Por Antonio Corrêa Sobrinho
Do cangaço
sempre se ocupou a imprensa brasileira, ela que antes do rádio e da televisão,
era a voz do mundo, a tradutora, a intérprete dos fatos e acontecimentos, por
isso, é ela, a imprensa escrita, o prelo, fonte primordial da história do
cangaço.
Jornais, como o Estado de S. Paulo, A Folha, o Globo e inúmeros outros diários
brasileiros, especialmente os impressos nas capitais nordestinas, não precisavam
ser rogados para divulgar notícias, histórias, fazer comentários, apresentar e
dar opiniões sobre o banditismo no sertão daqueles idos, principalmente quando
estavam em cartaz façanhas de Antônio Silvino e de Lampião, principais ícones
do aterrorizante fenômeno. Porque era um forte chamariz de leitores, o cangaço,
perdendo apenas para as notícias da Guerra.
Neste texto,
de 1930, o escritor, advogado e jornalista cearense, Leonardo Mota (1891-1948),
reconhecidamente um dos pioneiros da pesquisa sobre o cangaço, nos delicia com
casos envolvendo Silvino, Lampião e Lucas da Feira; artigo que, não é de todo
improvável ter sido lido por Lampião e Silvino, quem sabe?
Jornal O GLOBO
– 23/10/1930
EPISÓDIOS DA
VIDA DOS CANGACEIROS
NO SERTÃO DAS
TOCAIAS
Brincadeira de
homem... – Um precursor de Lampião
O cangaceiro Antonio Silvino
Antônio Silvino fazia-se respeitado de seus satélites. Disciplinava-os. Sabia
assegurar a conveniente distância que deve existir entre comandantes e
comandados. Jamais permitiu atrocidades que não houvesse, em pessoa,
determinado.
Chegara ele com a sua récua a uma fazenda. À hora do improvisado almoço, um
cabra, o Tempestade, se deu ao luxo de reclamar:
- “Ô arroz ensosso de todos os diabos!”
Um relâmpago de cólera fulgiu nos olhos de Silvino, que, findo o repasto, foi
falar à mulher do fazendeiro:
- “Dona, a senhora tem sal em casa?”
- “Tenho, seu capitão. Eu vi aquele homem não gostar... Vossenhoria me
desculpe, me perdoe o arroz sair ensosso! foi coisa do avexame, do aperreio do
preparo...”
- “Nhóra não, não é por isso não: eu quero é saber se a senhora me pode vender
meio litro do seu sal.”
- “Posso lhe ceder; vender, não! O capitão leve o sal que não lhe custa nada e
é dado de gosto!”
- “Nhóra não, não é pra carregar não. É um ensinamento que eu quero dar naquele
cabrocha que falou do arroz. Me vá ver meio litro, por bondade!”
Atendido, Silvino pediu uma bacia, derramou dentro o sal, dissolveu-o com uma
porção d’água, e voltando ao terreiro, onde o Tempestade esgaravatava a
dentadura, obrigou-o, de punhal à mão, a beber toda aquela água horrivelmente
salgada:
- “Isso é pra você, seu bruto, perder o costume de botar defeito no que lhe
dão, de graça! Engula! Ou engole, ou morre! Comeu ensosso, beba salgado que é
pra carga não ficar torta... Cabra sem criação!”
Daí a pouco, o Tempestade padecia sob a ação do purgante mais que enérgico...
Virgolino Ferreira da Silva
Lampião aparceira-se com os miseráveis a quem capitaneia. Troca insultos e
graçolas com os mesmos. Falta-lhe o espírito autoritário de Silvino. Apenas na
hora dos combates é cegamente obedecido: todos creem na sua invicta estratégia
de guerrilheiro caboclo.
Antonio Ferreira irmão de Lampião
Antônio Ferreira irmão de Virgulino também se acamaradava em excesso com os
restantes componentes do bando. Um dia, Lampião mandou que o mano e mais quatro
homens fossem à casa dum seu protetor, e esperou no mato que regressassem. No
alpendre da casa em questão havia uma rede armada. Os cinco bandidos,
empurrando-se violentamente, disputavam o gozo de alguns momentos na tipoia.
Nesse ruge-ruge de encontrões um fuzil cai no solo e dispara, prostrando morto
Antônio Ferreira, atingido pelo tiro no mamilo esquerdo.
Compungidos, os quatro criminosos voltaram imediatamente à presença de
Virgulino. Conduziram o cadáver e narraram a casualidade da fatal ocorrência.
Lampião ouviu-os silencioso. A cabroeira, solidária com o chefe, censura os
recém-vindos, lembrando que “por via duma dessas” é que o povo diz que
brincadeira de homem cheira a defunto”. Sabino Gomes, mais perverso, insinua
que a história está mal contada”...
Lampião decide: não quer mais a companhia dos autores da vadiação em que morreu
o Antônio. Expulsa-os do grupo. O armamento, porém, era seu, dele. Exige
imediata restituição. E apenas os quatro se haviam despojado das armas.
Lampião, auxiliado por Sabino, os liquida, a tiros e facadas...
Um Precursor de Lampião
O cangaceiro Lucas da Feira
Na primeira metade do século passado, um negro foi o terror do sertão baiano.
Era o “Lucas da Feira”, assim chamado por ter sido o município de Feira de
Santana teatro de toda a sua atuação delituosa.
Durante vinte anos, Lucas foi o assombro, o pesadelo dos sertanejos.
Contavam-se por centenas as suas vítimas. O negro salteador, ladrão e
assassino, raptou e violentou inúmeras donzelas, matando-lhes os pais e irmãos,
se estes ofereciam resistência à sua lubricidade.
Há uma lenda, segundo a qual Lucas começou a esmorecer no seu fadário
repelente, depois que, ao passar pela sepultura duma virgem que assassinara e
enterrara no mato, sentiu um perfume delicioso e viu de cima da cova levantar o
voo um bando garrulo de pombas brancas. Isso lhe teria, desde então,
irremediavelmente quebrantado o ânimo feroz.
As façanhas desse precursor de Lampião perduram na tradição oral dos feirenses.
Quando entre eles estive, não me foi difícil reunir as notas que estão propiciando
o tracejamento destas linhas.
O velho tabaréu, a quem perguntei se Lucas era valente, deu um muxoxo e
contestou:
- “O que ele era era um grandíssimo desalmado. Era perverso, era levado de não
sei-sei-que-diga, mas era frouxo: urinou-se todo na hora da morte...”
Não lhe quis obtemperar que a micção não é estranhável nas mortes por
enforcamento. Preferi deixa-lo desatar a língua, a seu modo:
- Lucas foi o diabo em figura de cristão. Deus o perdoe! Aquilo não era gente.
Uma vez ele agarrou um negro beiçudo na estrada e sabe que é que fez com ele?
Prendeu com um prego caibral o beiço do infeliz numa árvore. Quando acabou
disse ao suplicante que ia não seu não seu aonde e mais tarde voltaria para o
castrar. Foi ele se afastar, o negro fez finca-pé, rasgou o beiço e ganhou o
mundo na carreira, porque só assim se livrava da outra ameaça, a mais
perigosa... E sabe? o Lucas estava escondido numa moita e se rindo: ele queria
era que o negro mesmo rasgasse o beiço... Doutra feita, batendo palma e
cantando, ele fez uma mulher grávida dançar, dando umbigadas nos estrepes dum
pé de mandacaru. Aquele Lucas foi o cão em pintura de gente!
Encontrando-se, um
dia, com um miserável que vinha aqui para Feira, trazendo uma carga de chicotes
para vender, ele fez o desgraçado botar a carga abaixo e com cada chicote
deu-lhe quatro, cinco, lapadas de arrancar couro e cabelo. Quando cansou o
braço explicou: - “Isso é pra quando você tiver de vender os seus chicotes,
poder garantir de ciência própria que eles são bons.”
- E foi fácil prender o Lucas da Feira?
- Qual fácil! foi o diabo! O governo da Província chegou a prometer um prêmio
de não sei quando contos de réis a quem desse conta dele vivo ou morto. Mas o
negro, para se esconder, tinha pauta com o capiroto! Quando ele foi preso houve
um festão que durou três dias, aqui na Feira de Santana. Gente que nunca tinha
dançado desenferrujou as canelas. Na ocasião em que ele, com as pernas
amarradas por baixo da barriga dum cavalo, entrava na cidade, os sinos das
igrejas tocavam que parecia chegada de bispo, o foguetório estralava nos ares,
não ficou ninguém dentro das casas, e deu-se até o milagre de um paralítico, um
entrevado, sair correndo de rua afora, só para ir ver o Lucas...”
- E quem foi que o conseguiu prender?
- “Foi o Cazumbá. Esse Cazumbá era um oficial de justiça criminoso, que, com a
promessa de perdão do crime e com o olho no dinheiro do prêmio, perseguiu e
prendeu o Lucas. Na hora da prisão, deu-lhe dois tiros no braço esquerdo. O
braço arruinou e os médicos tiveram de o cortar. Dizia o finado meu avô que foi
uma coisa engraçada... Depois da operação um menino pegou o braço de Lucas e
saiu correndo pra rua, pra mostrar ele ao povo. Um sapateiro correu em casa,
trouxe uma palmatória e esmagou com “bolos”, de sustância a mão de Lucas, o
povo todo achando graça nisso, satisfeito...”
E a sorrir também, e como que a despertar reminiscências, o velho feirense
concluiu:
- “Sim! eu ia me esquecendo: sabe quem foi o carrasco do Lucas, na hora de ele
ser pendurado na força do Campo do Gado? Pro senhor ver as voltas que o mundo
dá! A justiça de Deus tarda, mas não falta. Quem faz neste mundo, aqui mesmo
paga. O carrasco de Lucas foi um rapaz cujo pai o Lucas tinha assassinado e
cujas três irmãs o Lucas tinha desonrado, quando esse rapaz ainda era
meninote...
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