*Rangel Alves
da Costa
Por suas
próprias peculiaridades, o sertão é terra de bicho agourento e ave carnicenta.
Bicho que vive na expectativa de lançar as garras naqueles desvalidos pelas
circunstâncias ou na sutil espreita de outro bicho caído de fome e fraqueza
para sangrar e acabar de matar. Para sobreviver, uns se alimentam de outros,
ainda que os restos já tenham se transformado em putrefação e carniça.
Bezerro novo,
distante da mãe, quanto mais mirradinho, fraco e desajeitado, logo se torna
presa fácil às avoantes carnicentos que rondam pelos arredores. Vaca magricela,
sem força sequer para catar a sequidão do capim, afastada do rebanho, torna-se
como em prato desejado por muitos. Bem assim com o cavalo, jumento ou jegue,
que ferido e abandonado não manhã seguinte se avistado pelos farejadores de
carne viva.
Uma cena
triste, lamentável, mas ocorrido sertões adentro. A vaca se afastou para catar
comida e deixou seu bezerrinho no sombreado de um umbuzeiro. Foi se
distanciando cada vez mais sem se dar conta do perigo que a sua pequena cria
corria. Eis que um carcará faminto, de bem do alto, lançou seu olhar e avistou
o que tanto desejava. E foi se achegando lentamente, observando se havia a
presença de outros animais, para em seguida dar o bote certeiro sobre os olhos
do bezerrinho. Sangrou, cegou, depois começou a perfurar o seu corpo com seu
pico afiado e pontudo. Logo os urubus sentiram o cheiro de sangue e cuidaram de
aproveitar o banquete.
Na distância
onde estava, mesmo percebendo a estranheza de tantos urubus rondando em profusão,
a vaca sequer imaginava o que estava ocorrendo com sua cria. Somente ao
retornar é que se deparou com a lamentável cena. Avistou somente a carcaça do
bezerrinho. Apenas ossos sujos de sangue. Berrou, mugiu, gritou sua dor, chorou
todo o seu pranto. Desesperada, aproximou-se mais e começou a lamber aqueles
restos, que eram restos de si própria, pois ali também suas entranhas. E
depois. Como que entorpecida, deitou ao lado e aí permaneceu. E ficou para
nunca mais levantar. Decidida a não se afastar daqueles ossos miúdos, foi
fraquejando até não ter mais força para retomar seu destino.
Mas nunca
esteve sozinha, em nenhum momento. Desde o seu retorno que olhos ávidos,
vorazes, sedentos de carne e sangue, se mantinham como que entrincheirados
acompanhando o instante certo para atacar. Olhos carnicentos, bicos feitos
punhais para sangrar, garras afiadas para estraçalhar a vida. Urubus, carcarás,
gaviões e outros bichos, fazem assim. Como cobra ruim que se abriga à beira da
estrada, por semanas ou meses à espera do calcanhar certo para atacar, do mesmo
modo agem os cruéis assassinos do sertão. Num ato de terrível crueldade, nem
esperaram a vaca dar seu último suspiro. Aproveitaram-se da fragilidade e
perpetraram a ação de sempre: atacar pelos olhos, cegar, e depois dar conta do
resto. Até deixar somente a carcaça.
As épocas das
secas grandes, das estiagens prolongadas, quando os bichos emagrecem, afinam e,
sem forças, vai caindo de passo a passo, então tudo se torna uma festança para
os carnicentos. Fragilizadas demais, as crias não possuem qualquer força para
se defender. Torna-se perigoso andar pelos pastos ou mesmo descansar em
qualquer lugar e muito mais quando há um tombo e essa queda se torna em agrura.
Muitas vezes não há nem tempo de esforçar para levantar ou ser socorridas, vez
que as garras e os bicos de repente já estão por cima sem dar a menor chance de
salvação. O fim é inevitável.
Por isso que
ao lado do sofrimento pela seca, da angústia sem fim em ter o bicho faminto e
sedento sem nada poder fazer, o sertanejo ainda tem de espantar o agouro que
ronda o seu curral. Acaso coruja comece a piar noite adentro, coisa boa não
acontecerá. É sinal de que a carniça logo vai se espalhar pela terra
esturricada. O pior é que não há nada a fazer. Não pode fazer vigília noite e
dia para que os carnicentos não ataquem. E sabe que ele mesmo corre perigo. Só
tem o couro e o osso. E sabe que gavião e carcará maltratam até a vida humana.
Escritor
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