Por Raul Meneleu Mascarenhas
As estórias
sobre Lampião são muitas. Uma das mais interessantes que achei - acho que todas
são interessantes - foi a contada por Frederico Bezerra Maciel. um pernambucano
da "molesta" que foi a festa de casamento de uma prima legítima de
Lampião.
Como excelente contador da história de Lampião era também um grande
estudioso sobre diversos assuntos aja visto que era um poliglota com estudos e
formação em diversas áreas das ciências humanas. Só pra vocês terem uma ideia
quem era o "home" vou citar sua sabedoria que primeiro foi um dom de
Deus dado a ele desde menino, sua inteligência fora do comum.
Nasceu
em 1912. Era Padre ( Sacerdote), com estudos eclesiásticos em São
Paulo, Rio de Janeiro e Olinda, especializados na Europa (Universidade
Gregoriana de Roma; França; Suíça; sociologia, parapsicologia, psicoterapia,
arte, estudos bíblicos...) e, por último, Técnico Agrícola em Pernambuco. Além
disso, poeta, compositor musical, desenhista mormente arquitetônico e homem de
ação e atuação social. Pois bem, foi ele quem escreveu um dos melhores relatos sobre
o cangaceiro, quando escreveu "Lampião, Seu Tempo e Seu
Reinado" são 6 volumes pra o leitor ter uma melhor (e grande) ideia o
que era o fenômeno Lampião.
Pois bem,
então vamos ao acontecido:
O casamento de
Licor (prima de Lampião)
No arruado de Nazaré nos indos de 1923, era o cochicho entre os moradores,
esse casamento e a vinda de Lampião para assistir esse evento. Contava Nazaré
com uma capela, vinte e sete edificações ( casas, casebres e quartos) alinhadas
em uma única rua, sendo doze do lado do riacho Ipueiras, dez no riacho Carqueja
e cinco ao sul, de frente para a capela. Era assunto palpitante e preocupante.
Como em todo lugar que junte gente, tinha ali naquela pequena povoação o ponto
certo pra se ouvir as "urtimas" e esse é claro, era a barbearia de
Manuel Flor que segundo o Padre Frederico, era o local onde
"aviciados em conversas de toda versidade" reuniam-se para
"sortar as premeras do dia".
- "Tem muita volante esgravetando esse sertão brabo na persiga de
Lampião!"
E citavam seus comandantes, homens de têmpera de aço, a perseguir o famoso
cangaceiro e seu bando.
- "Mas Lampião diz que gosta que persigam ele e açula pra briga de vera. O
cabra é da peste!"
- "Nunca mais fartou volante aqui. É uma atrás da outra."
- "Inté se espera uma no casamento de Licô."
- E Lampião num vem mermo pru casamento da prima!"
- "Danega! Já tou vendo: vai ser bala quiném os trinta!"
Rapazes e meninotes não davam palpite. Apenas ouviam, aperuando.
Depois do banho de cuia no fim das lidas do dia, cheirando a folha de mato
novo, ao mesmo tempo mesmo tempo que preparavam a ceia de coalhada adoçada
com rapadura raspada, pão de milho e café, três cabrochas bisbilhoteiras
tagarelavam:
— "Visse o vestido de Licô como está dolero?
— "Os apreparo da festa são grande mesmo!"
— "Pie só: sabe quem vem pra festa?
— "Lampião!"
— "Ele e os menino. Tem cada um da pontinha!..."
— "Eu acho Juriti e Antônio Rosa os mais bonito".
— "Dextá, o mais bonito é Lampião!"
— "Ah! isso é", — confirmaram as outras duas a uma só voz.
— "Açoita os mais todos!"
Sá Leopoldina, cabocla escura e franzina, a cabeça enrolada com um regô, dona
do único hotel local, resumido a uma latada, coberta de mato, em frente do
chalezinho de taipa onde vivia. Servindo almoço a dois fregueses de passagem
para o vilarejo de Santa Maria, comentava se rindo toda:
— "Lampião tem o coração muito bom para as fraqueza dos pobre. Inté ajuda
com dinheiro e de-comer. Toda a vez que aparece pruraqui, compra muito pano nas
loja de seu Zé Tiburtino, de seu Quinca e de seu Gominho e dá a pobreza. As
irmãs de Mané Neto recebero bastante vestido".
Enquanto eram fritados os mandins que pescara num poço do riacho Ipueiras e
aguardava os aficionados do jogo de que era aviciado, Raimundo do Pico, sentado
num tamborete na calçada de sua casa e muito ancho na sua sanfona de oito
baixos, tocava "Mulher Rendeira", dizendo para os passantes: —
"Gosto dela! Foi Lampião que fez os verso e a musga se alembrando de sua
avó, a Tia Jacosa, que criou ele e era rendeira. ."
O casamento de Licor foi o momento culminante do rompimento definitivo, que aos
poucos vinha se processando, em desde 1919, através de tranças e atritos
frequentes, entre os Ferreiras e nazarenos.
Maria Licor Ferreira de Lima, simplesmente Licor, era prima legítima de
Lampião, cujas mães eram irmãs. Sabedor de seu casamento, chegou Lampião no dia
marcado para sua realização, a 31 de julho de 1923. Ao sol ardente e faiscante
do meio dia, penetraram, inesperadamente, na povoação, dezesseis cangaceiros na
ativa, sob o comando de seu garboso e elegante chefe, Lampião.
Além de seus irmãos Antônio e Livino, tinha Meia Noite, Juriti e seu irmão
Batista, Manuel Tubiba, Chá Preto, o corneteiro Firmo, Caixa de Fósforo,
Piloto... Antes, arredadas duas léguas para trás, deixara estrategicamente
Lampião, perto da serra do Pico, na fazenda Enforcado, de seu amigo Pedro de
Engrácia, um grupo tático de reserva: oito cangaceiros sob o mando de um cabra
macho, Antônio Rosa.
Entre as armas, portavam os cangaceiros rifles papo amarelo e cruzeta, exceção
de Lampião e de Chá Preto que conduziam mosquetões. Traziam, também, alguns
chicotes de fio cortado da linha telegráfica.
Postadas sentinelas em cada esquina da rua, espalharam-se os demais pelas
casas, indo logo beber truaca e zinebra "Gato" nas vendas de João
Ferreira e Enoque de Sá Menezes. Surpreendida, assustou-se a população. De logo
correram boatos: que Lampião tinha vindo para ajustar contas... tirar forra de
questões passadas... aquelas Peias eram para dar pisas...
O povo todo sabia que não era coisa do gosto de Lampião aquele casamento de sua
prima com Enoque, um sujeito calabar, suspeito de informante à polícia dos
movimentos do seu grupo. O destacamento policial local, de seis praças sob o
comando do cabo João Cabecinha, cujo quartel era a casa-da-rua cedida por seu
dono, Gomes, havia sido retirado pelo delegado de Floresta.
Certo de mesmo, a propalada vinda de forças volantes para aqueles dias.
Cerca das duas da tarde. Pela estrada, vindo de Vila Bela, chegara, com seis
horas de viagem, o vigário da freguezia, Padre José Kehrle, ou somente Padre
José, mais por simplificação do falar do que pela dificuldade da pronúncia do
sobrenome alemão.
Montava a cavalo, guarda-pó branco revestindo-lhe a batina preta e grande
chapéu de palha na cabeça e ensombrando-lhe o rosto vermelhão, onde pespegadas
as duas bolas azuis de seus olhos buliçosos e vivos.
Lampião tocando na sanfona de Raimundo do Pico, debaixo da latada da feira no
meio da rua. Os cabras por todos os lados. Com a chegada de seu vigário, os cangaceiros,
nos seus alegramentos, soltaram foguetes, salvando seu estimado amigo e
conselheiro. Com os papocos, o animal espantou-se muito, quase Derrubando o
reverendo cavaleiro no chão.
Um dos cabras, porém, dominou a montada, segurando fortemente as rédeas abaixo
da brida. Os outros se aproximaram, e pedindo a bença beijavam a mão do padre,
que os abençoava e retribuía os cumprimentos, satisfeito e agradecido.
Costumava o bom vigário, nas desobrigas mensais em Nazaré, hospedar-se na casa
de Antônio Gomes Jurubeba, ou simplesmente Gomes. Mas, este, logo da chegada
dos cangaceiros, fugiu para sua fazenda, deixando a casa trancada. Ficou assim
desarvorado o vigário, no meio da rua, por um momento sem a ter para onde ir.
Não teve dúvidas João Ferreira, acolhendo-o, imediatamente e de muito gosto, em
sua residência. atitude insólita de Gomes, taxada de "ignorância",
porque não tirava as coisas por menos, e censurada até por amigos e parentes
como "afrontosa" ao padre, acirrou ainda mais os ânimos desconfiados,
arredios, prevenidos e recalcados de toda 'aquela gente. Aceso assim o estopim
de uma explosão preparada e prestes a rebentar em consequências irreversíveis.
Confiado no apoio e no respeito que o vigário imprimia com sua presença na
terra, Alfredo Ferreira de Lima, irmão da noiva, sentindo o ambiente tenso
reinante, fora ter com Lampião, fazendo-lhe ver que não ficava bem, num dia de
festa como aquele, a sua vinda com o bando assim solto, acintosamente armado,
e, às bicadas em desde que chegaram.
Meio agastado, Lampião olhou-o a fito com olhar desafiador e o dedo nas fuças
do primo:
— "Deixe de bestage! Eu sóstou você acolhendo bandido de gravata, bandido
encapado..." Referia-se a certas autoridades que faziam muito pior do que
os cangaceiros.
E, ainda puando: — "Nós também somos gente, podemos participar da
festa". Nesse momento oportuno apareceu um homem de muito preceito e
respeitado, Cândido Ferreira que, auxiliado pelo Padre José, pôs termo
àquela discussão e convidou Lampião a ir à sua casa.
Na residência de Cândido começou Lampião a puxar o fole. Os cabras dançando com
as moças... muita alegria... Cândido, de sobrosso, reclamou essa dança a modo
de não se comprometer depois com as autoridades embuanceiras. Lampião,
compreensivo e sem dizer nada, guardou a sanfona. Porém, seu irmão Livino,
enticado com a atitude do tio estragando aquela gostosa e singela brincadeira,
ficou com a goitana e disgranido ameaçou: — "Pois aqui ninguém dança mais,
senão tudo se acabal..." Deu de mão de sua mausa e levantando-a para o
alto, sortiu a sala com gritos repetidos: "... se acaba Nazaré!" E
mais: — "Não tou esquecido da cicatriz no ombro! Quero todos os rifles de
todo mundo agora, aqui, senão boto fogo nas propriedades".
Foi um tendéu danado... Padre José conseguiu a custo amoitar o ânimo
exaltado dele, sob promessa de que não haveria dança. E aproveitou o ensejo
para mandar os noivos se aprontarem logo.
Esperava Livino pelo tocador, Luís, de Andréza, gente de Zé Saturnino,
contratado para a festa dos noivos. — "Quero dar uma pisa nele e rasgar a
harmônica". Mas o tocador, sabendo em caminho, da presença de Lampião, no
casamento, deixara-se, escabreado, ficar na fazenda Zé Dias, de Chico Flor,
onde estava homiziado Luís Soriano, e dali mesmo se esgueirou, sumindo-se, que
não era besta, não.
O cortejo
Às quatro horas da tarde, saiu o préstito nupcial para a igrejola, com muitos
convidados fazendo par, braço dado, exibindo-a lordeza matuta e ladeados de
alguns cangaceiros, respeitosos, chapéus na mão.
Nessa ocasião apareceu Davi Jurubeba com estranha idéia, que depois se deu o
nome, mais estranho ainda, de "conspiração". Vendo os nazarenos
perdidos, Davi teve a idéia de convidar Manuel e Euclides Flor para escolherem
tantos nazarenos quantos dessem para cada um se encarregar de matar um
cangaceiro. Os cangaceiros não estavam juntos, mas espalhados pelas casas de
Cândido Ferreira, D. Joaninha Ferreira, João Ferreira, Anízia da Ipueira... o
que facilitaria o "serviço". Essa "opinião de doído" teve
imediata repulsa de João Flor: — ".É, vocês faz isto e eu vou morrer?»
Significando que não dava certo e temia por sua sorte.
A noiva, como sempre, objeto máximo das atenções. Vestida de branco vuale
suíço, comprido véu descendo da grinalda — um primor de capela com arranjos de
flores de laranjeira de seda branca e botões de goma —, enfim toda linda,
distribuindo sorrisos, uma graça de brejeirice... Na passagem do acompanhamento
por frente da casa de Cândido, os que estavam sentados em cadeiras na calçada
se levantaram, mas Antônio Ferreira ostensivamente virou as costas. Além de não
simpatizar com o noivo, suspeito de falso e denunciante, curtia ele paixão
arrecolhida, de penar e de tristeza, pela noiva, com quem, outrora, antes do
cangaço, apiançava casar-se.
Após o casamento, a fim de desanuviar o ambiente, combinaram os parentes da
noiva botar mesa, na casa dela própria, onde os cangaceiros, de apetite aceso,
se serviriam juntamente com o Padre José. Durante a janta, tendo Lampião
sentado a seu lado, o Padre José, que lhe tinha amizade e muito o admirava,
persistente aconselhava: — "Deixe essa vida. Você não é para estar nesse
bando. Você .não é ovelha negra, desgarrada..." — "Num tem jeito, não
— respondia Lampião. Num quiseram assim? Mataram meus pais. Desmantelaram minha
família e negócios. Querem me matar também. Vou até o fim... Ë o meu
destino!"
A contrafesta
Terminada a janta, que foi lauta e de tudo o que o prato sertanejo dispõe, aos
insistentes pedidos de seus tios Cândido e João, e de sua tia D. Joaninha, foi
Lampião, com os seus, fazer arranchação na fazenda do velho preto Antônio do
Campo Alegre, obra de menos de quinhentas braças do povoado, do outro lado do
Ipueiras.
O bando passou a noite na casa de Sebastião Eusébio onde Livino, ferido, se refugiara,
em 1919. À luz amarelenta e vacilante de cuviteiros fumacentos, uns Jogando
bozó, outros dançando com cabrochas vindas da rua, outros versejando
cantigas no improviso, a sanfona sempre roncando...
Aproveitando a ida de Lampião com seu grupo para Campo Alegre, saíram os
nazarenos, nas caladas da noite, para se armarem. Entre eles, Davi Jurubeba,
Manuel e Euclides Flor, Gomes Jurubeba, Manuel e Pedro Gomes... aos quais
se juntaram Mais outros, ao amanhecer, num total de quinze. Intencionavam cedinho
ocupar a 'dia e esperar pelos cangaceiros, mas acharam que eles, os nazarenos,
eram "poucos".
Aos acordes animantes da "Mulher Rendeira", foi repisada com ovações
a quadra sarcástica:
"Os cabras de Nazaré
Chorava que faz horror
Com
pena das muié
Que Lampião carregou".
O vilarejo, porém, afogado dentro duma noite desalegrada e de cruviana...
Nenhum pé de pessoa na rua. Apenas o grugunhado de gente na casa da noiva, sob
a luz dos pavios espevitados das placas.
O Carreiro de Santiago luminando lá na escurideza do infinito...
Cantos de galos tristes rasgando pela madrugada o silêncio da natureza...
No oco de um pau seco, caburés, frientos e arrepiados, piando, agoirentos... De
vez em vez, e isto até o quebrar da barra, em revezo contínuo, chegava a Nazaré
um cangaceiro.
Encontrando-se com dois deles, perguntou Cândido:
— "Que é que vocês estão fazendo aqui?"
— "A gente — repostou um deles — está jogando lá, e passa uma pessoa e
diz: — "Vamos pra rua?" e a gente vai..." Mentira, a modo de
ocultar que estavam boscando, inteirando se havia dança.
A Missa
Quando foi o rasgar do dia seguinte, 1° de agosto, chegaram mais dois
cangaceiros na rua e foram logo se justificando diante de Cândido, atento a
seus movimentos:
— "Passemos a noite inteira sonhando uma voz que mandava a gente ir pra
Missa. A gente, também, é cristão, ninguém é cão, não".
A pouco e pouco os outros foram chegando até se completarem os dezesseis.
Da calçada da capela, adonde desarriaram o equipamento, ensarilhando as armas,
em cujo entrançamento das bocas se dependuravam as cartucheiras, deitados no
chão os bornais refertos e cobertos pelos chapéus de couro, os dezesseis
assistiam, com toda a fé e respeito, à Missa, que foi cedo, às 7,00; porque seu
vigário estava vexado, tinha de ir logo simbora. A pequena igreja estava dura
de gente atochada. Gente do arruado e de toda a redondeza. O canto do Oficio da
Imaculada Conceição se arrastava, dominantemente por vozes femininas, quiném
querendo não chegar ao fim, numa latomia dolente característica da sofrida alma
sertaneja:
— "Dai pressa Senhora
Em favor do mundo,
Pois vos reconhece
Como defensora".
Para sua breve prática, o padre tomou por tema o profeta Jeremias (17,8): —
"O coração do homem é dissimulado e perverso". Depois da Missa, os
cangaceiros retomaram o equipamento. maioria saiu para fazer restos de compras.
— "Tudo correu bem, na santa paz, graças a Deus!" — dizia o vigário,
a satisfação sublinhada nas faces cheias com um sorriso.
O segundo fogo
Lampião, com alguns, apenas aguardava, antes de partir, que o padre terminasse
uns batizados a fim de se despedir e receber a bença dele. Nesse quando,
coincidiu ser Lampião informado pelas sentinelas e ouvir, ao mesmo tempo, de
alguém se aproximando:
— "Vigie! Que cumandita de gente, lá longe, na estrada! Será que vêm pra
feira?"
Lampião, de detrás da casa de João Ferreira, mão em pala sobre a testa,
buscando acomodar a vista, exclamou alteando as sobrancelhas.
— "É macaco!"
A disgraceira estava feita!
Nunca houve tanta gritaiage e correria do povo, que se esbandaiava por todos os
lados, doidamente... Lampião, agindo com rapidez e eficiência, sempre se
revelando autêntico comandante inteligente e seguro, imprimindo assim confiança
aos seus, imediatamente apitou chamando seu pessoal.
Antônio Ferreira, com outros, estava na barbearia cortando o cabelo e fazendo a
barba. Ajuntou, em menos de um sufragante, os homens diante de Lampião, que,
calmo e firme, tracejou, com técnica, o cinturão defensivo, estabelecendo os
pontos de operação fora da rua e dentro das casas e muros, distribuindo os
piquetes de defesa, instruindo para não se perder munição à toa, sem objetivo.
Depois, pegou de um cavalo pombo-seleiro, ali amarrado no pé da quixabeira
plantada mesmo defronte da casa de João Ferreira e pertencente a um amigo, e
enviou nele um positivo, que num átimo avoou o corpo em cima da sela, para ver
Antônio Rosa, no Enforcado, com instrução de dar uma retaguarda, para o que
deveria tomar o caminho do outro lado, descendo pela margem direita do riacho
da Ema.
De suas posições de combate dentro dos muros das casas, os cangaceiros furavam
buracos enviezados na parede, formando assim "torneiras", onde
enfiavam o cano dos rifles para atirar.
Livino Ferreira, esse esconjurado do medo, entrincheirou-se na casa de D.
Anízia, mesmo em cima do fogo! A volante de mais de trinta praças, sob o
comando do sargento Bento Senhorzinho Alencar, vinda em diligência da zona de
Pajeú, fora notada logo ao irromper, em fila indiana, a sudoeste.
Ao topar com o riacho Carqueja, parte da soldadesca foi logo se entrincheirando
ao longo das ribanceiras barrentas; outra parte vadeiou o leito seco e arenoso
do mesmo riacho tomando posição de ataque pelo lado sul, agachando-se por trás
da amontoeira de pedra do pequeno serrote que mirava de soslaio; a entrada da
rua.
O cabo Manuel Amaro, nutrido na peba* e no gosto de contar pabulagem,
temeramente se achegou mais para frente dessa linha de ataque, amalocando-se
atrás de uma grande pedra arredondada.
* Cachaça. A denominada "peba" ou "rinchona" é
fabricada no sertão e nos agrestes por processo sintético: mistura de álcool,
açúcar preto e água. O açúcar preto era o de torrão, de forma, de bangué, o
chamado pão-de-açúcar. Em sua substituição. usava-se o açúcar sumeno, mascavo
ou demerara, cristalizado e de cor amarelo-queimado. O preparo dessa cachaça se
faz em tachos. É, portanto, urna aguardente ordinária, ou cachaça. Um de seus
sinônimos: "lasca-peito". Na zona canavieira da "Mata" ou
do "Sul", a aguardente é extraída da cana-de,' açúcar ou do mel de
cabaú, melaço ou mel de furo (escorrido do açúcar preto por, um furo no
depósito). destilada em alambique (raro o de barro). A primeira destilada
chama-se aguardente "de cabeça" a média, aguardente "boa";
a terceira, restante, fraca de teor alcoólico, mais água que álcool,
denomina-se "caxixi".
Por volta das nove horas, rompeu o tiroteio e prosseguiu, cerrado e violento,
trancando o mundo... Bonito que fazia gosto a fuzilaria seca no estrondo dos
mosquetões e os estampidos fofos dos rifles! Vez por outra parava. Parecia que
tinha acabado. As mu-lheres, dentro de casa suspiravam de alívio. Mas, era só
um arejo de momentos, nas mudanças dos combatentes para melhores posições. Em
seguida, recomeçava intenso, danasco, em rajadas tatalantes, debaixo de
palavrões e insultos, o sangue cada vez mais esquentando.
Partido do meio da rua, ouvia-se o toque guerreiro da "Mulher
Rendeira". Era Lampião, nos intervalos em que dirigia a luta e atirava também,
com sua sanfona animando os cabras. Os nazarenos, conluiados por João Flor,
aproveitaram a oportunidade para se levantarem em armas contra Lampião. Lá para
as dez horas, articularam-se com a polícia, entrincheirando-se por trás da
cerca de pau-a-pique do cercado da fazenda Campo Alegre, do lado de cá do
Ipueiras.
Eram uns quinze homens armados, entre os quais João Flor com seus filhos
Euclides e Manuel, os dois irmãos João Domingos e Luís Soriano, Pedro Gomes que
portava pistola máuser FN, dois rapazes de fora e Gomes Jurubeba com o pessoal
que trouxera para isto de sua fazenda Jenipapo.
Davi Jurubeba, que viera de mãos abanando, armou-se com o fuzil de Zé Preto, o
único "aspençada" da volante. Este, chega ia que ia, todo
entusiasmado, se protegendo por trás de uma quixabeira.
Divulgando-o, Lampião avisou a Chá Preto que combatia de dentro da barbearia.
Atirando de ponto, com seguridade, Chá Preto gritou: — "Lá vai macaco da
gota!" Atingindo-o no braço e avoando-o contrafeito de dor, fora de combate.
O cangaceiro largou desadorada risadona de mangação. A polícia e os paisanos
estabeleceram verdadeiro bolsão ou semicerco ao tomarem posições no flanco sul
e parte do Poente e em toda a linha do flanco nascente.
Na Igreja
Desde o início do tumulto provocado pelo alarme, o padre José mandou fechar
imediatamente as portas da capela pelo sacristão, Zé Rufino, o qual em seguida
escapuliu, fugindo montado num cavalo em osso, em disparada louca, numa toada
só, até esbarrar, cinco léguas adiante, na fazenda São Miguel.
O padre amparou-se na parede entre as duas portas da entrada. E mandou as
pessoas, que ficaram dentro, deitarem-se no chão da nave. Passou o vigário o
tempo todo suando, nervoso e pálido, com o rosário na mão, rezando por suas
ovelhas desavindas. Poucos balaços alcançaram as paredes externas da capela.
Quase meio-dia. A luta, com bem quatro horas de duração, continuava indecisa.
Lampião falou com Cândido para abrir um buraco na parede da casa dele a modo de
estabelecer uma passagem para a casa de D. Joaninha. Cândido discordou e,
aperriado com a insistência do sobrinho, foi tirar o padre da capela, assim
mesmo, debaixo de todo o tiroteio, e levá-lo para a casa de João Ferreira.
A retirada
Ali, na casa do irmão, com muito pedido e imploração, obteve Cândido, com a
ajuda do padre, que o opinioso Lampião se decidisse retirar da localidade,
principalmente em atenção a seu vigário, que não podia ficar prejudicado diante
de compromissos inadiáveis em Vila Bela.
Antes, porém, de se afastar, gritou Lampião para os adversários:
— "Cambada de macaco! Covardes! Vou sair, não por covardia, mas atendendo
ao pedido de meus dois grandes amigos, Padre José e tio Cândido Ferreira".
Enquanto, a um sinal seu — a pistola descarregada ininterruptamente — ia se
reunindo o grupo em frente à casa de João Ferreira, coincidiu, de novo, as
sentinelas lhe avisarem o irrompimento de outra força, que avançava pelo flanco
norte, podendo dar ataque de retaguarda e fechar o grupo em perigosíssmo cerco.
Era uma volante de mais de trinta praças, sob o comando do sargento João
Francisco, de alcunha João Fininho, vinda das bandas de Vila Bela e, como a
primeira, a chamado do próprio Enoque, o noivo, em carta secreta ao então ao
comandante da polícia, ten.-cel. João Nunes.
Lampião compreendendo as posições inimigas, agora envolventes, com
superioridade numérica e bélica, e temendo o esgotarnento de sua munição,
ordenou impetuosa esfuziada, modo de, atarantando o inimigo e aproveitando o
fumaceiro, - a retirada ficar facilitada e garantida.
"Cumpadre, foi tanto papoco no oco do mundo que -nunca vi! — o panavueiro
cobriu tudo! Maldei que tinha chega o fim do mundo!..."
Pelo caminho, à tangente, lançado do oitão direito da capela, os cabras, todos
ilesos, se retiraram, aos xingos e pilhérias, agachando-se e rebolando,
correndo e sempre atirando.
Cruzaram o valado seco do riacho, subiram pela margem direita, mais adiante se
encontrando com o grupo de Antônio Rosa, vindo à toda para o contra-ataque.
Mas era tarde. Empalhara-se ele com a aproximação da segunda volante, que o
aturdira, ficando sem saber que rumo tomar. E embrenharam-se todos os
cangaceiros na caatinga...
A danação
Terminado o tiroteio de mais de três horas, os atacantes, desconfiados de
alguma das indecifráveis ciladas do astucioso Lampião, demoraram bem meia hora
para penetrar na rua, assim mesmo cautelosamente. Mas, quando entraram,
deu de súbito uma doideira dos diabos naquela soldadesca, que começaram a
lançar, assim na doida, disparate de balas nas paredes, portas, janelas, por
toda parte, chegando mesmo os projéteis a pegar em quadros de santos pendurados
nas paredes do interior de algumas casas momentaneamente abertas.
Desencadeou-se, então, novo pânico. Correrias, gritos, choros, portas e janelas
aos baques se fechando outra vez. Incontinenti reclamou o Padre José ao
sargento Senhorzinho aquela desordem, o qual, de pronto, ordenou que cessasse.
Com mais pouco chegava a volante do sargento Fininho. A rua esborrava de soldado.
Dada por Fininho uma batida por perto, no derredor da povoação, para certeza do
afastamento dos cangaceiros. Depois vieram os interrogatórios sobre quem ou não
coitei-ro, as acusações fáceis, ameaças de toda sorte, ou sejam de pisa, de
capar, de sangrar, de saquear, de incendiar... O terror! A vítima principal
naturalmente tinha de ser a família Ferreira ali domiciliada.
Quem pôde, fugiu, no seu animal ou a pé, ou se escondeu. A situação agora pior
do que a anterior, pois sob o guante da autoridade, despótica, absoluta,
oficial.
E, lá vai o pobre do Padre José, pressuroso e amargurado, suando e exausto —
anjo providencial da paz — defender de novo o povo e restituir-lhe a
tranqüilidade.
Conformado, senão convencido, com as muitas explicações e justificativas do
vigário, o sargento Senhorzinho saiu batendo naquelas portas ainda fechadas de
medo:
— "Podem abrirem. Tá todo mundo agarantido".
De todo o jeito, porém, aquele povo, pobre e sacrificado, humilde e abandonado,
teve de pagar, e muito caro, uma dívida estranha: almoço com bebida e tudo mais
para tanto sol-dado!...
Guarnecendo o vilarejo contra uma daquelas possíveis e perigosas surtidas de
Lampião, a soldadesca, refestelada e quente, de entusiasmo vibrante, cantava —
coisa curiosa! — "Mulher Rendeira", como se fosse essa canção o hino
comum daqueles sertões sangrentos! ...
Consumou-se nesse segundo tiroteio a intriga definitiva e gadal entre Lampião e
os nazarenos.
A família Ferreira daí em diante sofreu os piores vexames, ao ponto de ter,
mais tarde, de se retirar da localidade. Entretanto, essa família fora sempre a
desvelada defensora e salvadora de Nazaré contra os propósitos e as investidas
de Lampião. Logo nesse mesmo dia 19 de agosto, dois fatos lamentáveis:
a) O sargento Zé de Xanda, com um tiro, espatifou o grande e belo espelho de
cristal da sala de visita da casa de D. Joaninha Ferreira.
b) Apareceu o tenente Senhorzinho Alencar querendo obrigar a mesma D. Joaninha
a entregar os vestidos da primeira comunhão das meninas Josefa e Dulce, filhas
de Antônio Matilde e que ela criava. Alegava o tenente que os vestidos
pertenciam às filhas do finado Gonzaga. Exigia, também, as sapatinas e os
trancelins. Chamados, à presença do tenente: o senhor João Cominho, da loja
onde foi comprada a fazenda; a costureira D. Ernestina Correia Cruz; Tonheiro,
o portador dos vestidos prontos; e René, outra testemunha de tudo. Genésio
Ferreira, irmão da noiva Licor, procurou Davi Jurubeba Respondeu que ele
obtivesse do tenente o nome da pessoa que lhe dera a informação falsa.
respondeu o militar: — "De uma parenta da viúva de Gonzaga, aqui residente
(e disse o nome)..."
A família Ferreira ainda hoje é muito grata a Davi Jurubeba e a Manuel Neto, os
quais, apesar de inimigos figadais de Lampião e seus irmãos do cangaço,
sempre respeitaram e até defenderam os outros membros da familia o seus
bens.
O
PADRE JOSÉ KEHRLE
Padre José
Kehrle. Nascido em 1891, em Wurttemberg, Alemanha. Veio para o Brasil em 1909.
Beneditino e veterinário. Sacerdote em 1914. Como padre secular desenvolveu, no
sertão, intensa atividade apostólica, além da construção e reforma de igrejas.
Ocupou altos cargos e missões na diocese de Pesqueira, ao mesmo tempo que, por
infeliz contraste, chega às raias do incrível o que sofreu da parte de bispos.
Vigário de Vila Bela (Serra Talhada) de 1922 a 1936, conheceu e acompanhou toda
a trajetória de Lampião no cangaço. Sua força moral sobre ele quase se igualava
à do Padre Cícero. Porém, a esse superava no conhecimento do foro íntimo.
Lampião era seu confidente. Diante do Padre Kehrle despia sua realeza
cangaceiresca para se tornar simples ovelha, nem sempre dócil por motivações
extrínsecas. Realmente, grande parte da vida de Lampião não pode ser escrita
desligada desse virtuosissmo sacerdote, que chegou mesmo ao impossível de
retirar cangaceiros do seu bando. Em 1936, no sítio Guarda, da serra de
Ororubá, perto de Cimbres, município de Pesqueira, testemunhou, com sérias
averiguações, as aparições de Nossa Senhora dos Graças a uma humilde camponezinha,
depois freira conversa. Nessa ocasião, indignou-se contra as medidas violentas
usadas pelo bispo que se valeu da polícia para acabar com aquele
"fanatismo", de qualquer modo, "mesmo debaixo de pau", o
que, Iamentavelmente, aconteceu àquela pobre gente que, na simplicidade de sua
fé, acorria ao local. Muitos os episódios interessantíssimos em sua vida que
merecia escrita para edificação espiritual, principalmente dos sacerdotes. Há
anos vivia ele em Buíque (PE), carregando uma saudável velhice dentro um
exuberante espírito, cada vez mais acentuando o traço predominante de sua alma
— a caridade, quando a 4-8-1978 faleceu.
Pois bem, cabe
a cada um ao ler sobre fatos como esse e outros para dizerem se Lampião era
Herói ou Bandido. Uns chegam a dizer que ele era uma mistura dos dois
adjetivos. Vemos em sua estadia no povoado de Nazaré, que ele estava ciente de
sua situação, esta levada por intrigas que descambou para a violência. Lampião
foi uma cria do sistema latifundiário brasileiro onde imperava o coronelismo.
A filha de
Lampião e Maria Bonita, em exposição sobre o Cangaço no Centro de Arte e
Cultura Dragão do Mar na cidade de Fortaleza capital do Ceará em
entrevista diz que as pessoas precisam conhecer esse movimento que se deu
na região nordeste do Brasil em que seu pai foi o maior expoente e
personagem. Diz que Lampião tinha um pouco de Herói e Bandido. Abaixo alguns
testemunhos para que avaliemos o que foi o Cangaço e seu principal expoente
Lampião.
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