"Foto do bando feita a exatamente 86 anos atrás, na cidade de Limoeiro do
Norte, Ceará, no dia 16 de junho de 1927. O original desta foto me foi presenteada
pelo meu avô materno no ano de 1952. Ele, como fazendeiro e tendo vivido toda a
sua existência na zona rural, era um grande estudioso de LAMPIÃO a quem
conheceu pessoalmente."
Edmilson Rodrigues do Ó
BEM ALI MORREU
LAMPIÃO! (por Roberto Pereira)
Não conheço
ninguém que seja tão nordestino como eu.
Venho de duas
vertentes visceralmente nordestinas: meu pai, sertanejo alagoano da Ribeira do
Ipanema, afluente do São Francisco; minha mãe, legítima sertaneja, nativa das
terras do Cariri da Paraíba, centro do polígono da seca; dos carrascais e
dos espinhos, das baraúnas, dos facheiros, da macambira, do rompe-gibão; das
lindas e frias noites de lua-cheia.
Talvez daí o
interesse natural que desde cedo em mim se manifestou por essas coisas que
falam de perto dos costumes, da vida, da história, principalmente da história,
tão rica e sofrida história desta nossa terra e dos que a fizeram através dos
tempos.
Nasci em
Campina Grande, onde vivi a adolescência e em seguida fui residir no Recife,
pela necessidade de ingressar no curso superior então inexistente na nossa
cidade. E apesar de hoje residir em João Pessoa, jamais perdi o contato com a
minha cidade e os meus velhos amigos, com quem me encontro frequentemente para
boas conversas e bons whisky.
Aos 14 anos consegui
ler Os Sertões, depois de cinco ou seis tentativas. E ficou para sempre carimbada
em meu pensamento a narrativa dos episódios épicos maravilhosos, da coragem, da
decisão, do estoicismo, da grandeza daquele bronco Mestre Conselheiro, herói tosco,
pobre, mas detentor de uma força espiritual monumental, indestrutível e
amedrontadora.
Daí para as
histórias do cangaço foi um passo.
Ligado ao pessoal
da Fundação Joaquim Nabuco de Pesquisas Sociais em Recife, um dia recebo um
convite do escritor Frederico Pernambucano de Melo, presidente daquela
fundação, para participar de uma mesa de debates sobre o tema cangaço, com a
presença de uma mulher, ex-cangaceira, chamada SILA, testemunha presencial e
participante daquele episódio crucial do cangaço ao qual se denominou como “a
ultima batalha” contra o bando de Lampião, em que o bandido tombou pelas balas
da volante alagoana do tenente João Bezerra.
Naquela noite,
até bem tarde, estivemos debatendo, conversando, perguntando, principalmente
perguntando muito a essa preciosa protagonista desse episódio fundamental,
todos aqueles detalhes que muitas vezes são esquecidos nas narrativas que nos
chegaram às mãos até então.
E dali nasceu
também uma amizade com aquela bela sertaneja simples, modelo fiel da nordestina
pobre, nascida numa época de costumes primitivos e absoluta ausência de um
Estado que assegurasse o mínimo de
cidadania numa região varrida pela seca, a violência e a miséria.
Em cerca de
uma centena de obras que tenho na minha estante sobre o cangaço eu, não sei por
que, sempre me detenho no episódio que narra a dificuldade da tropa de assalto
para embarcar à noite e descer o Rio São Francisco, a partir da cidade ribeirinha
de Piranhas, no Estado de Alagoas numa improvisada embarcação,
em demanda do local aonde se escondia o bando de Lampião e todo o
seu estado-maior, para a batalha final.
Todas as vezes
que releio alguma dessas narrativas, sinto como se me
transportasse para aquele ambiente; e, pondo-me no meio
deles, procuro imaginar e ao mesmo tempo analisar o estado de
espírito daqueles militares, semianalfabetos, pobres, mal nutridos,
amedrontados diante da missão gigantesca e cheia de perigos a que estavam
implacavelmente ligados, até o fim das suas vidas. Que sensação
apavorante, quanta expectativa, o medo estampado naquelas faces maltratadas, o
frio de uma noite invernosa, silenciosa, tétrica naquela
lenta e incerta viagem rio abaixo.
Isso me
impressiona até hoje. E nunca me saiu da cabeça a idéia de um dia, por minha
própria conta, refazer exatamente aquele itinerário. Para mim
aquilo chegou a ser quase uma obsessão. Ah, eu haveria sim, de
repetir aquela saga. Descer o rio até a praia onde se deu o desembarque.
Eu queria sentir na pele ao menos a grandeza da paisagem.
A VIAGEM
Daquele
encontro na Fundação Joaquim Nabuco restou uma boa amizade com Sila, que dali
por diante passou a ser minha hóspede, nas vezes em que vinha ao
Recife, geralmente convidada para eventos regionais e palestras,
principalmente junto às prefeituras municipais e às universidades ,
onde invariavelmente os estudantes, curiosos acerca dos assuntos do
cangaço, adoravam ouvir aquele depoimento feito em linguagem
simples e despojada, o que inevitavelmente criava um clima de
empatia, animado, contagiante e entusiasmante acima de
tudo. Os estudantes adoravam-na. E ela aproveitava para fazer noites de
autógrafos de um livro biográfico que recentemente ditara
para um escritor paulista.
Um dia
convidei-a para conhecer a minha cidade natal, Campina Grande. E logo nessa
primeira visita ela ficou apaixonada pela cidade. Foi mesmo amor à
primeira vista. A tal ponto que, com o meu próprio incentivo, logo
mostrou o desejo de arrendar uma barraquinha na época do Maior São João do
Mundo, para comercializar pratos típicos, no preparo dos quais era uma
verdadeira mestra, como também comercializar os famosos embornais
usados pelos cangaceiros, que ela bordava como ninguém e,
evidentemente, atrair com a sua história, toda a população que
certamente afluiria ao seu quiosque. Visitei o então Secretário de
Turismo de Campina Grande, Dr. Gleriston Lucena a quem narrei o projeto.
Ele mostrou-se receptivo a ideia e disse-me não haver nenhum problema. Seria
até proveitoso para o turismo da cidade.
Como a essa altura o Dr. João Dantas
já estava entusiasticamente integrado ao projeto, ficou a seu cargo
as tratativas para o caso, uma vez que eu tinha viagem marcada para o Sul.
Residindo em
João Pessoa, a partir de 1996, hospedei-a em minha casa três ou
quatro vezes; e através do saudoso amigo Dr. Amauri Vasconcelos,
e do Dr. João Dantas, levei-a para palestras em Campina
Grande, junto ao meio universitário, como também em João
Pessoa, onde a acompanhei; ela sempre fazendo muito sucesso.
Uma noite, já
bem tarde, recebo um seu telefonema. Muito contente com o resultado do
lançamento de mais um livro, SILA, MEMÓRIAS DE GUERRA E PAZ, desta vez
editado pela Universidade Federal Rural de Pernambuco com patrocínio da
Petrobras.
“Roberto,
dizia-me, estou enviando de cortesia uns exemplares do novo livro
para você. Na página 89 cito o seu nome com muito prazer. Nunca lhe falei, mas
desde o dia em que você me levou a Campina Grande, aquela sua cidade
maravilhosa, parece que as portas se abriram para mim. Várias Universidades ,
do Ceará, do Rio Grande do Norte, Piauí, e Maranhão começaram a me convidar
para palestras e o certo é que estou com agenda cheia. Você foi o meu anjo
desde aquele dia. Muito obrigada, mais uma vez”.
Mas aquela ideia
de refazer o trajeto da força alagoana continuava me perseguindo. E nada
melhor pensei eu do que agora, na companhia de alguém que
protagonizou o episódio.
Expliquei
a Sila o meu desejo e a minha curiosidade. Então, convidei-a
para me acompanhar; e ela, prontamente, atendeu ao meu convite.
Na verdade
Sila não viveu o auge do cangaço, é bom que se diga; pois, jovem
que era, só pelo fim da década de 30 ingressou nas lutas. Digo mais, que
apenas por um período de tempo relativamente curto ela
participou dos combates; mas a sua presença junto ao casal Lampião-Maria
Bonita, na sua última noite, lhe confere uma importância
fundamental, pois que foi vivida na intimidade do casal, e ela como ouvinte atenta das derradeiras palavras e lamentos da rainha dos
sertões.
Partimos então
do Recife numa madrugada chuvosa e convidamos para nos
acompanhar o casal Paulo Marques, então pro-reitor da Universidade Rural de
Pernambuco, sociólogo e grande estudioso da saga do cangaço. Nosso destino: a
margem esquerda do Rio São Francisco, precisamente a cidade de Piranhas, um
romântico lugarejo, cheio de beleza e história, engastado em pleno canyon
do médio São Francisco, onde os Estados de Alagoas e Sergipe se dividem.
A ROMÂNTICA PIRANHAS
Rompemos
esses 450 quilômetros de percurso em cerca de 6 horas, em meu automóvel,
com paradas para lanches, conversas sertanejas e, principalmente
evocações de lugares familiares à memória da ex-cangaceira. Em
Santana do Ipanema revi parentes por parte do meu pai, fomos festivamente
homenageados e seguimos em frente.
Ao chegarmos
finalmente na cidade ribeirinha, saí desesperado a procura de uma
embarcação para enfrentarmos a empreitada de descida do rio; e não foi fácil a
tarefa pois que as rústicas “canoas” como são chamadas aquelas embarcações
à vela, típicas da região do médio São Francisco
inexistiam na ocasião, pelo que tive de contratar um barco de carga, movido a
diesel com tripulação de 4 homens, o que encareceu bastante a
jornada de navegação. Mas, tudo bem, tudo maravilhoso, pois o que me alegrava
era exatamente a realização daquele meu sonho antigo, acalentado durante
décadas e que finalmente haveria de se materializar e, principalmente, de
uma forma especial, na companhia de uma testemunha presencial do grande assalto.
O GRANDE
RIO
Embarcamos e
começamos a descida do rio. A visão é majestosa, incomum, misteriosa. A
calha por onde navegamos esmaga-se entre penhascos monumentais ;
e as curvas sinuosas que faz o caudal, transformam o
percurso numa aventura diferente e grandiosa , por entre as
muralhas gigantescas e amedrontadoras. Cada metro navegado naquelas
águas verde-escuras esconde algum mistério não se sabe bem de
quê, nem de onde.
Eu não cansava
de contemplar aquela paisagem tão conhecida dos personagens do
passado, e nela inseria os meus sonhos, a minha imaginação quase infantil, a
minha criatividade. E me via como um soldado amedrontado descendo o rio
para a ultima batalha.
NA PROA DA EMBARCAÇÃO
Sila, na proa
da embarcação, cabelos açoitados pelo vento, erguia o seu olhar para
aquelas muralhas gigantescas e se deixava sonhar, como se o tempo tivesse
voltado. As lágrimas escorriam pelo seu rosto e ela, vaidosa, com um lenço
procurava dissimular a sua emoção. Tirava os óculos, enxugava as lágrimas e
voltava a sonhar. Às vezes focava o seu olhar nas águas do rio, como se
quisesse conversar com a natureza e mandar alguma mensagem para o fundo das
águas.
Navegávamos
a baixa velocidade em virtude de rochas que em alguns pontos
daquele trecho do rio afloram a superfície, motivo pelo qual só bons e
experientes condutores com amplo conhecimento do trecho , se
atreviam a conduzir embarcações daquele porte.
Quase
uma hora durou a viagem; até o momento em que os tripulantes,
conhecedores de toda a região ancoraram numa praia à margem direita do grande
rio. Aí aportamos, para logo iniciarmos, a pé, a
subida da grande montanha. Na frente, três dos
experientes tripulantes abrindo caminho à foice e facão,
rompendo a vegetação, verdadeira muralha de cactos de toda espécie, da
jurema ao rompe-gibão, das urtigas traiçoeiras aos quipás e unhas-de-gato;
enfim, uma variadíssima flora, boa parte ainda desconhecida para
mim. Logo atrás em fila indiana, vínhamos nós, sempre
revezando, passando um à frente do outro, dependendo de
quem caísse, vitima dos tropeços nas pedras do caminho inclinadíssimo
e tortuoso. O calor era intenso e as dificuldades da
caminhada aumentavam a cada metro. O clima abafado e sufocante nos tirava
o ar e o suor ensopava os nossos corpos. Cerca de 1 hora
demorou essa viagem exaustiva e desgastante montanha acima, até que
num determinado momento os guias pararam e nos avisaram que abririam uma
clareira na mata afim de que pudéssemos ter acesso a gruta. Assim
foi feito.
AQUI O HOMEM
MORREU
De
repente descortina-se diante de nós um cenário diferente: um mundo
feito de rochas pontiagudas dos mais variados formatos e tamanhos,
sombreadas por gigantescos e centenários pés de Angicos, que dão ao
lugar um aspecto de cenário teatral, escuro, misterioso, solene. Parece
uma tela de pintura antiga. O silencio profundo aumentava a
sensação de coisa misteriosa, mágica, esquisita. E lá num canto,
fixada numa das rochas, ao pé de uma cruz, uma lápide de
mármore onde se lê uma mensagem anônima de homenagem aos que ali
tombaram, com seus respectivos nomes.
UMA SINGELA
ORAÇÃO
Sila
aproxima-se daquele tosco monumento lê vagarosamente a
mensagem de homenagem gravada na rocha e começa a chorar. Um choro sentido,
emocionado, cheio de dor. Eu a seguro pelo braço e procuro afastá-la dali,
comovido com a sua emoção. Sentamo-nos então ao abrigo de uma grande pedra, em
baixo da qual Maria Bonita, segundo Sila, foi degolada viva. Para
todos os locais onde voltávamos a vista, Sila rememorava algum fato: ora
a pedra de onde ela, juntamente com Maria Bonita enxergou um brilho
de luz na noite escura, ora o local onde estavam ela e o marido no
interior da sua tolda, de onde, surpreendida pela fuzilaria, correu sem sequer
calçar suas sandálias, o que lhe deixou os pés feridos e ensanguentados;
mais na frente um pequeno tanque natural cavado na rocha onde o
primeiro cangaceiro foi surpreendido apanhando água e sumariamente fuzilado;
mais atrás o recanto onde ficou para sempre um seu irmão, o Mergulhão, tão
animado, tão carinhoso que era; por traz dos angiqueiros a brecha
por onde ela com os demais conseguiram escapar; finalmente o local exato em que
Lampião armara a sua tolda e de onde sequer conseguiu sair para responder
ao ataque fulminante. Ali, o grande comandante, o herói dos
sertões, o cavaleiro do desespero, como lhe chamaram então, fora abatido como
uma ave no ninho: indefeso, frágil, exatamente da forma como ele nunca
desejara morrer. Tudo naquele lugar lhe era familiar. Era como se ela
retornasse no tempo e se reinserisse naquele cenário. Tudo muito
emocionante, comovente e inesquecível. Precisamente do local
onde Lampião foi baleado, apanhei três pequenas pedras e as coloquei no
bolso, para servirem de lembrança daquele lugar. Guardo-as comigo até
hoje.
TRISTES
EVOCAÇÕES
Permanecemos
ali, como se estivéssemos hipnotizados, por quase 1 hora,
quando finalmente minha mulher propôs que todos se reunissem em
torno do pedestal e rezássemos em voz alta uma oração em homenagem
aos infelizes que ali tombaram. Em seguida começamos vagarosamente
a nos afastar do local, agora com um solene e emocionante respeito. Então
iniciamos a viagem de descida da montanha. Sila, ainda compungida,
chorava baixinho. Enquanto perfazíamos todo aquele trajeto de descida,
avistávamos lá embaixo, soberbo e silencioso o velho Rio São Francisco; e
nos afastávamos devagar daquele lugar misterioso. E eu, tal qual
uma criança, não conseguia a partir daqueles momentos, esquecer aquela
aventura verdadeiramente fascinante que ficou na minha memória para
sempre.
O sol já se
escondera quando embarcamos de volta. E navegamos durante quase o resto do
trajeto rio-acima, em plena escuridão, contemplando do nosso barco
aquelas luzes fraquinhas nas margens do rio, indicativas da existência
de vida.
Pernoitamos na
cidade de Paulo Afonso e na madrugada seguinte rumamos para a cidade de Poço
Redondo, já no Estado de Sergipe, de grande significação para mim, pois, além
de ser o berço de nascimento de Sila, foi, na época do cangaço, a cidade que
mais contribuiu para a formação dos contingentes cangaceiros, através de seus
filhos, rapazes e moças da cidade, muitos ainda adolescentes, como foi o caso
de Sila, outros casados e com suas mulheres, alguns filhos de famílias
importantes da cidade, tudo como se o cangaço fosse uma atividade,
digamos, esportiva.
Explica-se:
naqueles confins do mundo, onde as noticias não chegavam, reinava
absoluto, um exército diferente, de homens valentes,
desafiadores, ricos, fortes, vestidos de forma extravagante, chapéus de
aba virada, corajosos, ostentando joias preciosas pelo corpo e temidos
por todas as populações. Tudo isso em caráter ” oficioso” , pois que,
apesar de perseguidos pelas policias de todo o Nordeste, desafiavam-nas
abertamente chamando-as para as lutas, tal qual guerreiros de um mundo
encantado, diferente, surreal, onde Deus era o Padim
Cicero, e esse mesmo Deus os abençoara; e mais, conferira-lhes
patentes de oficiais do chamado Exército Patriótico, criado pelo governo
federal, imagine, para defender a Pátria da ameaça comunista;
e assim transformara-os também em defensores da Pátria.
Tudo isso
confundia aquela juventude sertaneja desavisada, principalmente as
adolescentes, que facilmente se apaixonavam por aqueles belos
legionários e partiam com eles, em busca de emoções. Foi assim com Sila e
com várias amigas suas, todas nascidas e criadas ali em Poço Redondo, às
margens do São Francisco.
Ultima
remanescente daqueles grupos, ela visitava vez por outra a sua querida
cidade, onde era recebida como uma rainha. Nessa viagem conosco ela foi homenageada pelo prefeito da cidade, em casa de quem
almoçamos. Varias pessoas foram vê-la, inclusive um seu irmão, que permaneceu
na luta da agricultura por toda a vida, e nunca saiu da sua querida cidade.
Ela circulava
pela pequena cidade e revia os lugares aonde passou parte da sua
juventude. Observava a pracinha, onde no passado passeava com as amigas,
as casas pobres que ainda resistiam a ação do tempo e que tiveram alguma
significação na sua vida. Olhava aquilo tudo com um ar de tristeza
e saudade. Parava, fixava o olhar para o alto e deixava as lágrimas lhe
molharem a face.
De Poço
Redondo seguimos para Aracajú, onde Sila mantinha um pequeno apartamento,
e ali encontramos o seu filho Wilson, fotógrafo profissional
em São Paulo. Alí pernoitamos e no dia seguinte empreendemos
a viagem de volta ao Recife.
SILA
Sila não teve
um casamento feliz. E nem podia ser: seu marido era um homem rude, primário,
vítima como ela, da pobreza de uma região. E as feridas ficaram pela vida
à fora, desde o primeiro encontro de amor com o seu violento
companheiro quando foi estuprada .Ela, como toda honrada sertaneja,
sujeitava-se a minimizar as grosserias contra si e seguia criando
os
HOMENAGEM DO
PREFEITO
seus filhos,
todos eles pessoas do bem, integradas a vida social e excelentes
profissionais. Sofreu terrivelmente com a morte do seu filho mais velho, num
acidente de carro em Santos, e jamais conseguiu se recuperar desse golpe.
Mas cumpriu integralmente a sua missão com a maior dignidade. Quedou-se
ao lado do pai dos seus filhos até o seu respiro final.
Ela detestava
a mentira, o engodo, a dubiedade. Era rudemente positiva.
Entrou no
cangaço por mera imprevisão sobre o futuro que a sua vida errante lhe
podia reservar. Jamais cometeu uma perversidade com alguém, mesmo nos
tempos brabos da juventude, quando seu marido era envolvido nas lutas do
cangaço e ela teve de reprimir as ameaças de morte que rondavam sua vida, em
algumas vezes usando as armas de fogo.
Um dia recebo
um telefonema de uma emissora de São Paulo que preparava uma festa de homenagem
a Sila; e, a seu pedido, solicitava que eu desse um testemunho
sobre a sua pessoa, para ser lido na ocasião. Meio sem jeito, mandei-lhe, entre
outras, estas palavras via fax: ...“ .. Você, ao lado do seu companheiro,
caminhou pelas caatingas do Nordeste; galgou as suas serras, desbravou suas
planícies, percorreu os seus varjados, ocultou-se em seus desertos, e
deixou escrita nas suas pegadas a mais autentica página da epopeia
nordestina. Por isso afirmo com a mais absoluta convicção: quanto mais pobre a
vida que lhe empurrou para a luta do cangaço, mais rica a História que você
escreveu para o futuro”. Depois me disseram que ela mesma leu a mensagem,
chorando.
Conservou na
velhice os traços de beleza agreste da juventude, quando era cantada nos
versos dos poetas de cordéis e repentistas como uma
das mais formosas cangaceiras que o sertão já viu. “De Lampião quero
Maria, de Sereno eu quero Sila” versejavam os poetas populares e cantavam os
violeiros nas suas pelejas magistrais desde a Bahia até os confins
do Maranhão. E no imaginário popular falava-se na imagem de uma sereia que nas
noites de luar emergia das profundezas do Rio São Francisco e encantava os
pescadores. Era Sila, quase uma lenda sertaneja.
Isso
constatamos quando, ao embarcarmos para a descida do rio, aproximou-se de nós
um velhinho simpático, vivido e criado à beira do rio, de onde, pescando,
tirava o seu sustento há quase 80 anos. Perguntou: “ Seu doutor, me
desculpe a liberdade; mas essa mulher que está aí com o senhor não é a
Sila de Zé Sereno?” Diante da minha resposta afirmativa ele, chorando
de emoção, afirma: “ Foi a mais linda cangaceira que o sertão já
viu. Eu era rapazinho e a vi uma vez atravessar o rio para Sergipe. Era
uma santa de tanta beleza”. Aqui tinha um coronel muito rico que naquele tempo
dizia pra todo mundo que daria sua fortuna para tomar a Sila do Zé Sereno”.
Eu então chamei Sila que aproximando-se do velhinho lhe deu um
beijo carinhoso na face. O pobre pescador tremia muito e as
lágrimas corriam-lhe nas faces. Foi uma cena inesquecível.
CONVERSANDO
COM O FILHO WILSON
Sila
Interessava-se pela vida moderna e procurava sempre se atualizar acerca
de todos os assuntos, desde a moda até as noticias do mundo político. Se,
ao se expressar algumas vezes tropeçava na busca das palavras
adequadas, compensava a carência através de uma expressão facial
limpa, convincente, que comovia e agradava a todos. Fumava
moderadamente, tomava algumas caipirinhas e era adorada pela juventude,
principalmente os universitários.
Não perdia uma
festinha de forró; mas adorava mesmo aquele forrozinho
simples, singelo, com sanfona, zabumba e triangulo, ou seja, o
legítimo pé-de-serra mesmo, como hoje se chama; e a dança era um
dos divertimentos que mais a faziam feliz, oportunidade em que voltava
aos tempos da sua juventude lá na beira do São Francisco,
relembrando seus amigos e parentes que se foram.
Em São Paulo,
onde sempre morou, trabalhou em varias atividades, desde costureira do setor de
teatro da Rede Bandeirantes de TV, até como secretária da atriz Regina
Duarte.
INTEGRADA A
VIDA SOCIAL
Conservava
os hábitos sertanejos : educou os filhos na cartilha sertaneja: tomando a
benção, tratando pai e mãe de senhor e senhora.
Certa vez
visitou-me em Recife e expressou sua revolta: é que no fim da semana que
passara, a convite de uma prefeitura do interior do seu estado, Sergipe,
viajara para um evento regional e uma feira de artesanato, onde
iria fazer uma palestra. Em sua companhia, no automóvel da prefeitura
viajavam: uma cantora nordestina famosíssima e premiadíssima que
também iria se apresentar e mais uma jornalista que cobriria o
evento. Iam todos conversando animadamente quando, ao cair da noite
fez-se estranho silencio dentro do carro. Sila então, ocupando o lugar do
passageiro na frente do veículo voltou-se para o banco de trás,
quando flagrou as duas damas abraçadas num beijo lascivo e
apaixonado. ” Tomei um enorme susto e pensei em mandar parar o carro e
pô-las para fora. Mas em seguida lembrei que elas eram duas e bem poderiam me
pôr para fora no meio da estrada deserta. Assim preferi silenciar.
Ao chegarmos na cidade chamei o prefeito e apenas lhe disse que queria
voltar só. Ele me atendeu. E as duas, tal qual duas pombinhas, danaram-se por
aí,” contou-me ela. “ E se Lampião visse isso, Sila”? Perguntei. “ Lá no
sertão ninguém sabia nem que isso existia, Roberto. .Ele, seguramente, não
admitiria isso”, respondeu-me.
“Sila, a
pessoa de Lampião ainda é um enigma. Ninguém sabe como ele
era realmente, a sua altura, o seu peso, a sua voz, o seu jeito, o seu
humor, a sua forma de tratar, enfim, você tem como me informar”?
Perguntei-lhe.
E “ela:
Lampião tinha exatamente o seu tipo, Roberto”. (Naquela época os meus 1,76m
carregavam saudosos e inesquecíveis 74 quilos). “Ele falava muito
pouco. A sua voz não era grossa e grave, como a sua aparência sugeria. Meio
fina e fanhosa. Não ria com facilidade, mas era uma pessoa alegre e se
comunicava bem com os que lhe eram próximos. Agora, a grande característica era
o seu poder de liderar. As pessoas, ao vê-lo, parece que diminuíam de tamanho e
ele era uma espécie de pai. Imprimia um respeito indiscutível.
Só para você ter uma ideia, Maria, sua mulher, não fumava na sua presença”. Escondia
o cigarro tão logo sentia a sua aproximação, tal qual uma criança diante
do velho pai”.
“E Maria
Bonita, Sila”? Como era? Era bonita mesmo, como sugere o nome? “ Olhe
Roberto, você não sabe esse tipo de sertaneja quase baixinha, da bunda
batida? Pois ela era assim. Era apenas engraçadinha. Igual a milhares de
caboclas que habitam esse sertão. Não tinha nada de fora-do-comum, como se
apregoa. Tem mais: esse nome de Maria Bonita nunca existiu. Foi um
apelido dado pela policia e a imprensa, que se espalhou, mas que nunca chegou
aos bandos. Ela era conhecida como Maria, simplesmente, ou Dona Maria de
Lampião, como chamavam os seus comandados. Ela era uma pessoa simpática, me
dava muitos conselhos sobre as coisas da vida, e lamentava muito a vida de aperreios e perigos que vivia. Chegou a me dizer que eu não devia
ter entrado para a vida do cangaço. Aqui pra nós, vez por outra ela
também fazia uma fofoquinha. Mas nada que lhe tirasse a grandeza e abalasse a
amizade que passei a ter por ela. Chorei muito a sua morte violenta e covarde,
pois foi degolada viva, pedindo pelo amor de Deus para não lhe matarem.”
Já morando em
João Pessoa, um dia recebo um seu telefonema informando que passava na cidade
seguindo para Mossoró, onde no dia posterior iria participar de um
evento, a convite do governo do R.G. do Norte. Convidei-a e
ela terminou pernoitando em minha casa, na companhia da esposa do cineasta e
jornalista pernambucano Fernando Spencer. À tarde saímos, mostrei-lhe o farol
do Cabo Branco, as lindas praias paraibanas, jantamos na praia do Poço e
por fim fui cobrado por ela sobre uma festa de forró que eu lhe havia prometido
há tempos atrás, na minha propriedade do Carirí paraibano em sua
homenagem. “Sila, disse-lhe eu: Pode marcar a data para o mês de junho, quando
você estiver disponível. Só quero que me ligue uma semana antes, que eu vou
providenciar tudo. Pode estar certa”.
Quando o carro
que a levaria a Mossoró chegou, arrumamos a sua bagagem, nos despedimos, o
carro deu partida e, cerca de 30 metros adiante, parou. Ela abriu a porta
traseira e me chamou. Imaginei que houvera esquecido alguma coisa e
parara para reaver. Na verdade ela queria apenas falar comigo para me lembrar:
“Olhe Roberto, não se esqueça de fazer um forrozinho bem pé-de-serra, na sua
fazenda como você me prometeu. Bem pé-de-serra mesmo, viu?
Do jeito que eu gosto”. “Fique tranquila, Sila, disse-lhe. Vou
tratar disso”.
Sila então
deu-me um aceno pela janela do carro e sumiu na estrada.
Não a vi
mais.
Sila morreu no
dia 14 de abril de 2005.
Fonte:
http://cgretalhos.blogspot.com.br/2013/07/reminiscencias-bem-ali-morreu-lampiao.html#.VFuIPvnF9rY
http://blogdomendesemendes.blogspot.com