Por: Rangel Alves da Costa*
NOITES ADORMECIDAS
Ainda tem luz no espaço, um pouco de vermelho entre as nuvens, um fogo que queima o dia para trazer as cinzas da noite. Mas quando chegar o anoitecer sei que tudo será diferente. Bem diferente...
Um trago na taberna, talvez uma aguardente, um conhaque ou um copo de vinho. O problema é o descontentamento com apenas um trago e a vontade de pedir sempre mais um. É melhor colocar o conhaque na mochila e depois deixá-lo em cima da mesa, ao alcance da mão, assim que eu sentar para escrever as cartas que minha saudade e recordações já pedem faz tanto tempo.
Pouca coisa além da velha e carcomida mesa de madeira possui a sala de minha casa, que também é o meu quarto e quase tudo. Uma janela virada pra paisagem pintada com pouca tinta mais adiante, um antigo sofá que muitas vezes também serve de cama, uma cristaleira com algumas taças e outras e outras lembranças de dias muito melhores. Tudo isso, só isso, ou quase nada...
Não, há ainda o baú num canto da sala, uma estante que já não cabe mais nenhum livro, cadernos de anotações, diários e outros papéis. Nos escritos estão parte da minha história, minhas memórias sem medo, mas também coisas felizes que invento pra contrabalançar a dor. Como quase sempre está sem energia, candeeiros, lamparinas e velas ficam espalhados pelos cantos escurecidos.
A noite já chegou completamente, está tudo escurecido lá fora. A lua brinca de se esconder, as nuvens acompanham o jogo, há um silêncio sepulcral por todo lugar, e talvez seja por isso que ouço algo parecido com um uivo de lobo lá por cima de qualquer montanha ao redor. Sempre que é noite e a janela está entreaberta ouço o lobo uivando, talvez me chamando também para acompanhá-lo nos seus motivos de sofrimento.
Às vezes gostaria de viver com a mesma razão que os lobos possuem ao uivar. Eles não escondem o que sentem, não jogam nos travesseiros arenosos sua dor, não lastimam a sorte embaixo do silêncio de sua solidão. Sobem nos montes e uivam, e cada uivo é um grito dizendo tudo, é um canto/lamento espalhando pelo ar todo o sentimento.
Também não escondo nada do que sinto, e é tanto que o meu íntimo conhece mais de mim do que eu mesmo. Como se fosse um baú de coisas antigas, um depósito de acontecidos e não vividos, o meu eu interior talvez não suporte mais ter de guardar tudo aquilo que não quero carregar na face, mostrar no semblante, levar comigo para onde vou. Por isso mesmo que todas as vezes que saiu na porta deixo as chaves do meu baú e do meu depósito lá dentro de casa.
Verdade é que muitas vezes já pensei em pular a janela e sair por aí procurando o lobo no seu monte solitário. Não precisaria nem subir até lá para compreender seus motivos, pois já os conheço muito bem nos meus uivos interiores. Bastaria olhá-lo da estrada, enxergar o seu corpo perante o clarão da lua, vê-lo de cabeça erguida, voltada para as alturas, de boca aberta e gritando o nome do seu amor. Também já tive um, também conheço essa dor.
Mas me basta ser o meu lobo de agora, e que certamente subiria no telhado para uivar se não fosse a garrafa de conhaque que está logo ali adiante. Feito uma tela de Rembrandt onde a luz amarelada entra pela janela ou sobe da chaminé, a luz sutil e afoqueada em meio à escuridão vem da lamparina que cintila uma chama no seu pavio.
Por causa da pouca luz, vejo a fumaça que passeia feito espectro fantasmagórico pelo ar. Na rua fumo cachimbo, mas em casa prefiro o charuto. Alguém me disse uma vez que fumar assim faz lembrar o velho pajé expulsando os maus espíritos, e muita coisa preciso mandar pra bem longe. Já tomei duas doses depois que cheguei, já coloquei algumas folhas em branco sobre a mesa, bem como o tinteiro com a pena já não tão fina e deslizante.
Tenho uma caneta novinha, Mont Blanc. Ganhei da única parenta que lembrou que existo. Também tenho outras canetas e lápis, mas nesses momentos prefiro escrever à moda antiga, como faziam os velhos poetas adoecidos por ficarem noites inteiras em busca do melhores versos que hoje estão escondidos ali na minha estante, adormecidos dentro dos livros.
Talvez tão cedo não escreva a primeira palavra, o primeiro verso, nada. Certa vez cheguei até o meio-dia do dia seguinte e não consegui descrever adequadamente uma paisagem. Nessa feita tomei um litro de conhaque inteirinho, aos pouquinhos, com goles miúdos. Quando adormeci embriagado sonhei com as palavras que não havia conseguido encontrar.
Por isso passo noites assim, entre o sono e a necessidade de escrever, em noites apenas adormecidas na luz opaca que se derrama pela minha folha e reflete no meu copo. E aquela paisagem que um dia não consegui descrever e que somente o sonho embriagado me trouxe à mente, irei escrever agora:
“O tempo era de brumas, embaçado, como se uma fumaça tomasse a visão de tudo. Eu precisava encontrá-la na paisagem, mas não via nada...”. Apenas uma lamparina, um copo com conhaque, um charuto aceso, uma folha. Ah, sim, e também um lobo uivando lá fora, e aqui dentro também.
Rangel Alves da Costa*
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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