fevereiro de 1957. O certo é que em abril do mesmo ano a gripe avançou de Cingapura para Hong Kong e no verão alcançou as cidades costeiras do oeste dos Estados Unidos, primeiramente na Califórnia. Logo atacou a Oceania, África e Europa.
As crianças foram as mais atingidas pela gripe asiática.
Qual era o
tipo de Vírus
Através de
testes o vírus foi reconhecido como sendo do tipo Influenza A e que ele era
diferente de qualquer outro encontrado anteriormente em humanos. Pesquisas
posteriores apontaram que a gripe asiática foi resultado de um cruzamento entre
um vírus encontrado em patos selvagens na China (H2N2) e de uma cepa de vírus
da gripe humana (H1N1). Convencionou-se na época denominar esse vírus como
H2N2, mas ela ficou conhecida mundialmente como gripe asiática.
Pedido para
não beijar a criança da foto, durante a pandemia de 1918.
Depois da
gripe espanhola de 1918, a pandemia de gripe asiática de 1957 foi a segunda
maior pandemia a ocorrer no mundo durante o século XX. Quando esse surto
surgiu, apenas pessoas com mais de 70 anos de idade possuíam lembranças claras
da experiência ocorrida quase quarenta anos antes. Apesar das advertências dos
mais velhos, muitos não acreditaram na letalidade da nova gripe. Logo ficou
patente que os mais jovens estavam errados.
No Reino Unido
os primeiros casos foram informados no final de junho, com um surto mais grave
ocorrendo na população em geral em agosto. O País de Gales e a Escócia
tiveram os primeiros casos em setembro e no início de 1958 estima-se que cerca
de 9 milhões de súditos da rainha Elizabeth II havia contraído a gripe
asiática. Destes, mais de 5,5 milhões foram atendidos por seus médicos e
cerca de 14.000 pessoas morreram devido aos efeitos imediatos do ataque.
Foi relatado
no Reino Unido que os pacientes sentiram fortes calafrios, seguido de
prostração, dor de garganta, nariz escorrendo e tosse. Na sequência os relatos
apontaram para membros doloridos (adultos), cabeça (crianças), seguido de febre
alta (ambos os casos). Crianças pequenas, principalmente meninos, sofreram
sangramentos no nariz. Cientistas ingleses observaram que a gripe asiática
tinha duas ou três fases, sendo a segunda a de natureza mais grave.
Os sintomas
eram geralmente leves e a maioria dos pacientes normalmente se recuperava após
um período na cama, com medidas antipiréticas simples. Houve complicações
em 3% dos casos, com mortalidade de 0,3%. Pneumonia e bronquite foram
responsáveis por 50% dos óbitos, sendo o restante por agravamento de doenças
cardiovasculares já existentes. Durante a pandemia aumentou bastante a
incidência de pneumonia.
Houve uma
falta de uniformidade no tratamento ao surto. Alguns médicos prescreveram
antibióticos para todos os casos, até os menos complicados. Mais tarde, no
entanto, observou-se que o uso indiscriminado de antibióticos não era benéfico.
Na época foi
possível detectar o agente com rapidez e trabalhar em novas soluções. Uma
vacina para a gripe asiática foi introduzida ainda em 1957 e a pandemia
diminuiu. Ocorreu uma segunda onda dessa gripe em 1958 e ela passou a
fazer parte daquilo que os cientistas classificam como gripes sazonais. Em
1968 foi comprovado que a gripe asiática H2N2 havia desaparecido na população
humana e acredita-se que ela tenha sido extinta na natureza.
Apesar de
praticamente desconhecida nos dias atuais, essa doença matou entre 1,4 e 2 milhões
de pessoas, sendo 116.000 nos Estados Unidos. Outros cientistas apontam que
esse surtou ceifou muito mais gente. Colocando a cifra em 4 milhões de mortos,
principalmente no continente de onde se originou, sendo as crianças suas
vítimas preferenciais.
A Gripe Chega a Natal
Juscelino Kubitschek
de Oliveira e Dinarte Mariz. Respectivamente presidente do Brasil e governador
do Rio Grande do Norte em 1957.
Quem governava
o Brasil na época era Juscelino Kubitschek e a gripe asiática aqui chegou entre
julho e agosto de 1957, com um primeiro surto no Rio Grande do Sul. No início
de setembro, sua presença foi identificada no Rio de Janeiro pelo Instituto
Oswaldo Cruz e pelo Instituto de Microbiologia da Universidade do Brasil –
hoje, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pouco depois pandemia desembarcou
em Belo Horizonte, Salvador e Belém, sempre com alta incidência em crianças.
Dinarte de
Medeiros Mariz era o governador do Rio Grande do Norte em 1957 e o médico Dary
de Assis Dantas o diretor do Departamento de Saúde Pública, atual SESAP –
Secretaria de Estado de Saúde Pública do Rio Grande do Norte. Este último havia
nascido na cidade de Serra Negra do Norte, mesmo local de nascimento do
governador, se formou em medicina no Rio de Janeiro onde atuou na Santa Casa de
Misericórdia e no Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários
(IAPI), quando foi convidado por Dinarte para assumir o cargo. Dary era pessoa
de extrema confiança do governador e médico de sua família.
Eider Furtado,
correspondente do Diário de Pernambuco em Natal naquela época, informou na
edição de 15 de setembro daquele jornal (pág. 7) que na primeira quinzena de
agosto Dary Dantas havia formado a Comissão Estadual de Defesa Contra a Gripe.
Esse grupo começou a estudar medidas contra a doença que se avizinhava do Rio
Grande do Norte. O diretor do Departamento de Saúde Pública também solicitou ao
governador uma verba no valor de 500 mil cruzeiros para combater a gripe no
estado.
Provavelmente
a criação dessa comissão se deveu, ao menos em parte, a divulgação de um
primeiro alarme da presença da gripe asiática entre os potiguares. Em agosto de
1957 surgiu a informação que cerca de “400 pessoas” teriam contraído a nova
doença no município de Goianinha, 50 quilômetros ao sul da capital. O surto
teria surgido na Usina Estivas, mas logo o caso foi negado e devidamente
esclarecido pelo médico Luís Antônio dos Santos Lima. O que aconteceu foi que
realmente havia naquele lugar um surto de gripe, mas de gripe sazonal. Além disso,
nesse período a gripe asiática ainda se encontrava restrita ao sul do Brasil.
Após o susto
inicial não demorou a surgir os primeiros casos comprovados da doença no Rio
Grande do Norte, ou “Cingapura”, como a doença também ficou igualmente
conhecida. NaTribuna do Norte, em O Poti e no Diário de Natal,
os principais jornais que circulavam na capital potiguar na época, é possível
conhecer detalhes desse acontecimento.
Em 25 de
setembro de 1957, na página 6, o Diário de Natal estampou que em uma
residência na Rua Apodi, na Cidade Alta, quatro pessoas estavam acamadas, com
muita febre e forte gripe. Interessante comentar que esse jornal não informou a
localização da casa e nem os nomes das pessoas doentes, mesmo sendo editado em
uma cidade com cerca de 140.000 habitantes, onde praticamente todos se
conheciam e sabiam do ocorrido.
Médicos da
Saúde Pública estiveram presentes ao local. Eles aconselharam o isolamento e
recolheram amostras dos pacientes, que foram enviados ao Rio de Janeiro por um
avião da Força Aérea Brasileira para confirmação da doença. Esse exame ocorreu
no Instituto Oswaldo Cruz, em Manguinhos, atual Fundação Oswaldo Cruz –
FIOCRUZ. O resultado foi divulgado dias depois e se confirmou a existência da
gripe asiática em Natal.
Mortes no
Tradicional Bairro do Alecrim e Cobranças
Após a chegada
da confirmação do Rio de Janeiro, Dary Dantas e os membros da Comissão pediram
calma a população e informaram que ainda “não estava formado um surto epidêmico
em Natal”. Pouco mais de uma semana depois aconteceram as primeiras mortes!
Nessa época o
bairro do Alecrim já era considerado o maior da cidade, possuindo um forte
comércio, a maior feira de alimentos, concentrando uma grande parte da
população de Natal e possuindo uma característica única e marcante – suas
principais artérias eram conhecidas pelo povo através de uma antiga numeração.
E foi nesse bairro de características tão peculiares e marcantes para os
natalenses que em 5 de outubro de 1957 duas crianças faleceram de gripe
asiática em suas casas, respectivamente nas antigas Avenidas 7 e 8[1].
Consideram
que, apesar das crianças estarem acometidas de forte gripe, suas famílias não
tomaram as “necessárias medidas preventivas”. Os jornais só não explicaram
quais eram essas medidas. Somente próximo ao final do mês de outubro é que
vamos encontrar nas páginas dos jornais algum tipo de material informativo
oriundo do Departamento de Saúde Pública explicando o que a população deveria
fazer. Aqui trago um exemplo.
Ainda em 18 de
outubro, na página 6 do Diário de Natal, é relatado que seus repórteres
realizaram um levantamento que, mesmo sem confirmação oficial, indicou que mais
de 100 pessoas com sintomas da gripe asiática eram transportadas diariamente
pelas ambulâncias Ford F-1 do SAMDU – Serviço de Assistência Médica Domiciliar
de Urgência, para o Hospital Miguel Couto, atual Hospital Universitário Onofre
Lopes – HUOL. Existiam casos graves no bairro das Rocas, mais precisamente na
Rua Floresta, perto do Canto do Mangue, não muito distante do rio Potengi. Ali
eram as crianças as mais atingidas, algumas com relatos de expectoração de
sangue do trato respiratório.
O jornal Diário
de Natal foi contundente na crítica a ação governamental: “Não obstante as
reiteradas e solenes afirmações das nossas autoridades sanitárias, de que o
assunto da gripe asiática em Natal era objeto apenas de informações alarmistas,
aí está o surto da “Cingapura” tomando conta da cidade”.
Ambulâncias
Ford F-1 do SAMDU – Serviço de Assistência Médica Domiciliar de Urgência,
partindo do Hospital Miguel Couto, em Natal.
Apesar da
gravidade do caso, não encontrei nos jornais referências sobre aplicação de
métodos de isolamento social para a contenção desse surto.
Uma Criança
Morre na Calçada
Igualmente não
encontramos material oriundo do Departamento de Saúde Pública da Comissão
Estadual de Defesa Contra a Gripe com estatísticas sobre o alcance da gripe
asiática em Natal. Por isso não temos meios de afirmar se os jornais estavam
corretos ao informarem no dia 22 de outubro, que o número de vitimas da doença
era “de aproximadamente 6.000 pessoas”. Por outro lado encontramos registros
que os profissionais da Saúde Pública já haviam visitado mais de 800 doentes em
suas residências e que em um único dia ocorreu mais de 500 notificações de
atingidos por essa gripe, apontando para uma provável estagnação na capacidade
de atendimento do Hospital Miguel Couto, o principal da cidade. Noutra parte da
reportagem informava que famílias inteiras estavam com a gripe em suas casas.
O Instituto
Oswaldo Cruz começou a enviar vacinas para Natal, mas o número foi pequeno para
a demanda. Não demorou e circulou a informação que o surto atingiu 10.000
natalenses, principalmente no bairro das Rocas.
Houve uma
situação trágica, que chamou atenção na cidade e o combativo advogado e
jornalista Luís Maranhão Filho registrou em sua coluna no Diário de Natal de
25 de outubro de 1957. No dia anterior, na calçada do Centro de Saúde da
cidade, na Avenida Junqueira Aires, atual Câmara Cascudo, foi encontrada uma
criança morta. Não existem maiores detalhes sobre seu falecimento, tendo sido
creditado a gripe asiática. Luís Maranhão foi extremamente contundente em sua
crítica ao descaso do poder público em relação à saúde do povo natalense.
Realmente as notícias envolvendo mortes trágicas de crianças em Natal,
mesmo sendo as de origem mais humilde, eram estampadas com destaque nos
jornais. Mas não nesse caso. Nem Luís Maranhão foi desmentido por algum dos
periódicos locais.
Anúncio
Precipitado do Fim da Pandemia
Cerca de
trinta dias após a chegada dessa pandemia em Natal, os jornais de 26 de outubro
destacam que o número de casos começou a declinar. Realmente alguns jornalistas
comprovaram um declínio dos casos nos locais de atendimento na capital. Um dos
membros da Comissão Estadual de Defesa Contra a Gripe atestou a redução dos
casos, tranquilizando a população. Entretanto fez questão de apontar que “o
maior número de gripados foi constatado em bairros afastados, entre a pobreza”.
Mas o anúncio
foi precipitado, pois uma semana depois novos casos surgiram, com pessoas tendo
febres de 40 graus, fortes calafrios e vômitos. Dessa vez o foco foi
principalmente na região conhecida antigamente como Alto do Juruá, no atual
bairro de Areia Preta. Nessa região, na Rua 2 de novembro, hoje Major Afonso
Magalhães, famílias inteiras foram duramente atingidas, sendo necessário o
apoio de vizinhos para solicitar socorro junto a Saúde Pública.
No dia 5 de
novembro houve um caso que mereceu bastante destaque na imprensa natalense.
Nessa época
existia o bar e restaurante Flórida, que ficava localizado na Avenida Duque de
Caxias, nº 45, Ribeira. Ali trabalhava um garçom chamado Antônio Domingos
Filho, que devido se encontrar com uma febre muito alta, pediu ajuda ao seu
colega de trabalho Abel Gomes para levá-lo ao Hospital Miguel Couto para ser
atendido. Eles foram, mas lá informaram que “ali não tratavam mais casos dessa
natureza e que eles fossem pra o SAMDU”. Nesse local o garçom teve novamente
negado qualquer tipo de atendimento. Sem jeito de resolver a situação, Abel
então levou seu amigo Antônio Domingos até a sua residência, em uma humilde
casa na Travessa Primeiro de Maio, bairro de Petrópolis. Segundo declarou Abel
Gomes aos jornais, devido ao agravamento do quadro, de madrugada Antônio saiu
pela rua gritando tresloucadamente em busca de socorro. Mas aí quem veio não
foi a Saúde Pública, mas a Polícia Militar. O pobre garçom, tido como alterado,
acabou no chão frio de uma cela na 2ª Delegacia de Polícia. O resultado foi que
às seis da manhã ele foi encontrado morto.
Logo o caso
repercutiu na Rádio Poti e outros meios de comunicação, mas nada foi feito. Não
encontrei algum pedido de abertura de inquérito, ou alguma providência por
parte do Ministério Público.
Enfim, ele era
apenas um pobre garçom!
Até gostaria,
mas certamente a atual pandemia de COVID-19 não será a última ocasião em que Natal
vai testemunhar. Mas será muito interessante que na atual conjuntura as pessoas
mais humildes e necessitadas, que é grande parcela da atual população potiguar,
venha ater por parte das autoridades o devido apoio para enfrentar essa
situação e que o caso do garçom Antônio Domingos Filho fique restrito a memória
histórica dessa terra!
NOTA
[1] Muitos imaginam até
hoje que essa situação é fruto da presença das tropas norte-americanas em Natal
durante a Segunda Guerra Mundial, onde as autoridades locais teriam numerado as
principais vias do Alecrim para facilitar a circulação dos militares
estrangeiros na área. Nada disso! Oficialmente o bairro do Alecrim foi criado
em 23 de outubro de 1911, mas existem informações que já em 1903, quando a
região ainda era um amplo matagal pontilhado por alguns sítios, ali foi criado
um traçado numerado de futuras avenidas e ruas. Mesmo sem existir uma
documentação comprobatória, acredita-se que essa delimitação foi realizada pelo
arquiteto italiano Antônio Polidrelli. Este havia sido contratado pelo poder
municipal para desenvolver o traçado da área denominada Cidade Nova (atuais
bairros de Petrópolis e Tirol) e a ideia de criar esse traçado no Alecrim tinha
o objetivo de facilitar junto a Intendência Municipal de Natal o aforamento de
terrenos dos futuros moradores. As antigas Avenidas 7 e 8 são atualmente as
Ruas dos Caicos e dos Pajeús. Sobre a história relativa a questão das
numerações das ruas do bairro do Alecrim, ver SOUZA, Itamar de. Nova História
de Natal, 2008, 2ª Ed. págs. 522 a 524. Mesmo com as numerações das antigas
avenidas e ruas do Alecrim tendo sido oficialmente abolidas em 1930, até hoje
uma grande parcela dos natalenses continua a utilizar as velhas numerações para
se localizar no bairro, inclusive o autor dessas linhas (antigo morador do
bairro, na Rua Borborema).
http://blogdomendesemendes.blogspot.com