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terça-feira, 1 de janeiro de 2013

A cangaceira Sila



Ilda Ribeiro de Souza, a ex-cangaceira "Sila", ex-esposa do cangaceiro Zé Sereno na sua obra "Angicos, Eu Sobrevivi", quando se propõe a relatar a sua história e a das mulheres do cangaço, nos transmite através de um relato franco e forte fatos provados e interessantes, repletos, acima de tudo, de drama humano na vivência de sua cultura singular. As breves transcrições estão marcadas de sangue e suor daquela que viveu na própria pele a realidade de uma época.

O PRIMEIRO ENCONTRO COM CANGACEIROS

(SILA): Algum tempo depois eu estava no mato com meu irmão João, quando de repente vimo-nos em meio a quatro ou cinco homens vestidos com roupas estranhas e armados com fuzis: era o grupo do cangaceiro Zé Baiano. Levamos um susto tremendo. Zé Baiano fez algumas ligeiras perguntas e, logo em seguida, seguiram viagem deixando-nos em paz.
Fiquei na Casa dos Sete Umbuzeiros em companhia dos meus irmãos. João não queria que eu ficasse lá, pois havia um boato que os cangaceiros levavam moças para o cangaço. João tinha receio de que eles aparecessem e me carregassem. Algum tempo depois ele me disse:
- Sila, você não vai ficar aqui; vou levá-la para casa de Tia Marieta. É mais seguro.
Eu respondi:
- Os cangaceiros não vão me carregar, porque ninguém fala mais neles. Eles devem ter ido longe – respondi-lhe. – Será que eu não posso mais morar com vocês?
No outro dia, cedinho, passaram em nossa casa sete cangaceiros: Zé Baiano (primo de Zé Sereno), Zé Sereno, Manoel Moreno e outros. Tive oportunidade de vê-los. Meu irmão tremia de medo. Então um deles, Zé Baiano, aproximou-se de João e disse-lhe:
Faça comida e vá levar para trás da casa, perto do riacho, onde estão os outros cangaceiros. Leve a moça para lá.
Eu disse a João que não iria. João insistiu:
- Você vai, porque se não for será pior; bem que eu lhe disse para que não ficasse aqui.
Resolvi então acompanhá-lo.
Amedrontados, com as pernas tremendo, seguimos até o local indicado pelo cangaceiro. Eu, bastante assustada, perguntava a mim mesma o que poderia nos acontecer, pois o medo era tanto que não podíamos nos controlar.
Chegamos e nos deparamos com aqueles homens de aspecto selvagem, sujos e maltratados. Foi quando Zé Baiano me disse:
- Não tenha medo, menina; não vamos fazer nada com você.
Não esperava por uma coisa dessas. As pernas tremiam-me e eu mal me mantive de pé. Eles ficaram me observando. Por fim, retomei o fôlego e perguntei ao meu irmão:
- Viche Maria, Mãe de Deus, o que esse homem quer comigo?
- Sei não – tornou a falar João -, mas voismicê já adivinha. Tá lhe querendo na certa!
Sai correndo sem parar e entrei em casa desesperada, como uma louca. Madrinha Marieta foi atrás de mim e segurou-me pelo braço, querendo saber o que se passava. Aos soluços, cortada pela dor, contei-lhe tudo o que meu irmão me transmitira. Madrinha fechou a cara e afastou-se para o fundo do quintal. Ia pensar, naturalmente, refletir sobre a nova situação. Aquilo de forma alguma poderia agradá-la. Entrei no quarto, passei a tranca na porta e joguei-me na cama, profundamente aborrecida. Não houve pensamento ruim que não me passasse pela cabeça naquele momento. Nesse dia, um dos que acompanharam Zé Baiano era seu primo – Zé Sereno -, que ficou de olho em mim, embora não tenha manifestado o menor interesse aparente. O tempo passou, e após alguns meses desse encontro ocasional Zé Baiano foi morto por um pequeno grupo de caatingueiros, residentes próximo ao lugar conhecido como Alagadiço. Zé Sereno já tinha seu grupo e resolveu arranjar uma companheira. Mandou avisar-me que dentro de quinze dias haveria um baile em determinado lugar, e que eu deveria estar presente, porque dali sairia para viver em sua companhia.
Entregue ao meu desespero, vi as horas passarem em branco. Por fim fui colocando os pensamentos em ordem, e já podia refletir. Mas, à medida que o tempo escoava, eu não via como mostrar ao cangaceiro que não pretendia ser um deles. E dizia a mim mesma que melhor seria morrer que viver no cangaço.
Uma vez em casa eu disse a João que queria passar uns dias em casa de Maria, nossa irmã, em Serra Negra. Chegando lá, soube que havia uma festa em casa de família, nossos antigos amigos.
Pedi então a Maria que me deixasse ir àquela festa, mas ela não me permitiu. Eu então lhe disse:
Maria, essa é a última festa que eu vou.
Por quê? – ela estranhou.
Nada respondi. Ela ficou preocupada, e eu não quis mais falar sobre a festa. Meu pai me dizia para obedecê-la, que era minha irmã mais velha.
Passei três dias com Maria, muito triste e calada; parecia mesmo uma despedida. Aproximava-se o dia em que eu me separaria de todos, e isto não saia de minha cabeça. Era horrível viver esta grande incerteza. Eu não podia nem pensar em me separar da minha família, ainda mais na situação de sair sem rumo, sem saber o que me ocorreria. E mais: sem poder dizer nada a ninguém. E os dias se passavam.
Resolvi ir à igreja e pedir a São João Batista proteção e orientação diante da situação que se apresentava em minha vida. Depois disto notei que fiquei mais destemida, mais forte para enfrentar tudo. Em silêncio, entreguei tudo a Deus.
À tardinha, embora mais calma, eu continuava pensando em tudo que estava por vir, em companhia de meus irmãos, que já haviam chegado do trabalho. De repente ouvimos pisadas fortes.
Eram os cangaceiros, meu Deus! O que fazer?
Então Zé Sereno chamou João, dizendo-lhe que o acompanhasse até uma quixabeira, perto da casa, numa fazenda que pertencera a meu avô; eles estavam lá arranchados.
No caminho Zé Sereno pediu-lhe também que arranjasse um concertista, com pandeiro e viola, e juntasse as moças para a festa que ele pretendia dar.
João seguiu para a cidade e providenciou tudo.
À noitinha, eu, meus irmãos e minhas primas dirigimo-nos à festa, e lá conhecemos os cangaceiros Balão, Manuel Moreno, Ponto Fino, Criança, Sabonete, Luís Pedro e sua esposa Neném. Eles levavam sempre para as festas uma cangaceira, para dar mais força a moçada. Todos estavam muito alegres; bebiam e dançavam.
Enquanto isso, eu e minhas primas estávamos sobressaltadas, e nem sequer conversávamos uma com as outras.
Durante o baile dancei bastante com Luís Pedro, mas pouco com Zé Sereno, evitando assim aproximar-se muito dele, na inútil tentativa de tirar da sua cabeça a idéia de levar-me consigo.
Os cangaceiros beberam a noite toda; Balão sempre presente tocando sua gaita de boca, muito alegre e sorridente.
Já às seis horas da manhã, Neném aproximou-me de mim e disse-me:
- Agora você vai embora, Sila. Zé Sereno mandou lhe dizer que é para você ir agora, assim, do jeito que você está.
Saí com todos, só com a roupa que vestia. Sentia-me como que suspensa no ar, numa horrível sensação de medo, pavor, incerteza e ainda a saudade imensa da minha casa, dos meus irmãos, enfim, de todos. Imaginava o que devia acontecer, se me deixassem no mato, ou em algum lugar que eu não conhecia. Caminhávamos pelo mato afora, todos calados.
Em verdade, há quinze dias Zé Sereno já estava decidido a levar-me. Do jeito que estava decidi arrumar uma oportunidade para dirigir-me a ele e falar-lhe. Fiz questão de não me arrumar. Entendia que, quanto pior me apresentasse, melhor seria. Nenhum cuidado especial. Mal passei o pente no cabelo; nos pés um par de alpercatas velhas e um vestido surrado no corpo. E lá fomos nós.
No caminho atravessamos um riacho que, devido às fortes chuvas da época, estava muito cheio. No meu nervosismo, caí na corrente pelo menos duas vezes. Caía e levantava-me cada vez mais desconsolada. Mas, ao mesmo tempo, satisfeita por achar que agora sim iria causar má impressão ao cangaceiro. Parecia até um pinto molhado ao final da caminhada.
- Ó xente muié, voismicê tá toda ensopada! Num tá chovendo! Tu caiu no ribeirão?
O medo me fez perder a voz; não conseguia pronunciar uma só palavra. O coração parecia querer saltar do meu peito.
Alguns dos homens fizeram cara de riso. Zé Sereno olhava-me hipnotizado. O vestido molhado colara-se ao meu corpo e desenhava minha silhueta. Eu não sabia onde ocultar minha face, tal a vergonha que sentia.
- Óia mocinha – disse ele -, eu num sou onda pra mode tá cumendo gente! Voismicê pode ficar a vontade. Ninguém vai lhe fazer mal argum. Nóis só tamo cunversando. No meio da gente só tem muié decente. Tudo pessoa de valor: Dona Maria Bonita, Dona Dadá de Curisco, Neném de Luís Pedro, Enedina e outras.
Via-se claramente que ele procurava manter a calma. Mas estava aborrecido. Levantou-se e foi até a sua barraca. De alguns bornais retirou alguns anéis de ouro e dois vidros de água de cheiro.
Ali, deu início a uma cerimônia que, sem dúvida alguma, era uma simpatia. Mandinga, feitiço, quem sabe? Passando-me uma sandália sua, deu-me ordem para que a calçasse no meu pé esquerdo. Atendi-o em silêncio, e, mesmo não entendendo a razão daquilo, fiquei desconfiada. Em seguida, obedecendo sua determinação, acompanhei-o até uns umbuzeiros que ficam a meia distância da casa. Ali Zé pronunciou algumas palavras ininteligíveis, enquanto aplicava passes em minha cabeça e ao longo do meu corpo.
O que significava toda aquela cerimônia? Jamais o soube, pois nunca falamos sobre isso.
* * *
Luís Pedro levantou-se meio escabreado, sacudiu Neném e mandou-a levantar-se. Neném acenou-me em cumprimento e, percebendo o meu vestido, perguntou-me se eu pensava em viajar daquele jeito. Respondi-lhe que só possuía vestidos na bagagem. Ela foi até as suas coisas, tirou de lá um culote e entregou-o a mim, dizendo:
- Voismicê é do meu tamanho. Um pouco mais magra, é verdade, mas do mesmo tamanho. Tome aqui. Vista até que seu homem lhe compre um pano bonito, pra mode voismicê costurar o seu.
Saímos todos pelas veredas quase fechadas da caatinga, aparentemente sem destino. Todos caminhavam calados.
Sentia-me como em outro mundo – triste, isolada de minha família, desiludida e amedrontada. Por não conhecer toda aquela gente estranha, sentia vontade de chorar. Apenas prestava atenção a tudo que se passava ao meu redor.
Dessa forma andamos o dia todo a pé. Ao meio dia eles assaram carne e a comeram com farinha de mandioca. Eu não me alimentei; não tinha fome, estava desolada.
À tardinha Neném aproximou-se de mim para conversar. Diante da situação tive uma súbita reação: uma crise de choro tomou conta de mim. Ela então me disse:
- Não chore que é pior.
Procurei inibir meu choro, esperando que Zé sereno dissesse algo – mas ele não se manifestou.
Com a chegada da noite, Zé tratou então de arranjar uma coberta; estendeu-a no chão e deitamos sobre ela. Tive de obedecê-lo e dormir com ele. Assim foi a primeira noite.
Este lugar onde dormimos ficava perto de Pinhão, no Estado de Sergipe.
De manhã caminhamos mais um pouco, até chegarmos a uma fazenda, da qual nunca soube quem era o proprietário. Lá os cangaceiros prepararam a comida. Neném chamou-me e disse:
- Menina venha comer, que assim, andando, sem se alimentar, ficará fraca e vai adoecer...coma alguma coisa.
Novamente começamos caminhar mato adentro. À medida em que andávamos, alguém ficava para trás e ia desmanchando os rastros, recolocando no seu lugar, inclusive, cada pedra que porventura fosse deslocada. Admirada perguntei:
Por que estão fazendo isso?
Para não deixar pistas pros macacos – Neném respondeu-me.
Que macacos? – perguntei.
Os macacos são os soldados, que perseguem os cangaceiros para porem fim ao cangaço. Nós os chamamos de macacos.
Esta foi minha primeira lição.
* * *
O café ficou pronto. Arroz tropeiro, rapadura, farinha e um pedaço de bode constituíam a refeição matinal. Preparavam-se para longa caminhada a pé e só esperavam comer na segunda metade do dia.
No cangaço havia o costume de os homens cozinharem, e às mulheres cabia a costura de roupas, de bornais e outras peças. No mais, davam a impressão de estarem ali como adorno.
"Eu confeccionava bornais e camisas; costurava bem e com bom gosto. Da primeira vez que vi Lampião, ele gostou tanto de um bornal que eu havia feito para Zé Sereno, que logo me encomendou um. Cumpri o seu desejo e, daquele dia em diante, passei a costurar todas as suas capangas." (Sila)
Marchávamos pela caatinga há horas. No céu, o sol quente de verão parecia querer torrar-nos. De vez em quando, porém, uma leve brisa vinha acariciar-nos o rosto, suavizando o ardor que nos queimava a pele.
Passos apressados, éramos doze seres de Deus. Mulheres, apenas duas: Neném e eu. Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro eram os três novos cangaceiros que integravam o grupo sob comando de Zé Sereno, todos eles meus irmãos consaguíneos . Acredito mesmo que entraram no cangaço para não me deixarem sozinha. Assemelhava-se a guarda-costas meus.
Os apelidos era uma das marcas registradas do cangaço. Sila conta que o seu apelido vem desde a sua infância em Poço Redondo, dado por seu pai. Já seus irmãos Manoel (chamado "Du"), Gumercindo e Antônio Paulo receberam, respectivamente, os apelidos de Novo Tempo, Mergulhão e Marinheiro de Zé Sereno, na ocasião que ingressaram no seu bando e consequentemente no cangaço.
Vestindo culote verde, bornal da mesma cor, chapéu de aba virada e cravejado de medalhas – presente de Zé -, sendo a do centro de ouro maciço, eu já tomava ares de cangaceira. Além do chapéu, tinham-me entregue um Mouser e um punhal de tamanho médio, bordado a ouro e prata. Trajada daquele jeito, fazia figura bonita e agradava ao grupo. Era evidente a alegria que sentiam em contar comigo no bando. Eu, porém, não estava bem. Volta e meia, atrasava o passo e punha-me a chorar baixinho. Zé Sereno, numa dessas vezes, aproximou-se e disse-me, como consolo;
Óia, menina, o que tá feito num se pode desfazer. Ninguém vorta mais atrás. Seca os óio e guarda sua dor pra mais tarde.
Enchi-me de coragem e retruquei raivosa:
- Os óio são meus e choro o quanto quiser.
Zé deu de ombros e continuou a caminhada. Por largo tempo manteve-se calado. "Que ficasse com as suas birras", deve ter pensado.
Em coluna dupla o bando atravessava a caatinga. À frente viajava Luís Pedro, por ser o mais experiente dos homens. No fundo, as mulheres e, cerrando fila, Zé Sereno. Cabia a ambos evitar surpresas tanto à frente quanto na retaguarda.
Meus irmãos pareciam nervosos. Cada um deles levava um fuzil, mas nem sabiam como manejá-los. Eu, de minha parte, nem mesmo tinha idéia de como segurar a Mouser. Zé garantiu que, tão logo chegássemos ao coito, nos daria a primeira instrução de manejo de arma.
Volta e meia Zé Sereno aproximava-se de mim, mas, em princípio, não dizia nada. Ora trazia-me um cantil com água, ora um pedaço de rapadura ou um punhado de farinha. Calado sempre. Parecia estar efetuando reconhecimento de terreno – sondando-me.
A viagem prosseguia e o sol já ia alto no céu.
Já perto do fim da tarde chegamos a uns juazeiros; deu-se ordem de parada, indicando que passaríamos a noite ali. As tralhas de cozinha foram retiradas do lombo do burro e logo o fogão fumegava.
Enquanto isso Neném chamou-me para um banho na fonte. Estranhei a existência de uma fonte por ali, pois não vira sequer um fio de água no decorrer do dia. Distava uns trezentos metros de nosso acampamento. Luís Pedro mandou que um de seus homens mais experientes nos acompanhasse para proteger-nos.
Ao final sentia-me mais leve; havia tirado a poeira e o cansaço do corpo.
De volta perguntei a Neném:
- Vosmicê num tem medo de ser espiada no banho por um desses home, não?
Ó xente, e eles são doidos? – retrucou Neném – Só se quiserem perder a cabeça. Luís atira no meio dos óio do cabra da peste pra gastá uma bala só. Adispois, no cangaço, temos muito respeito pelos companheiros. Home ou muié.
Comemos à vontade, pois a comida era farta e a pinga saborosa. Naquela noite conheci o sexo. Experiência ruim. Lua de mel tão amarga quanto as amarguras sofridas por mim nos dois anos seguintes vividos no cangaço.

(Texto Transcrito da Obra: Angicos Eu Sobrevivi – Oficina Cultural Mônica Buonfiglio – 1997 – Pags. 24 a 32)

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