Foi uma tarde
pressaga aquela em que na fazenda “Corituba”, de Sergipe, Ezequiel, irmão de
Virgolino, com este se desaveio e o desafiou para uma luta, a punhal,
injuriando-o com os epítetos de cego frouxo, fazedor de mal a moças donzelas,
ladrão de beira-de-estrada, dador de surra em homem desarmado e cabra covarde
que só tem fama por via dos companheiros… Devido à oportuna intervenção de
Corisco e de Pai Velho, um duelo fratricida se não verificou. Mas, desde esse
dia, Lampião passou a se mostrar taciturno e se tornou ainda mais irascível e
cruel. O olho direito, que ele tem cego e esbranquiçado, estava sempre
lacrimoso e isso neurastenizava e enfurecia o celerado.
Por outro
lado, Virgolino sentia que a maioria do bando não recebera bem a sua decisão
contra Corisco, no incidente deste com Volta Seca. Fôra o caso que, dias antes,
estando Volta Seca a torturar uma pobre velha, cujo rosto já arranhara com o
punhal, Corisco o repreendeu e, como o perverso insistente na sua maldade,
Corisco despegou-lhe uma bofetada que o atirou, desacordado, ao chão. Virgolino
metera-se entre os dois, mas desgostara Corisco, em lhe não reconhecendo razão.
Só por estarem atropelados mui de perto pela polícia, os cangaceiros não se
separaram, fragmentando o grupo. Tais ocorrências obrigavam Virgolino a
procurar escaramuças que dissipassem o mal-estar que ensombrava os ânimos da
malta. Fazia-se mister que a luta novamente os solidarizasse.
A 29 de junho
do ano passado, quando todo o sertão baiano guardava, tranquilo e feliz, o dia
onomástico de São Pedro, Virgolino, a três léguas do arraial Várzea da Ema, do
município de Curaçá, assaltou a fazenda “Formosa”, de propriedade do Cel.
Petronilo Reis. Aí incendiou duas casas e, afora outras depredações, matou, a
faca, três vacas de leite e cento e sessenta e oito (168) ovelhas que encontrou
presas num curral. Em seguida, fez juntar grande ruma de esterco, empilhou
sobre ela as reses e lanígeros abatidos e ateou fogo ao sinistro montão de
animais sacrificados. Por muitos dias um cheiro nauseabundo de carnes podres e
queimadas empestou as redondezas da fazenda reduzida a ruínas.
Após a
selvajaria desses desatinos, Lampião partiu com o seu séquito, declarando na
fazenda “Curundundu” que ia desgraçar a vila de Uauá. Então, perseguia-o mais
de perto a volante comandada pelo Tenente Arsênio Alves de Sousa. Verdadeira
marcha batida, em a qual, sem descanso, os cangaceiros venceram trinta e uma
léguas e a polícia vinte e quatro.
Foi assim que
Lampião logrou escapar aos que se lhe haviam escanchado no rastro: perto da
fazenda “Lagoa Escondida”, numa bifurcação da estrada, rumou para a direita,
indo pernoitar a 30 de junho, em Poço de Fora, iludindo, pois, o contingente
policial que prosseguiu pela esquerda, a fim de entrar pelo lado sul de Uauá.
Auxiliado por
sequazes incorporados à sua alcateia em território baiano e perfeitos
conhecedores da região, Virgolino novamente deu às de vila-diogo na madrugada
de 1° de julho, empreendendo um raid ainda mais exaustivo e ousado. Egresso das
caatingas e grotões, o bandoleiro-fantasma teve a audácia de voar sobre
Itumirim, onde chegou ao lusco-fusco do dia 2, depois, em trinta e seis horas,
haver vencido quarenta e cinco léguas! Aí reduziu a cinzas a estação
ferroviária, cortou as comunicações telegráficas com a localidade, bebeu à
farta e tentou formar um samba na casa da… Escola Pública. Mas, medroso de uma
surpresa dos seus perseguidores, arribou logo mais e foi refugiar-se, durante o
resto da noite, na Serra dos Morgados. O dia 3 assinalou o seu assalto à fazenda
“Piabas” e o seu pernoite no lugar “Buraco d’Água”.
Coincidiram
tais fatos com a fuga de cinco soldados criminosos, recolhidos à cadeia de
Bonfim. Esses fugitivos, em bilhete irônico e malcriado que deixaram ao Capitão
José Galdino, avisavam que se iam reunir a Lampião.
Em atividade,
no encalço dos detentos foragidos, a manhã de 4 de julho veio encontrar os
destacamentos da zona.
Procedentes de
Campo Formoso, o Cabo Antônio Militão da Silva e os Soldados Pedro Santana,
Cecílio Benedito, Manoel Luís de França e Leocádio Francisco da Silva pararam
em Brejão de Dentro e ali aguardaram a chegada de outros companheiros, por ser
aquele o ponto combinado de junção das forças.
Como devessem
dali ingressar na região de Gruna, penetrando em lugares insidiosos e de penoso
acesso, “lugares esquisitos”, como eufemicamente por lá se diz, os soldados
abandonaram as armas e aproveitavam o tempo de espera, escrevendo bilhetes para
suas famílias em Campo Formoso, dando-lhes conhecimento da direção que iam
tomar. Estavam todos no interior da residência de Alfredo Monteiro e, fora, o
Cabo Militão consertava os loros de uma montaria. Seriam onze horas da manhã.
Em dado
momento, Militão avistou longe, na estrada, diversos homens armados e avisou: –
Lá vêm nossos camaradas! E continuou, despreocupadamente, no reparo dos
arreios. Também as praças não tiveram a curiosidade de ver quem era que se
aproximava. A estrada faz uma curva fechada e vem desembocar abruptamente junto
à casa, motivo por que Militão logo perdeu de vista os indivíduos que julgou
serem soldados.
De súbito, o
troço aparece. Num ápice, saltam das selas Lampião, Volta Seca, Ezequiel, Pai
Velho, Corisco, Arvoredo, Moderno, Esperança, Moirão, Gato, Pernambuco e
Labareda. Virgolino já está intimando o Cabo Militão:
- Se prepare,
cabra, se prepare pra apanhar!
- PRA APANHAR,
NÃO, QUE EM HOMEM NÃO SE DÁ: – HOMEM SE MATA!
- Apois,
então, tire a cartucheira, que é pra não melar de sangue!
Mas não
findara o curto diálogo entre Virgolino e Militão e já Volta Seca desfechava neste
um tiro de Parabellum no ouvido.
Com o
estampido, acorrem os soldados, atordoados e sem os fuzis, e são recebidos por
uma saraivada de balas, quase a queima-roupa. Um deles tomba, tendo como arma
nas mãos a caneta com que inconscientemente estava a mandar o derradeiro adeus
à família. Outro, o único que logo não caiu, baleado que fôra ligeiramente num
braço, retrocede à casa e procura refugiar-se numa alcova. Cerrada descarga
atravessa a porta, prostrando-o morto pelas costas. Muitos outros disparos alvejam
ainda os moribundos, um dos quais escabuja e é sangrado. Esse infeliz chegou a
receber no corpo nove balas. Tudo isso não durara mais que instantes.
A horda
penetra na casa e Lampião, não saciado, indaga se não resta escondido por ali
mais algum macaco do gunvêrno. Alfredo Monteiro responde negativamente e
implora compaixão para si e para os seus. Lampião grita-lhe que nunca mais dê
rancho a macaco e volta ao terreiro. Dá um pontapé no cadáver de Militão e
arranca-lhe do braço as divisas de cabo, presenteando uma das fitas a Moderno e
outra a Arvoredo. Este lastima que nenhum dos mortos usasse bigode comprido: é
que ele queria torar e amarrar na fita, mode enfeitar o rabo do cavalo em que
vinha montado… Ezequiel vasculha os bolsos dos soldados. Tal busca de dinheiro
resulta infrutífera e o miserável desanda na torpeza duns insultos
pornográficos.
Estarrecido, o
dono da casa pergunta que deve fazer com os cinco cadáveres. Virgolino sacode
os ombros:
- Querendo,
enterre; não querendo, deixe os urubus comer!
Pai Velho
saúda com uma risada o dito de sarcasmo do chefe feroz.
Lampião pede
cachaça, cachaça muita que dê pra ele e a “rapaziada” festejarem a caçada do
dia.
Alfredo
Monteiro, receoso de ter de testemunhar nova chacina, adverte que outra força
de polícia está a chegar. Virgolino exalta-se e deixa a esses policiais um
recado obsceno. Depois, olha raivosa e tigrinamente as suas cinco vítimas e
ordena a Alfredo Monteiro que enterre os peste todos numa cova só, sob pena dum
ajuste de contas em regra, noutra visita inesperada. Alfredo Monteiro promete
que assim fará e pede licença para ir buscar a aguardente. Lampião diz que não
quer mais…
Todo o grupo
torna a montar.
Nisso, o
soldado Cecílio Benedito, nos últimos estertores, bole ligeiramente com um pé.
Lampião observa o movimento e saca, de novo, a pistola:
- O diabo
deste “macaco” inda está se mexendo? Macaco mexeu, quer chumbo…
E, mesmo
montado, desfecha-lhe um tiro na cabeça, que lhe arranca parte do frontal.
E esporeando
as alimárias, a cantar alegremente o “É lampa… é lampa…”, os Cavaleiros do
Crime galopam, fugindo pusilânimemente a um encontro com os policiais
esperados.
Quando o
tropel da cavalhada e a toada do hino de guerra de Lampião não se faziam mais
ouvir, foram se reabrindo as casas do Brejão e das portas e janelas umas
cabeças assustadas perscrutavam se o vilarejo já encontra restituído à sua
quietude e pacatez.
Alfredo
Monteiro, de olhos marejados, estava a espantar uns cães famintos que lambiam o
chão inda rubro, aqui e ali, do sangue dos cinco mártires do banditismo
nefando.
O sol
pompeava, na sua escalada para o zênite.
O Cabo Militão
tinha os olhos esbugalhados para o céu, como a indicar que aquele cuja firmeza
de olhar não se curvara ante a crueldade vilã do Rei do Cangaço também era
capaz de fitar o sol, o grande sol flamejante dos sertões!
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"NO TEMPO DE LAMPIAO" - Leonardo Mota
Fonte:
facebook
Página:
Raul Meneleu Mascarenhas
Grupo:
Lampião, Cangaço e Nordeste
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