Material do acervo do pesquisador Raul Meneleu Mascarenhas
BEATOS E
CANGACEIROS
Esse livro
editado no ano de 1920 de autoria de Xavier de Oliveira, nos relata as estórias
de beatos e cangaceiros, como história real e observação pessoal do autor, que
desde o ano de 1909, em sala de aula do Colégio São José, na cidade do
Crato, Ceará, ter sido dado um trabalho escolar aos alunos, para desenvolverem
o tema O Cangaço no Cariry. Nesse artigo, trago a atenção para um beato que
viveu na cidade do Juazeiro do Norte, terra do Padre Cícero Romão Batista, a
partir do ano de 1894, quando ali chegou para pagar penitências, como um
romeiro qualquer. Trazia marcado em sua alma um crime, como a estória abaixo
lhe dirá qual foi, e a Síndrome de Jerusalém que trata-se de um grupo de
transtornos mentais, envolvendo a ideia obsessiva de temáticas religiosas,
delírios e ideias psicóticas, que surgem após uma visita à cidade de Jerusalém,
e que em artigo EVENTOS MARCANTES DO CARIRI CANGAÇO 2015 – Edição de Luxo,
faço menção, quando digo que tal síndrome é o nome dado a um grupo de fenômenos
mentais envolvendo a presença de ideias obsessivas de temática religiosa,
delírios ou outras experiências de cunho psicótico que são desencadeadas por
alguns que visitam a cidade. Na Jerusalém Brasileira, o Juazeiro do "Padim
Ciço" cidade onde respira-se religiosidade, não poderia ser diferente,
especialistas da área acreditam que esta síndrome trata-se de um transtorno
dissociativo histérico, no qual indivíduos geram outra personalidade, em
decorrência da sobrecarga do tema religioso que paira no ar e digo eu, por
pesquisas sobre o tema, quando uma pessoa tem uma alta carga de culpa, ao
aderir à religião, torna-se um fanático.
Não é
exclusiva de uma única religião, porém acomete mais frequentemente judeus e
cristãos de diferentes formações sócio-econômicas. O primeiro a identificar
esta síndrome foi o Dr. Yair Bar-El, ex-diretor do hospital psiquiátrico Kfar
Shaul da cidade de Jerusalém. Este médico examinou 470 turistas e considerou-os
temporariamente insanos, entre os anos de 1979 e 1993. Desse total, 66% eram
judeus, 33% eram cristãos e 1% não tinha religião definida.
Mas vamos à
estória do Beato da Cruz, que deixo ipsis litteris assim como encontrei nesse
livro. Uma narrativa bonita e marcante de um homem arrependido que incorporou a
Sídrome do Juazeiro dos santos e beatos:
Que é um beato
lá no meio religioso de Joazeiro do Padre Cicero? É um sujeito celibatário, que
faz votos de castidade (real ou apparentemente), que não tem profissão, porque
deixou de trabalhar, e que vive da caridade dos bons e das explorações aos
crentes. Passa o dia a rezar nas egrejas, a visitar os enfermos, a enterrar os
mortos, a ensinar orações aos crédulos, tudo de occôrdo com os preceitos do
catecismo! Veste á maneira de um frade: uma batina de algodão tinto de preto,
uma cruz ás costas, um cordão de São Francisco amarrado á cintura, uma dezena
de rosados. uma centena de bentinhos de São Bento, uns saquinhos com breves
religiosos e com orações poderosas, tudo pendurado do pescoço.
São geralmente individuos vagabundos, hypocritas, delirantes religiosos, ou
bandidos! Não cabe aqui a historia dos beatos do Joazeiro, visto que, além do
Beato da Cruz, apenas dois deles, porque incluidos no numero dos famosos
cangaceiros do Nordeste, merecem descriptos: o Beato Vicente e o Beato
Ricardo.
O Beato da Cruz
não era um cangaceiro. Não andava de arma longa, nem de arma curta, nem mesmo
de facão, e apenas, trazia um punhal occulto na sua batina azul (excepção entre
os de sua classe. sua batina era azul, em vez de preta) de modo a não ser
percebido por ninguem.
O Beato da Cruz não era, propriamente um cangaceiro! Apenas, dizem os romeiros
que o conheciam do Rio Grande do Norte, sua ferra natal, quando era ahi pelos
seos vinte annos, assassinou seu pae. Não sei, ninguem sabe as razões que o
levaram ao parricidio. E por isso, mais dificio se torna fazer um juizo
approximado a respeito da molestia que lhe deve ter perturbado o mente, desde
então.
De uma feita, os guarda-locaes Pedro Araujo, Zé de Binda e Zé Biá, a mando de
um famoso João Bento, por esse tempo delegado da então povoação do Joazeiro,
quizeram desinferrufar os seos facões em suas costas. Mas se arrependeram da
empreza. O beato arrancou de debaixo da sua batina azul o seo língua de peba
(um punhal de dois gumes, estreito e longo) e com a cruz numa mão, e com o
punhal na outra, fez debandar a tropa que o queria surrar.
— Uai... Uai... Uai... meo Pae, perdoae-lhes que não sabem o que fazem — disse,
embainhando a arma terrivel, e em pranto, marchou, corcunda, a cruz ás
costas, pelo beco da Velha Chica do Sobrado acima.
Que eu saiba, foi essa a sua segunda façanha, e a unica que praticou durante
sua longa permanencia em Cariry. Não devia, pois, figurar neste livro, que
trato apenas, dos famosos guerrilheiros que conheci nos sertões nordestinos. Em
verdade. fui busca-lo no material que possúo para a — JERUSALEM BRASILEIRA
(Jaozeiro Padre Cicero), ora em estudos. E só o fiz, para o fim de, com a sua
interessante figura de beato penitente, dar uma idéa exata e per- feita ao
leitor, do que vem a ser essa entidade exotica e singular, propria do meio
religioso, que é o Joazeiro do Padre Cicero. Voltemos ao beato.
Ahi pelo anno de 1894, um rico fazendeiro norte-rio-grandense, de nome José da
Cruz, como tantos outros milhares de sertanejos, veio em romaria a Joazeiro,
pagar uma promessa que fizera a Nossa Senhora das Dores. padroeira do santo
logar, e ao Padre Cicero. Empolgado o seo espirito fraco pelo sentimento de
religiosidade que ali observou nos romeiros residentes, encontrou, assim, o
campo onde logo puderam medrar com exuberancia as idéas delirantes de que já se
achava possuido. Tanto chegou e, para logo, se tornou o que se vê da sua figura
macabra de beato penitente.
Assim, vestido
á frade, e cruz ao ombro, a rezar nas egrejas, a ler a biblia e as historias
dos santos, começou por querer imitar o Santo João Baptista, sem dispensar, nem
mesmo o seo cordeirinho manso, o animal sagrado dos israelitas. Era para se
penitenciar dos seos peccados mortaes. Homem de côr branca, de grandes olhos
azues, sem nenhum estygma physico apparente de degenerescencia, de quando o
conheço (e foi desde que me entendo) até dois annos, quando felecêo, sua vida
foi sempre a mesma: rezar nas egrejas e occupar-se das coisas de Deus. Humor
triste, facies abatida, olhar piedoso de perfeito visionario, em constante
anciedade, era sua preoccupação unica salvar sua alma das penas eter-nas ! Era
para isso que passava a vida inteira a fazer penitencia! Não sei se confessava
sempre, o que não é provavel; mas é certo que levava o dia inteiro a ir de uma
para outra egreja, a postar-se de joelhos, contricto, deante do altar do Senhor
Morto, a orar em extase, a se lastimar, a chorar, a dizer-se culpado de estar
ali crucificado o Filho de Maria, o meigo Nazareno de Belém e rei de Judá. -
Uai... uai... uai... meo Pai, fazia o beato, prostrado aos pés da cruz, numa
anciedade indescriptivel, offegante, a fazer caretas, banhado em lagrimas e
coberto de suor.
Na mesa do
Revd. Padre Luiz Maranhão de Lacerda, vigario de Milagres, num dia de 1910 eu
estava, quando, com sorpreza para mim, portas a dentro, entrou elle cantando,
em voz sonora, e em som de cantochão, o seo bemdicto predilecto:
Na
quinta-feira maior,
O Deus Jesus Christo previa,
Que na sexta-feira santa,
Ás tres horas elle morria.
Uai... Uai . .
. Uai . . meo Pai!
As ultimas palavras de sua toada plangente, desfez-se em pranto o beato. Ainda
era o mesmo. Havia, seguramente, seis annos não o via. Fizera progresso nos
habitos de religioso, pois já então, estava com a sua cruz de penitente cheia
de milagres que obrara para os fieis que tinham fé em sua santidade, em seo
prestigio junto a todos os santos do céo e junto ao proprio Deus !...
— Uai. . . Uai... Uai. . . meo Pai! disse em prantos, banhado em lagrimas.
cahindo de joelhos aos pés do sacerdote e beijando-lhe a batina.
— Sente-se ahi, José, deixe-se de choro e vamos comer, disse para elle o bom do
parocho, apon-tando-lhe uma cadeira á mesa.
E o beato
fez-nos companhia no agape. Puxei então de conversação com elle, e durante todo
o almoço. falámos de Juazeiro. Disse-lhe o mêdo que me causava quando menino, o
via aos pés da cruz, ou deante do Senhor Morto, ao meio dia em ponto, a chorar,
a gemer dolorosamente... Uai... Uai... Uai... meo Pai! .. e que mais me parecia
o uivo lastimoso de um cão soffredor do que os lamentos de um beato penitente.
Uai... Meo Padre, eu sou peor que um cão, bradou lamentoso o beato, quando o
padre: — Ora, José, não faça assim deante do major... O major, na ironia
christã do ilustre Revdo. era eu então, um segundannista de gymnasio... — Sim
meo Padre, - e terminou o beato dizendo-me de referencia ao Revd. Maranhão: ele
é muito bomzinho para mim. Consolado, continuou o comer.
Depois da refeição, dando graças a Deus e ao sacerdote que lhe dera o pão daquele
dia, rezou muitas orações, fez uma centena de — em nome do Padre - os grandes
olhos vermelhos do pranto er-guidos aos céos, piedosos, despedia-se de nós e
sahio, a cruz ás costas, com o seo manso cordeiri-nho pelas ruas de Milagres, a
cantar em voz cava e sumida, numa toada plangente, o seo bemdicto
predilecto:
Na
quinta-feira maior,
O Deus Jesus-Christo previa,
Que na sexta-feira santa,
Ás tres horas, elle morria.
Quem o poderia
saber? Era, talvez, o remorso do beato, por haver morto seu pae, possivelmente,
numa sexta-feira tambem, que explodia naquellas palavras que dizia cantando, em
voz penosa e sombria, e numa musica funebre de cantochão... Só de tempos em tempos
ia o Beato da Cruz a Joazeiro, donde fora obrigado a sahir, em vista da rixa
que se creou entre elle e os guarda-locaes da cidade que, de outra feita, o
pegarem de geito, e lhe deram uma grande sova. Mas, ainda que distante de
Centro... quando apparecia era um successo. Empanava o prestigio santo de todos
os seos collegas de classe, á excepção apenas, do beato Manoel Antonio da taba
furada, bebedor de kerozene e fallador da vida alheia, como elle proprio se
dizia.
Este, que
passava a vida a escrever ás centenas, aos milhares, as orações:
Oh! Maria
Concebida sem peccado,
Rogue por nós que recorremos o Vós
e a distribui-las gratuitamente aos romeiros, como aos demais beatos, levava na
troça o proprio Beato da Cruz, a quem para melindra-lo, chamava-o em tom de
brincadeira: MANCEBADO
— Uai... meo Pai, perdoae-lhe... fazia o beato, e sabia rua fora a chorar emquanto
o seu collega e rival, Manoel Antonio de taba furada, ria á bandeira
despregada, do effeito da sua pilheria.
Eis ahi está o beato da Cruz, com o seo cordeirinho santo, á porta da egreja de
Nossa Senhora do Perpetuo Soccorro, em cuja nave, num carneiro a um canto, á
direita de quem entra pela porta principal, está o sepulchro da celebre beata
Maria de Araujo.
Além, por traz do beato vë-se um paredão. É o muro do cemiterio do Joazeiro.
Foi lá que em 1914 baixou ao tumulo o corpo do celebre beato e grande
cangaceiro Ricardo: e foi lá tambem que ha dois annos teve sepultura o corpo
innanimado do santo Beato da Cruz, que apenas matou seo pae, e, com sua cruz
numa mão e com seo punhal na outra, fez debandar, em Joazeiro. Um bando de
guarda-locaes. O seo cordeirinho, certamente já foi comido pelos famintos da
grande metropole sertaneja. Mas a sua memoria e as suas virtudes jamais
deixarão de ser veneradas, enquanto houver um romeiro credulo na JERUSALEM
BRAZILEIRA.
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