*Rangel Alves da Costa
Coisas mais comumente aparecidas no sertão, mas fatos que estão por todo lugar. Basta o olho mirar ou a mente imaginar, e logo a língua do povo começa a desandar e dar o feitio que quiser até ao impensável. Mas é assim que acontece.
A mocinha apareceu buchuda e a cidade inteira parou para tomar conta da vida dela. Como se fosse o fato mais estranho e inusitado do mundo, com nenhuma outra coisa a cidade passou a se preocupar.
Os pratos ficavam sujos na mesa, as roupas imundas estocadas num canto, as calçadas cheias de poeira, as panelas queimando no fogão, os remédios esquecidos, os filhos chorando com fome, até os banhos e os asseios eram deixados de lado.
Nada mais na vida importava. A única coisa que importava era a mocinha que de repente apareceu buchudinha. Parecia coisa de fim de mundo. Talvez nem o aparecimento de um disco voador ou de uma porca falante fosse mais interessante.
Portas e janelas abertas, esquinas tomadas de pessoas, calçadas cheias de vizinhos e outros, por todos os lugares os olhares furtivos, as bocas em segredos, as línguas ferinas. Os ares tomavam-se de olhos, bocas, ouvidos, de tudo o mais que servisse para alimentar a boataria.
Tudo de mais desonroso passou a tomar conta de tudo: fofocas, fuxicos, boatos estapafúrdios, disse-me-disse, calúnias, aleivosias, um festim de maledicências. Uma dizia uma coisa e na outra esquina já havia se transformado numa condenação ainda maior. Tudo semeado para ser bem pior.
E também tudo tão próprio de quem não tem o que fazer e deixa de tomar conta da própria vida para se arvorar da vida dos outros. Certamente que as conversinhas e as fofocas acontecem em todo lugar, mas ali parecia nutrir suas forças e sua vitalidade como imprestável, que é o tomar conta da vida dos outros a todo custo.
Enquanto isso, a mocinha andava de canto a outro como se nada daquilo estivesse ocorrendo. Bonita, perfumada, arrumadinha - e buchudinha. Caminhava toda faceira, toda cheia de vida e de formosura, parecendo que nada daquilo estava acontecendo. E para ela tanto fazia, pois bem sabia que vivia num antro de cobras ruins, de serpentes inescrupulosas e linguarudas.
Mas para o lugar era o fim do mundo que a mocinha tivesse aparecido buchudinha. “Como pode uma moça que nem namora aparecer assim?”. Indagava um. “Quem vê a santidade não vê o pecado”. Dizia outra. “Safadeza pura, quenguice deslavada”. Mais uma dizia. “Aí não sabe nem quem é o pai”. Alguém falou. “O pai deve ser qualquer um”. A outra concluiu.
E bota fofoca nisso: “Comadre, bem garanto que nem é o primeiro bucho que pega. Toda desconfiadinha e não vale nada. Já deve ser muito passada e bem passada”. Uma chegava dizendo. E a outra completava: “É o que dá criar fia pro mundo. Pai e mãe são pior do que a própria fia. Depois vai virar rapariga, não vai dar outra...”.
Num canto de calçada, debaixo de pleno sol do meio dia, outras comadres - esquecidas de que existia casa pra cuidar, comida a fazer e tudo o mais - iam cuspindo aleivosias e falsidades. Segundo uma, só podia ser coisa do fim do mundo mesmo, pois quem já havia visto uma virgem engravidar. Contudo, pura ironia em tais palavras. Num repente e todas caíram numa gargalhada só.
E assim a cidade foi se esquecendo de que existia para entrelaçar e remendar maldades acerca da buchudinha. Mas a mocinha nem aí. Continuava passando feliz, alegre, cantando, toda cheia de contentamento. Levava a mão à barriga, sorria, no olhar com que fazendo planos para o amanhã.
A falta de reação da buchudinha aos ataques causava indescritível ferocidade aos fofoqueiros e fofoqueiras. Decidiram então arranjar um responsável pela gravidez da mocinha. De solteiro a casado, de velho a novo, tudo foi inventado. Mas não surtiu nenhum efeito. “O que vamos fazer agora?”. Esta foi a preocupação da fofoqueira maior.
Queriam de qualquer jeito que a mocinha reagisse e, com tal reação, acabasse dizendo ao mundo o que somente a ela e a quem desejasse deveria saber. Também uma forma de alimentar ainda mais a indignidade daqueles que unicamente se comprazem com o que os outros fazem ou deixaram de fazer.
Então outra disse: “Deixar pra lá, é o jeito”. “Não, de jeito nenhum. Sabe que a gente não vive sem falar mal da vida dos outros. A gente tem de continuar falando mal sim”. A maledicência falando. Então a outra ajuntou: “Se é pra falar mal, então vou logo dizer que sua filha logo vai aparecer igualzinha àquela. Não vê macho que não dê em cima”. “O que? Repita isso sua sirigaita, sua lambisgóia, sua rampeira...”.
E foi vestido rasgado, cabelo puxado, saia levantada, um rolo pelo chão. E a cidade inteira ao redor observando feliz. Logicamente que para depois ter o que falar. E a buchudinha vivendo apenas o seu mundo e de vez em quanto se perguntando: será um menininho ou uma menininha?
Escritor
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