Por: Rangel Alves da Costa(*)
A
BIOGRAFIA DO CORONEL
Coronel
Tiberiano Aroeira, também conhecido como Senhor do Vai-e-Vem, pois dono de tudo
que ia e voltava, era homem de muitas e estranhas manias. Padre Licurguino
morreu com hóstia envenenada exatamente porque caiu na besteira de dizer isso
num sermão. Cavou a sepultura ao dizer que o velho coronel era também o senhor
das manias maníacas.
Não precisava
nem o coitado do vigário entrar nesta seara, pois todo mundo sabia disso. E
sabia principalmente que a principal e mais odienta mania da velha cascavel era
mandar matar, e qualquer um, fosse um inimigo do mesmo cabedal ou um desvalido
de casinha de choupana de beira de estrada.
Realmente, o
homem parecia não ter outra coisa a fazer que não viver maquinando
esquisitices, maldades, coisas de arrepiar. Mas também presepadas de gente
doida, maluquices desmedidas, excentricidades de toda sorte. Diziam que era
também um mentiroso de marca maior. Mas quem era maluco passar isso na cara da
serpente cheia de linho branco por cima?
Corria à boca
miúda que havia mandado cavar um buraco nos escondidos do seu casarão. Buraco
grande, até confortável para quem quisesse ali se esconder. E diziam que o
poderoso não podia nem ouvir falar no nome de Lampião que corria para o dito
buraco. E ali ficava rezando para que o grande justiceiro das caatingas não lhe
aparecesse para fazer perguntas sobre uns certos desmandos.
Homem rico demais, coronel de
patente política, senhor do voto de cabresto e da vida de todo mundo que
tivesse a desdita de ter nascido na sua região, do seu casarão latifundiarista
selava a sorte de tudo. E de todos. Jagunço pra mais de vinte, armas num
arsenal, cabeças de inimigos guardadas em formol. De vez em quanto ia até a
despensa macabra pra conversar com suas vítimas, principalmente dizer que
estava pensando em mandar cortar sua língua, vez que falava e não ouvia
resposta.
Confessou a um
amigo político, gente de mando em todo o estado, que estava com vontade de
relatar suas memórias para alguém que fosse mestre em escrever biografia de
gente importante. Até já tinha o título da biografia: “Coronel Tiberiano: um
anjo com asas e tudo”. O amigo pigarreou desconfiado, meio sem jeito, mas disse
que no mais tardar cinco dias riscaria ali um memorialista de renome para
transformar em livro uma vida de tantas glórias.
Três dias
depois se apresentou ao coronel o esperado memorialista, biógrafo reconhecido
pela veracidade nos fatos relatados. Era tido por todos como aquele que não
admitia acrescentar nada além da mais pura verdade da vida do biografado. Mas
se realmente fosse assim, eis que tinha um grande problema para resolver nos
relatos da vida do poderoso.
O homem das
letras marcou para começar a ouvi-lo logo na manhã do dia seguinte. Assim que
sentou diante do enviado, o anfitrião foi logo dizendo que não se esquecesse de
colocar no relato nada do que dissesse dali em diante. Afinal de contas o livro
ia sair como sendo ele o próprio escritor. O letrado então logo começou a
desconfiar que aquilo não ia dar certo. Mas o medo não lhe permitia discordar
de nada.
Assim, com
três dias de relatos o velho gravador já havia utilizado mais de dez fitas
cassetes. E em todas a mais pura verdade, no dizer do biografado. Assim
constava sobre o menino pobre, de família religiosa, que havia sido coroinha, e
que até os vinte anos não tinha nem o que comer nem o que vestir. Num sonho,
recebeu um aviso onde estava uma botija e sua vida se transformou totalmente
daí em diante.
Repartiu com
os pobres a maior parte da herança e com a sua parte comprou umas terrinhas,
mas pensando em fazer uma propriedade comunitária. Toda riqueza conseguida daí
em diante foi para fazer caridade, para auxiliar os necessitados, para dar casa
e comida a quem não tinha. Mandou construir e reformar igrejas, erguer casas de
saúde e, se continuava sendo um homem rico, talvez fosse pelo reconhecimento
divino do seu bondoso coração.
O biógrafo
estava em tempo de explodir, não suportando mais ouvir tantas mentiras e
descaramentos. Até que arranjou coragem e perguntou se era verdade o que
comentavam, com notícias dando conta de que ele era um covarde mandante de
assassinatos, impiedoso com inimigos, a pessoa mais violenta e desumana que
podia existir. E que se mijava todinho só de ouvir que o Capitão Lampião estava
na região.
O coronel deu
uma gargalhada de espantar bezerro, e disse em seguida, com olhos brilhando,
que não havia no mundo alguém mais bondoso que ele, um verdadeiro anjo de
pessoa, alguém que no seu coração cristão não admitia nem que matassem uma
mosca. E acrescentou que jamais teve do que temer no maior dos cangaceiros, de
quem, aliás, era compadre.
Como havia
sido contratado para escrever sobre o que ouvia, e também pelo fato de que a
precaução é amiga de muita coisa, três meses depois o memorialista voltou com
um calhamaço de palavras bem trabalhadas. Colocou em frente ao coronel e disse
que toda a verdade sobre a sua vida estava ali. Então o homem chamou dois
jagunços e mandou que ficassem por trás do escritor enquanto este estivesse
lendo o livro sobre sua vida.
A cada página
o coronel se enchia de sorrisos, de encantamentos, ficava feliz. Assim mesmo
havia relatado, dizia ele. Mas já depois de umas trinta páginas os jagunços
começaram a se comportar de um jeito diferente. Um olhava pro outro
desconfiado, vermelho, querendo desmentir tudo aquilo. De tanto esforço ouvindo
tantos embustes, lá pelas tantas um deles, depois de arroxear, não suportou e
caiu mortinho da silva.
O outro quis
acudir o companheiro, porém o coronel exigiu que esquecesse e prestasse atenção
na sua bonita e bondosa história. Mas quando o biógrafo leu que “Desde então, o
Coronel Tiberiano Aroeira vive iluminado pelas graças divinas, cercado por
anjos, um verdadeiro querubim espalhando a graça e a bondade entre os seus”, o
outro jagunço não suportou mais e disse raivoso:
“Vai mentir
assim na casa da peste. Esse homem num vale nada, nunca fez bem a ninguém. Bote
aí que ele mandou matar mais de cem, que só vive pra fazer o mal. E bote aí
também que ele disse que não é pra deixar vosmicê sair vivo daqui de jeito
ninhum! Bota aí, bote!”.
Ao ouvir isso
o coronel corou, desbotou, azedou, rosnou, mumunhou, revirou os olhos, tentou
puxar a arma pra atirar no jagunço, mas teve de parar ao ouvir do seu próprio
pistoleiro: “E bote aí tomem que ele morreu de morte matada, e por um cabra que
num suporta mais viver de tanta mentira. Tome fi do cabrunco! Bote aí, bote.
Tome fi da peste!”.
E disparou bem
na testa do patrão. E as últimas palavras do coronel, do Senhor do Vai-e-Vem,
foram exatamente essas: “Bote isso não...”. E descoronelou de vez.
(*) Meu nome é
Rangel Alves da Costa, nascido no sertão sergipano do São Francisco, no
município de Poço Redondo. Sou formado em Direito pela UFS e advogado inscrito
na OAB/SE, da qual fui membro da Comissão de Direitos Humanos. Estudei também
História na UFS e Jornalismo pela UNIT, cursos que não cheguei a concluir. Sou
autor dos seguintes livros: romances em "Ilha das Flores" e "Evangelho
Segundo a Solidão"; crônicas em "Crônicas Sertanejas" e "O
Livro das Palavras Tristes"; contos em "Três Contos de Avoar" e
"A Solidão e a Árvore e outros contos"; poesias em "Todo
Inverso", "Poesia Artesã" e "Já Outono"; e ainda de
"Estudos Para Cordel - prosa rimada sobre a vida do cordel", "Da
Arte da Sobrevivência no Sertão - Palavras do Velho" e "Poço Redondo
- Relatos Sobre o Refúgio do Sol". Outros livros já estão prontos para
publicação. Escritório do autor: Av. Carlos Burlamaqui, nº 328, Centro, CEP
49010-660, Aracaju/SE.
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com