Por Francisco
Fernandes do Nascimento
Fotos do Quintino
A história que eu vou contar, ouvi-a em menino, depois adolescente e agora já a
caminho da maturidade. Ouvi-a dezenas, talvez centenas de vezes, e jamais
perdeu o sabor de novidade, e os heróis que a viveram continuaram na admiração
do menino, do rapaz e do homem feito. Ouvi-a de meu pai, aquele que nela foi,
sem dúvida, uma das figuras mais salientes. É um capítulo à parte da história
sangrenta que convulsionou o Ceará em 1914, quando o caudilhismo imperava no
interior do Brasil com o beneplácito do próprio Governo central – uma revolução
de sangue que custou muitas vidas, inclusive a de um oficial dos mais
brilhantes e que tem hoje o seu nome numa das ruas de Fortaleza: J. da Penha.
Não irei analisar as causas que determinaram a Rebelião de Juazeiro contra o
General Franco Rabelo, então à frente do Governo do Ceará, após aquele oficial
haver derrubado uma oligarquia de vários anos. Direi apenas, baseado nos fatos
históricos, que o Padre Cícero, o levita cearense, para enfrentar o Governo que
o hostilizava e contra o qual afinal se revoltou, viu-se obrigado a utilizar,
para a formação do seu exército de jagunços, não só aqueles que lhe devotavam
respeito e obediência cega, mas também os celerados que àquela época infestavam
os sertões nordestinos. Vitoriosa a revolução, com a deposição do Presidente do
Estado pelas forças dos jagunços dirigidas pelo médico Floro Bartolomeu da
Costa, Secretário e homem de confiança do Padre Cícero, de cujo prestígio se
valeu mais tarde para se eleger deputado federal pelo Ceará, e bem assim pelo
Dr. José de Borba, constituinte de 1946, as hordas heterogêneas regressaram a
Juazeiro. Os bem-intencionados ensarilhavam seus trabucos, guardaram os seus
punhais e os substituíram pelo rosário. Os outros, os que saquearam durante a
arrancada do fundo do sertão para o litoral, não fizeram o mesmo. Pretendiam
continuar roubando, matando, transformando a cidadezinha pacata e ordeira no
“far west” do tempo da corrida do ouro californiano.
UM HOMEM DE CORAGEM
Habituado à obediência absoluta do rebanho que dirigia com mansuetude e carinho
paternal há quase meio século, o Padre Cícero viu periclitar sua autoridade no
seio dos celerados desenfreados, que tinham como chefe Zé Pinheiro, o mais
temível e desalmado bandoleiro alagoano, o qual, pela sua valentia, tivera
parte saliente nos combates dos revoltosos contra as forças legais. Decidido,
porém, a fazer com que voltasse o império da lei e da ordem à terra que
fundara, o velho sacerdote escolheu para isto um homem da sua confiança,
honesto e não menos corajoso, a quem nomeou Delegado de Polícia e de quem
exigiu mão de ferro para a realização da obra de expurgo dos elementos
indesejáveis. Quintino Feitosa aceitou o mandato que lhe outorgava o amigo e
guia espiritual, muito embora soubesse das dificuldades que teria de arrostar,
pondo em risco a própria vida. Não podia contar com a Polícia, necessitando,
assim, recrutar homens de boa-vontade e valentia, entre uma minoria de
honestos. Conseguiu menos de uma vintena (sua valente e fiel esposa, inclusive)
para enfrentar uma horda de mais de mil. Meu pai figurava entre os nomes desses
heróis, dos quais restam uns poucos, perdidos nesse mundo de Deus. Não contava
mais de 17 anos e já possuía quase 3 anos da experiência amarga do uso do
bacamarte e do rifle na luta contra os poderosos. Com 14 anos, apenas, com o
pai e os irmãos, defendera o seu clã na Alagoa do Monteiro, Paraiba, ameaçada
e, por fim, invadida pelos cangaceiros do Dr. Santa Cruz, poderoso caudilho dos
sertões do Nordeste do começo do século. Perseguira Antônio Silvino, bandoleiro
tão famoso quanto Lampião, e fora por fim parar em Juazeiro, atraído talvez
pelo seu espírito de aventura e por saber também estar ali um parente
precisando da sua coragem e da sua lealdade. A investidura de Quintino Feitosa
foi assinalada por hostilidades e desacatos de Zé Pinheiro e seus apaniguados,
que numa atitude acintosa à autoridade e ao Padre Cícero se tornaram mais
ousados. Quintino, porém, não era homem para ser desmoralizado. Possuía uma
tradição de valentia, herdada dos seus antepassados dos Cariris Velhos,
Paraíba. Aos atos de desrespeito e provocação dos celerados, respondeu com
medidas saneadoras e
DEZOITO CONTRA MAIS DE MIL
Animados pela vantagem numérica que possuíam sobre aqueles pouquíssimos
mantenedores da lei, sabendo, por outro lado, que a própria Polícia estava do
seu lado, Zé Pinheiro e seu bando resolveram levar a cabo uma façanha mais
ousada. Atacaram a Coletoria Estadual, que tinha como Coletor o Coronel
Francisco Neri da Costa Morato, cunhado de Quintino e do engenheiro Teógenes
Rocha, que iria, mais tarde, dirigir a Rede Viação Cearense e, por fim, a
Central do Brasil. A coragem do delegado e dos seus companheiros transformou,
todavia, o ataque dos bandoleiros num enorme conflito, com ação em toda a
cidade e a duração de nada menos de 23 horas. Durante um dia e uma noite o
punhado de corajosos, que não chegava a uma vintena, enfrentou mais de mil
inimigos. Os ataques se sucediam em cargas de bacamarte e rifle, primeiro
contra o baluarte que foi a Coletoria, depois contra a casa de Quintino. Era
uma luta desigual, que só o milagre da valentia mantinha acesa por tanto tempo.
OS NOMES DOS HERÓIS
Eram sete, apenas, os defensores da Coletoria: Cícero Jose do Nascimento (meu
pai), José Joaquim Grande (hoje oficial da Polícia Alagoana), seu irmão João
Joaquim Grande (assassinado em 1915 na cidade de Missão Velha, Ceará, por
mariano Delfino), Manuel Belarmino (falecido), Santo Catingueira (assassinado
anos depois), João Germano, Mário I (assassinado em Pesqueira, Pernambuco).
Defendiam a casa de Quintino nove homens e duas mulheres. Eis os nomes desses
valentes, que escreveram a mais bela e eloquente página de coragem de que há
exemplo: João Batista, Antônio Romeiro I, Miguel Marinho, Antônio Romeiro II,
Velho Martins, Leobardo de tal, Mário II (que doente de varíola lutou como um
bravo), Luís Batista, Quintino Feitosa, sua esposa Agostinha da Costa Morato
Feitosa e Petronília, filha adotiva do casal.
O ATAQUE
O ataque começou na Coletoria, às últimas horas de um dia de feira. Eram ondas
sucessivas, os bandoleiros investiram com fúria sobre o reduto; recuavam ante a
reação tremenda dos seus defensores, para depois avançarem novamente, num
vaivém infernal, ajudados, também, pelo Polícia, que veio engrossar o seu
contingente. Tomando conhecimento de que a Coletoria estava na iminência de
cair em poder de Zé Pinheiro e do seu grupo, levados sem dúvida pela
possibilidade de saques, Quintino enviou para ali alguns dos seus homens,
desfalcando, assim, o seu já minguado elemento humano. Compreendendo o que se
passava, os atacantes ampliaram o campo de luta, com uma investida furiosa de
um grupo numerosíssimo contra a residência do delegado Quintino, as duas
mulheres e os sete companheiros lutavam como feras. Os atiradores corriam de um
canto para outro, fazendo fogo contra os inimigos, para dar-lhes, assim, a
ilusão de que muitos eram os que lhes ofereciam combate.
CAI O PRIMEIRO
BALUARTE
A fuzilaria de prolongou pelo resto da tarde, durou toda a noite e grande parte
do dia seguinte. As primeiras horas da noite do primeiro dia, caiu a Coletoria
Estadual. Os sete homens que defendiam há várias horas compreenderam que seria
suicídio continuar lutando. Mas, não queriam, por outro lado, entregar-se
inermes aos seus inimigos. Concentraram, então, seus fogos contra os sitiantes
que já ameaçavam invadir o prédio, saltaram, no meio da rua, os rifles,
matraqueando. Foi um golpe que pegou de surpresa os bandoleiros. A indecisão
destes, que durou apenas alguns segundos, valeu-lhes, porém, a vida. A casa do
Padre Cícero estava localizada perto. Puderam alcançá-la e foram recolhidos,
com exceção do meu pai, que ao chegar ali já encontrou as portas cerradas.
Revoltados com o logro em que caíram, Zé Pinheiro e seus asseclas concentraram
todo o seu ódio contra aquele que não pudera penetrar no abrigo seguro do padre
e o cobriram com uma chuva de balas. Meu pai sobreviveu, porém, ao ódio dos
cangaceiros. Logrou, felizmente, atingir a Boca das Cobras, escondendo-se no
meio do mato. Morto de fome, sede e cansaço, rumou dali, protegido pela
escuridão da noite, para a casa de Quintino, nas Malvas, orientado pelo ruído
da fuzilaria. Na manhã seguinte também ali chegavam os seus bravos companheiros
que haviam passado a noite na residência do Padre Cícero.
A MORTE DE
QUINTINO
18 eram agora os defensores da casa de Quintino, para lutarem contra mais de
mil. Por volta das 15 horas recrudesceu o ataque. Sitiados por um bando cada
vez mais impetuoso e feroz, permanecia, no entanto, o punhado de bravos com o
moral alevantado, até que tombou o seu querido e valoroso chefe, atingido por
uma bala inimiga. Morto Quintino, acabrunhados e sem ânimo, os seus
companheiros se reuniram numa assembleia de alguns segundos em torno do cadáver
e sob o fogo da artilharia dos atacantes. Decidiram fazer a retirada. D.
Agostinha tomou o rifle do companheiro leal, arrastou pelo braço o filho
moribundo e deu início à retirada heroica. A arma, que momentos antes vomitara
fogo nas mãos de Quintino, não silenciou em poder de sua esposa. À proporção
que se afastava da casa onde deixara o marido, a nobre senhora, juntamente com
os companheiros do corajoso e malogrado delegado, atirava incessantemente
contra os bandoleiros. Pouco adiante, completada a retirada, na qual não se
verificou uma única baixa, os heróis se dispersaram. D. Agostinha escondeu-se
no mato durante o resto da tarde e à noite estava de volta à casa do padre
Cícero, levando nos braços o filho morto. Os demais foram homiziar-se na
residência de Senhor Dantas, rico proprietário do município de Missão Velha.
FESTA DE
BARBAROS
À dor de D. Agostinha, ao perder o esposo e o filho, veio juntar-se outra: a de
saber que fora violado o cadáver de Quintino. Foi um ato de selvageria
inominável, que encheu da mais justa revolta o Padre Cícero, fazendo-o sair de
sua casa para recriminar o seu autor. O atentado verificou-se minutos após os
17 combatentes abandonarem a residência de Quintino, no interior da qual
deixaram o seu corpo inerte. À frente dos seus asseclas, Zé Pinheiro invadiu a
casa guardada apenas pelo cadáver ainda quente, e, em meio a esgares de ódio e
de triunfo da turba desenfreada e assassina, Zé Pinheiro sacou uma enorme e
afiada faca e de um golpe certeiro arrancou o lábio superior do seu inimigo
morto, carregando em triunfo o troféu macabro e sangrento. Na primeira venda
que encontrou no seu caminho, mandou que lhe servissem cachaça. Posta a bebida
sobre o balcão sujo, Zé Pinheiro introduziu no copo o lábio ensanguentado que
ele arrancara ao cadáver e, em seguida, sorveu, de um trago, a aguardente de
mistura com o sangue de sua vítima. Risos alvares e selvagens acompanharam a
cena que iria se repetir por várias vezes, num festim macabro. Minutos depois,
o Padre Cícero vinha a ter conhecimento do que se passava. Tomado de incontida
revolta, o velhinho alquebrado e manso pediu que o levassem a ter com Zé
Pinheiro. Sua presença foi o bastante para pôr fim à bacanal de sangue e de
álcool. Embora bêbados, os bandidos estacaram. O sacerdote marchou em direção a
Zé Pinheiro e exprobou o seu crime, dizendo-lhe, de maneira que não deixava
dúvidas, que para ele não havia mais lugar em Juazeiro. Acovardados, os
celerados se retiraram cabisbaixos, batidos pela força que, de repente,
transfigurara num gigante e mirrado e doce asceta. Zé Pinheiro não ousou
desobedecer à ordem do Padre Cícero. Viajou para Alagoas, onde veio a ter um
fim perverso e trágico. Eis como Xavier de Oliveira, no livro “Beatos e
Cangaceiros” se refere à morte do desalmado bandido: “Nas Alagoas, alguns meses
depois, uma mulher terrível mandou Zé Pinheiro buscar a orelha de uma amante de
seu marido. Mas, ao invés de uma, dentro em pouco ele entregou-lhe duas!... Num
engenho de açúcar, em Água branca, naquele Estado, ele estava depois do crime.
Uns cabras, seus patrícios, o cercaram e, pegando-o de jeito, prostraram-no por
terra, ferido mortalmente. E cumprindo ordens... começaram logo a tirar-lhe o
couro. Depois de esfolado, esquartejaram-no e, como de praxe, ali, meteram-no,
a seguir, numa fornalha... Quintino, cuja língua quis ele comer com aguardente,
estava vingado... Findou assim esfolado, esquartejado e queimado o maior
bandido dos sertões do Nordeste.”
(Fonte: - http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx…
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