Por Sérgio Dantas
Uma vitória da inteligência sobre a força
Há meses Lampião sumira dos noticiários dos jornais. O ano de 1926 encerra-se sem grandes novidades sobre a horda do famoso cangaceiro de Vila Bela. Bem instalado e seguro no ‘coito’ da Serra do Diamante, do poderoso Coronel Isaías Arruda, Lampião sai da aparente inatividade apenas em fins de abril de 1927. Naquele fim de mês, o bandoleiro deixa o refúgio e pratica assaltos em pequenos vilarejos situados na região noroeste da Paraíba, entre os municípios de Cajazeiras e São José de Piranhas. São ataques rápidos, com vistas apenas ao saque. A proximidade desta parte da Paraíba com o valhacouto do ‘dono’ de Missão Velha facilita sobremaneira a ação do bando.
Alguns dos defensores de Uiraúna.
Ao centro, de paletó escuro, Luiz Rodrigues. Na extrema direita, sentado, o
Subdelegado Nelson Leite.
De fato, no dia 15 de maio
daquele ano, liderando uma falange de cerca de trinta e cinco homens, Lampião
se prepara para tomar de assalto a Vila de Belém do Arrojado - atual cidade
paraibana de Uiraúna. Há dias que ‘olheiros’ residentes em sítios da fronteira
já haviam sondado o vilarejo e o cangaceiro – decerto bem ciente das condições
do lugar – crê que tem plena chance de sucesso na empreitada que pretende levar
avante.
o Arruado de Belém situa-se junto
à fronteira do Rio Grande do Norte e é então inexpressivo. Ali não há mais que
cento e trinta casas e uma igreja singela. Comércio pobre ou quase inexistente.
Também ali não está destacado sequer um contingente policial para manutenção da
ordem ou para oferecimento de uma defesa – mesmo que acanhada – no caso de um
eventual ataque de cangaceiros. A ‘ordem’ no povoado é garantida somente por um
Subdelegado civil, o potiguar Nelson Leite. Apesar de reiteradas notícias sobre
incursões de cangaceiros naquela parte da Paraíba nos últimos dias, o Governo
do Estado parece ignorar os eventos propalados pelos jornais e pela boca do
povo. Apesar de vários reclamos por parte de proeminentes de Belém, o Estado
não enviara tropa regular para a localidade.
O início da tarde daquele dia 15
de maio, no entanto, o sertanejo Leonardo Pinheiro percebe a marcha de
cangaceiros em direção a Belém. Sem demora, espora o cavalo e entra no povoado
em sonoro alarde:
-“Vem cangaceiro por aí! Vem
cangaceiro por aí! Parece que é Lampião e não está a mais que umas duas
léguas!”
Enquanto a horda marcha em busca
do vilarejo, Nelson Leite se apressa em organizar uma defesa. Sangue quente,
cioso de suas obrigações, Leite parece disposto a sacrificar a própria vida na
defesa da comunidade que lhe fora confiada.
Abandonados à própria sorte, os
habitantes de Belém – incentivados por Nelson Leite - tratam de se armar e
garantir a resistência do lugar. Civis são convocados e há mesmo os que
comparecem voluntariamente para pegar em armas. Ao final do rápido
recrutamento, chega-se à desanimadora soma de onze homens apenas. Um
contingente ínfimo que tentará rechaçar um bando com cerca de trinta e cinco
cangaceiros. Uma luta desigual – se considerarmos a proporção de três
bandoleiros para cada defensor e a falta de experiência de guerrilha dos
citadinos. Por volta das dezessete horas, finalmente, Lampião avizinha-se da
Vila. O frágil agrupamento de casas lhe parece excessivamente frágil e torna-se
ainda mais amiudado pela sombra da serra de Luís Gomes, não muito distante
dali. “Um alvo fácil”, provavelmente terá pensado o poderoso cangaceiro. O
desenrolar dos fatos, porém, lhe revelará um grave erro de prognóstico.
Em que pese a correria
desenfreada que se seguiu ao alarma dado por Leonardo Pinheiro, os homens de
Nelson Leite aprestam munição e armas. Tudo é feito com rapidez e disciplina.Ao
mesmo tempo, mulheres, velhos e crianças – a seguir igualmente os apelos do
Subdelegado – buscam refúgio na caatinga ou em sítios de familiares fincados
nos arredores de Belém. Pequenos “tesouros” são previamente enterrados em
lugares seguros. Potes de barro, caixas de papelão, latas de querosene:
qualquer coisa serve como invólucro para as ‘economias’ adquiridas ao longo de
anos de trabalho.
Em pouco tempo, os defensores se
organizam e estão posicionados em lugares previamente definidos pelo
Subdelegado. Dedos nervosos aguardam o desfecho do ataque. Uma testemunha
registra os momentos iniciais do entrave:
“O ‘delegado’ Nelson Leite
distribuiu uns homens nos pontos mais altos da rua principal, dois outros
guarnecendo as laterais e três instalados no teto da Igreja. Quando Lampião
entrou com o bando, pela ‘rua velha’, começou a fuzilaria”. (Sinforosa Claudina
de Galiza, entrevista).
Nelson Leite, de fato, engendrara
bom plano. Distribuíra os poucos rifles e fuzis disponíveis com os onze
defensores. Repartiu com irrepreensível parcimônia a rala munição que tinha ao
seu dispor. Os melhores atiradores foram destacados para pontos estratégicos.
Na teto da igreja - prédio mais alto e com abrangente visão dos arredores -
posicionaram-se Luís Rodrigues, Moisés Lauriano, José Teotônio e Joaquim
Estevão. O tempo corre lento. Não há novidades. Até perto das oito horas nem
sinal da sinistra patuléia de chapéu de couro. A espera alongada transforma as
trincheiras em ninhos de ansiedade.
Matriz Jesus, Maria e José, Uiraúna atualmente.
De súbito, Luís Rodrigues dá o
alarma. Alguém se aproxima. O luar denuncia vultos sorrateiros. Homens armados
aproximam-se do povoado pela ‘rua da Proa’. É o início da invasão. De pronto,
grande incêndio ilumina a noite na pequena Belém. Grossas labaredas passam a
consumir a casa de um agricultor e espalham-se rapidamente para um antigo
curral e plantação de milho já há dias quebrado. O incêndio. Método infalível
para incutir terror aos sitiados.
Josefa Augusta Fernandes, bem
jovem à época do evento, anota a origem do fogaréu:
"Lampião começou destruindo
a propriedade do finado João Gabriel, tendo em seguida tocado fogo nos currais
e nas plantações de feijão e milho. O fogo serviu para alertar os homens da
cidade, sendo que eles já estavam em posição nos principais pontos daqui”.
(Maria do Socorro Fernandes, entrevista).
Não havia mais o que esperar. Ao
primeiro grito de comando de Nelson Leite, trava-se pesado tiroteio. Lampião,
decerto, não esperava semelhante reação. A fantástica fuzilaria oriunda da Vila
lhe faz recuar. De efeito, os tiros vindos da rua da Proa tornam inviável uma
entrada por aqueles lados.
Sem sucesso na primeira
investida, o chefe de cangaço tenta confundir os defensores entrincheirados.
Sob sua batuta, os bandoleiros passam a gritar, urrar como animais e a
praguejar insultos e xingamentos aos defensores e suas famílias. A permear a
gritaria, grossas baterias de tiros.
O rei-do-cangaço deseja tomar
Belém. Tentará de todas as maneiras penetrar no vilarejo para vilipendiar suas
casas e lhes extrair até o último ‘cobre’. Sem demora, ordena aos comandados a
‘abertura’ de uma linha de fogo pela lateral, com o fito de invadir a Vila pelo
flanco oposto.
Nada, entretanto, parece gerar
resultado prático. A posição privilegiada dos atiradores locados no telhado da
igreja permite que tiros sejam disparados em todas as direções. A resistência
agiganta-se com estrondos de repercussão fantástica e de curiosa origem. Nelson
Leite improvisara – no pouco tempo que dispôs antes da consecução do ataque -
algumas “ronqueiras” e logo começou a fazer uso dos artefatos. Os estrondos
causados pelas bombas caseiras são assustadores e surpreendentemente surtem
efeito. Um simples improviso que, ao que tudo faz crer, parece realmente ser a
chave para uma vitória. (1)
Em pouco, qualquer objeto
metálico em formato cilíndrico - e vazado pelo menos em um dos lados - torna-se
invólucro para manufatura dos pesados rojões. Joel Vieira, com dezoito anos à
época do fato, registrou em depoimento:
“Os que estavam no alto da
Igreja, começaram a atirar de ponto e também para dentro da igreja, causando um
eco que parecia canhão. O Subdelegado também tinha improvisado umas
‘ronqueiras’, feitas com pólvora socada dentro de latas, e de quando em quando estourava
uma. Já estava escuro, e aqueles tiros davam a impressão que havia um canhão
com a gente”.
No alto da igreja, Luis Rodrigues
- artilheiro mais aguerrido – resolve acrescentar estrondos adicionais aos
estampidos das ‘ronqueiras’ improvisadas pelo Subdelegado. Dessa forma, com o
intuito de causar impacto ainda maior, começa a atirar quase em paralelo à
lateral da nave do prédio sagrado. Estrondos fantásticos, causados pelo eco do
salão quase vazio, dão ainda mais ânimo aos outros defensores entrincheirados
no teto da igreja. Decide-se que alguns deles, alternadamente, passarão a
atirar também para dentro da nave.
A estratégia funciona. Os
estrondos se multiplicam. De fato, para quem está do lado de fora, resta a
impressão de que algum tipo de canhão está sendo utilizado. Os cangaceiros,
atarantados, mantém posição de cautela e não avançam. O escuro da noite
enevoada pela fumaça dos disparos os impedem de enxergar, na verdade, o tipo de
“arma” adicional que ora se usa na defesa do arruado. O engodo paulatinamente
funciona.
No calor da peleja, porém, passos
apressados denunciam silhueta humana esgueirando-se próximo à igreja. A
escuridão da noite não permite distingui-la com precisão. Da torre principal um
defensor atira. O civil Antônio Correia é atingido. Confundiram-no com um
cangaceiro. Correia morre pouco tempo depois em razão do profundo ferimento à
altura do pulmão. É a única baixa durante o combate.
Os cangaceiros não desistem e
tornam a investir contra o território inimigo por uma ruela lateral à igreja.
Lampião brada ordens aos seus homens. Todos, contudo, parecem hesitar em razão
dos estrondos que continuam a reverberar entre as casas da pequena Belém.
Do lado dos defensores, um
voluntário prontifica-se para preparar novas ronqueiras, de forma ininterrupta,
servindo-se como espécie de municiador.
Dominado pela ira, Lampião manda
reacender o fogo que arde tênue na propriedade de João Gabriel. O vento
rapidamente espalha as labaredas em espantosa velocidade. As chamas consomem
vacas e bezerros cativos no cercado contíguo a casa. Urros de dor de animais
engolidos pelas chamas desenham dantesco suplício. Poucos escapam ao bizarro
holocausto.
A derradeira tentativa de
conquista do povoado fracassa. Com pesar, os cangaceiros reconhecem que não conseguirão
penetrar em Belém.
O desconhecimento dos pontos de
defesa, o espocar das “ronqueiras”, o ribombar de tiros reverberados pelo salão
da igreja, a configuração física da vila, o cansaço da longa marcha até ali.
Tudo parece sugerir uma retirada. Lampião não demora em perceber o malogro da
empreitada:
- Vamos sair para economizar
munição! – grita furioso.
Ainda se ouvem tiros por mais um
quarto de hora. Aos poucos os cangaceiros se retiram do campo de luta. Disparos
tornam-se esparsos. Ao compasso da retirada, a fuzilaria regride até reinar o
mais absoluto silêncio. Lampião e seus homens deixam Belém em definitivo. É
ainda Joel Vieira quem destaca:
“Eles tentaram muito, mas não
conseguiram entrar. Antes das sete horas da noite, já tinham ido embora. No dia
seguinte, o festejo foi grande, pois todos pensavam que ia morrer muita gente,
mas não. Apenas um rapaz morreu vítima de uma ‘bala doida’ e caiu ali perto da
Igreja. Tirando o incêndio na propriedade de João Gabriel, o prejuízo aqui foi
pouco. Com pouco recurso, a gente botou Lampião prá correr!”.
E Lampião, de fato, jamais voltou
a Uiraúna. Nos dias seguintes, um telegrama é enviado para as principais
cidades do sertão do Ceará, Paraíba e Rio Grande do Norte. Anunciava-se a
vitória de um povo contra o poderoso rei do cangaço. O Intendente local assinou
o comunicado:
“Fomos atacados dia 15 famigerado
Lampião. Resistimos cerrado fogo, bandoleiros recuaram. Vítima tiroteio
Antônio”. (a) José Caboclo.
É a vitória inconteste de um
sumário grupo de cidadãos contra quase quarenta cangaceiros. Uma vitória
nascida da confiança de homens do povo; sertanejos comuns. Não houve – como
aconteceu em Mossoró – um grande lapso de tempo para a preparação de uma
defesa. Não houve reuniões; não se teve tempo para comprar armas modernas. Não
havia sequer uma torre na igrejinha da cidade. Existia, apenas, a vontade de
preservar os próprios lares.
Uiraúna se defendeu heroicamente,
a exemplo da resistência mostrada pela pequena Nazaré, em Pernambuco, quatro
anos antes. Uiraúna impediu a entrada dos cangaceiros de Lampião como faria a
população sergipana de Capela, liderada pelo destemido Mano Rocha, três anos
mais tarde.
A vitória do povo de Uiraúna foi
obtida sem recursos, sem alarde e sem exploração midiática posterior. Vitória
conseguida sem um ‘notável planejamento prévio’ e sem colóquios barulhentos.
Vitória de um pequeno grupo de homens pegos de surpresa pelo maioral do
cangaço. Vitória, porém, recheada de atos do mais real e verdadeiro heroísmo.
Vitória, enfim, da inteligência sobre a força.
Sérgio Dantas
Sérgio Augusto S. Dantas é autor
dos livros “Lampião no Rio Grande do Norte – A História da Grande Jornada”
(2005), “Antônio Silvino – O Cangaceiro, o Homem, o Mito” (2006) e “Lampião:
Entre a Espada e a Lei” (2008).
NOTA:
(1) s.f. – Ronqueira: “Cano de
ferro, preso a uma tora de madeira e cheio de pólvora, o qual produz grande
detonação quando se lhe inflama a escorva”. (Aurélio). As ronqueiras já haviam
sido largamente usadas em revoltas populares, como na guerra de Canudos. N do
A.
FONTES UTILIZADAS:
A União, edições de 17 e 18 de
maio de 1927.
DANTAS, Sérgio Augusto de Souza.
LAMPIÃO NO RIO GRANDE DO NORTE – A HISTÓRIA DA GRANDE JORNADA. Editora
Cartgraf, Natal/RN. 2005. 452 pgs.
SOUZA, Tânia Maria de. UIRAÚNA NO
ROTEIRO DE LAMPIÃO, in Revista Polígono, 1997, 158 pgs.
Entrevistas concedidas ao autor
por Maria do Socorro Fernandes (2003), Joel Vieira da Silva (2001), Josefa
Augusta Fernandes (2000) e Sinforoza Claudina de Galiza (2000).
Matriz Jesus, Maria e José,
Uiraúna atualmente.
http://cariricangaco.blogspot.com.br/2009/12/o-ataque-de-lampiao-uirauna-porsergio.html
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