Por Aleilton
Fonseca
A poesia de
Canudos, segundo Euclides da Cunha
Como narra
Euclides da Cunha, uma vez tomado definitivamente o arraial de Canudos, os
soldados fizeram uma devassa nas casas em ruínas, curiosos, em busca dos
despojos, fazendo o "mais pobre dos saques que registra a História" (15).
Ali foram encontrados, entre imagens mutiladas e rosários de cocos, o que o
autor denomina de "desgraciosos versos":
Pobres papéis,
em que a ortografia bárbara corria parelhas com os mais ingênuos absurdos e a
escrita irregular e feia parecia fotografar o pensamento torturado, eles
resumiam a psicologia da luta. Valiam tudo porque nada valiam. Registravam as
prédicas de Antônio Conselheiro; e, lendo-as, põe-se de manifesto quanto eram
elas afinal inócuas, refletindo o turvamento intelectual de um infeliz. Porque
o que nelas vibra em todas as linhas, é a mesma religiosidade difusa e
incongruente, bem pouca significação política permitindo emprestar-se às
tendências messiânicas expostas. (16)
A visão do
ensaísta acerca dos versos encontrados em Canudos registra-se através de uma
avaliação que é, inicialmente, negativa. Os versos são, assim, "pobres
papéis" de escrita "irregular e feia" e grafados em
"ortografia bárbara" que registram "ingênuos absurdos",
fotografavam o "pensamento torturado" dos sertanejos. Euclides faz
uma avaliação dos versos considerando-os intrínsecos às circunstâncias de sua
elaboração, ao afirmar que "resumiam a psicologia da luta". E faz uma
apreciação genérica ao afirmar que os versos, documentos concretos da expressão
dos canudenses, "valiam tudo porque nada valiam". Observa-se
que, em sua avaliação, Euclides utiliza como premissa o fato de os versos serem
registros das prédicas do Conselheiro, antes completamente desqualificadas em
seu discurso. Como tal, os versos são vistos como documentos embasados na
"religiosidade difusa e incongruente", em seu estádio
"primitivo, atrasado", contendo "pouca significação
política". Antes de citar passagens dos "desgraciosos versos", Euclides
faz ainda os seguintes comentários:
Os rudes
poetas rimando-lhe os desvarios em quadras incolores, sem a espontaneidade
forte dos improvisos sertanejos, deixaram bem vivos documentos nos versos
disparatados, que deletreamos pensando, como Renan, que há, rude e eloqüente, a
segunda Bíblia do gênero humano. (17)
Considerada ao
pé da letra, a explanação de Euclides mostra-se unívoca em sua visão negativa
acerca da poesia coletada em Canudos. No entanto, observando-se a formulação de
seus conceitos, descontados os adjetivos e ressaltados os substantivos, pode-se
perceber, nas entrelinhas, toda a ambigüidade de sua abordagem. Embora
explicitamente negativos, os termos da avaliação que ele faz dos versos os
legitimam, ainda que indiretamente, como objetos culturais. Como se observa,
embora os considerando rudes, o ensaísta confere aos anônimos autores o epíteto
de poetas e reconhece os textos enquanto forma poética, em sua estruturação em
quadras, embora adjetivando-as de "incolores". Ademais, ao comparar
as quadras canudenses com os improvisos sertanejos, que antes descrevera de
forma positiva, o ensaísta os valoriza como congêneres, mesmo que numa relação
hierárquica desfavorável. Além disso, também os valoriza como documentos cuja
citação considera relevante na cadeia argumentativa do seu texto. No final de
sua explanação, ele reconhece a importância histórica dos textos, embora os
refute como traços de atraso cultural, uma vez que os considera uma prova da
existência da "segunda Bíblia do Gênero humano". Este jogo retórico
em que a poesia de Canudos é ao mesmo tempo valorizada e depreciada mostra mais
uma vez a ambigüidade da posição de Euclides da Cunha. Realmente, abstraindo-se
a hierarquização e a negativação formuladas pelo ensaísta, ditadas pelos pressupostos
teórico-metodológicos de sua abordagem, pode-se perceber que há uma valorização
intrínseca ao modo como ele documenta a manifestação cultural dos canudenses.
Em seguida,
uma vez feita de antemão a análise dos versos, Euclides cita "ao
acaso", segundo afirma, algumas das quadras encontradas, resumindo-lhes a
idéia. Como se sabe, o autor possuía os textos integrais anotados em sua Caderneta
de Campo (18), e, dada a extensão do seu ensaio, nada obstava que os
citasse na inteireza. No entanto, observa-se que as citações dos trechos
"ao acaso" vêm no sentido de corroborar o discurso analítico,
ajudando a provar as teses defendidas pelo ensaísta.
O primeiro
texto é um abecê, forma poética tradicional do cancioneiro popular, do qual
Euclides cita algumas estrofes para mostrar como se resumia nesse
"gaguejar do povo", a passagem da Monarquia à República. Eis a
citação da terceira estrofe:
Sahiu D. Pedro
segundo
Para o reyno de Lisboa
Acabosse a monarquia
O Brazil ficou atôa! (19)
Nas citações,
Euclides faz um rearranjo das estrofes para conseguir o efeito pretendido
dentro da lógica de sua argumentação. Assim, seguem-se a sétima, a 15° e a 13°
quadras para ilustrarem a visão que os sertanejos tinham da República como
sendo a "impiedade" ou a "lei do cão":
Garantidos
pela lei
Aquelles malvados estão
Nós temos a lei de Deus
Eles têm a lei do cão
Bem
desgraçados são elles
Pra fazerem a eleição
Abatendo a lei de Deus
Suspendendo a lei do cão!
Casamento vão
fazendo
Só para o povo illudir
Vão casar o povo todo
No casamento civil!
Em seguida, o
ensaísta cita a 19° estrofe do abecê, à qual junta a décima sexta e fecha com a
22°, para ilustrar a convicção dos sertanejos quanto ao fim próximo do
"governo demoníaco", com o triunfo do Conselheiro e do Sebastianismo:
D. Sebastião
já chegou
E traz muito regimento
Acabando com o civil
E fazendo o casamento.
O anticristo
nasceu
Para o Brasil governar
Mas ahi está o Conselheiro
Para deles nos livrar!
Visita vem nos
fazer
Nosso rei D. Sebastião.
Coitado daquele pobre
Que estiver na lei do cão. (20)
Assim, o
empenho do ensaísta é mostrar, documentado nas quadras selecionadas a partir de
suas anotações de campo, o juízo que os sertanejos faziam da República a partir
da orientação religiosa conselheirista e os argumentos com que combatia a nova
forma de governo do país. Dentro de sua argumentação, toma esses textos como
prova de suas próprias afirmações acerca dos canudenses.
O homem culto
Euclides da Cunha, munido de um instrumental analítico fundametado nas teorias
científicas da época e, particularmente, defensor da República enquanto ideal e
como resultante natural do progresso da civilização, não aceita as afirmações
dos sertanejos como válidas sequer para debate ou reflexão política. Rotula-as,
então, como sendo índices do pensamento retrógrado, que considerava ser próprio
de um estádio atrasado de civilização, em que se encontrariam os sertanejos.
Paradoxalmente, a constatação e a avaliação negativa do ideário canudense
tornam-se, na cadeia argumentativa de Euclides, um dado favorável a Canudos no
julgamento político da intervenção militar. Definitivamente, Euclides fixa a
consciência de que os canudenses não representavam uma ameaça real à
instituição republicana, pois não constituíam um movimento político organizado
na tentativa de restaurar objetivamente a Monarquia. Assim, o ensaísta procura
mostrar que as idéias contrárias à República eram resultantes do atraso
civilizatório, do estado de "ignorância" em que se encontrava a
população sertaneja. Então afirma: "Requeriam outra reação. Obrigavam-nos
a outra luta" (21). Sob essa ótica, a luta necessária não seria feita
através da força militar e dos canhões, mas sim através da educação, das
letras, das luzes, no processo de introdução dos sertanejos ao progresso, incorporando-os
à nacionalidade. Esta constatação abre o caminho para a autocrítica e para a
revisão de idéias anteriores, como a de que Canudos era "A nossa
Vendéia" (22). A partir disso, Euclides interpreta a intervenção
militar como um erro histórico, como um "crime da nacionalidade"
contra patrícios, de que seu livro se oferece como denúncia e libelo.
CONTINUA...
Enviado pelo
escritor, professor e pesquisador do cangaço José Romero Araújo Cardoso
http://blogdomendesemendes.blogspot.com