Durante anos a sua casa foi um orfanato...
Fonte: Luiz Nogueira Barros
Impossível esquecê-lo. Era árido como o sertão em tempos de seca. Mas tal o
mandacaru, resistente planta dos sertões, tinha água e sabia doá-la para os
necessitados e perdidos naquelas plagas longínquas, nas horas cruciantes. Sua
casa era um porto seguro para os desamparados da sorte. E o seu olhar, por
vezes severo, escondia a complacência própria dos homens de grande santidade.
Muitas vezes
era visto no sítio do fundo da sua casa ao lado do Camoxinga como um homem
comum a mexer com a terra, calejando as mãos, sonhando flores e frutos. Ou
então na sua batina surrada, subindo a ladeira, apressado, na direção da Matriz
de Senhora Santana, onde as obrigações religiosas completavam a sua modesta
existência.
Abusado?
Era-o, de fato. E quando precisava dar alguma lição de moral para algum herege
suas palavras terminavam sempre assim:
-
Compreendeu...compreendeu...compreendeu, seu safado?
Se
compreendido, a sua complacência de pastor de almas mostrava, de súbito, o lado
bom do seu coração. Seu passo seguinte era o de recuperar o herege.
Durante anos a
sua casa foi um orfanato onde meninos e meninas desvalidas se fizeram moças e
homens. Até mesmo, um dia, recebeu um bilhete de "Corisco",
lugar-tenente do temido cangaceiro "Lampião", que lhe enviava um
filho recém-nascido, que não podia crescer naquela vida do cangaço. Falava-se,
à boca miúda, que "Lampião" e "Corisco" tinham uma devoção
com Senhora Santana, além de respeitarem o seu pároco. E que por isso jamais
entrariam nos domínios da santa. E o menino se fez homem à sombra daqueles
domínios sagrados.
Mas padre
Bulhões tinha um grande amigo, o "Seu" Edmundo, o chefe do Leilão da
Santa. Fabricante de "gengibirre", um delicioso suco de gengibre,
"Seu" Edmundo o vendia em garrafas de louça com rolhas fortemente
amarradas por barbantes.Tanto que, retirados os barbantes ouvia-se um estampido
semelhante aos das garrafas de champanhe e logo depois o suco borbulhante
descia como cascata pela boca da garrafa enlouquecendo o apetite dos meninos.
"Seu"
Edmundo, assessor de muitas viagens do padre Bulhões pelos distritos, num velho
"jipe", tinha as mesmas afobações do seu inseparável amigo. E um dia,
numa viagem para Cacimbinhas, os dois se esqueceram de acertar a hora dos seus
relógios. Como tinham compromissos diferentes marcaram o retorno para as três
da tarde. Deu quatro horas e "Seu" Edmundo não chegava. Afobado,
padre Bulhões decidiu-se por voltar. Ao chegar, pela hora do seu relógio,
"Seu" Edmundo não acreditou no recado que recebera. Também afobado,
decidiu-se por voltar a pés. Lá na frente, arrependido, o velho pároco voltou.
Avistou "Seu" Edmundo e foi ríspido:
- Suba aí! Você
se atrasou!
E ouviu:
- Eu não! Seu
relógio é que está errado! Prefiro ir andando, pois para isso Deus me deu os
pés.
Daí por diante
os dois, um no “jipe” e outro andando, foram vencendo os quilômetros com
ásperas discussões. E ao final da tarde chegaram aos domínios de Senhora
Santana. Antes de entrar em sua casa "Seu" Edmundo ainda ouviu do seu
amigo:
- Eita
homenzinho teimoso e endiabrado.
E
respondeu-lhe:
- Vai-te
embora Satanás, que preciso descansar. Depois a gente resolve essa questão.
Fonte:
Gazeta de Alagoas, 14.02.93
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