Por Zózimo Lima
Leiam amigos,
a história deste ex-escravo sergipano, filho de Itabaiana, abolicionista, chefe
de famoso Quilombo Paulista. Uma figura ilustre que poucos sergipanos conhecem.
O sergipano,
embora mal nascido, afloradas nas primeiras manifestações da inteligência,
sedento de triunfo, procura sempre gasalhado longe de seu berço e raramente
recua ou tomba na peleja sem agitar na destra os florões simbólicos da vitória.
Aqui, na terra em que veio à luz da vida, é que dificilmente ele consegue alçar
o voo pouco além do da coruja.
Possuidor de qualidades excepcionais que propendam para as letras ou para as
artes, contra si levanta-se a maioria composta de medíocres, incapazes e
invejosos.
Razão tinha o douto filósofo e sociólogo conterrâneo, autor da HISTÓRIA DA
LITERATURA BRASILEIRA, quando, da tribuna da Câmara Federal, em memorável
discurso na sessão de 7 de abril de 1902, afirmara: “Onde encontrardes uma
inteligência sergipana a brilhar em qualquer sentido, em qualquer das
manifestações do espírito, ficai certos de que essa inteligência, esse talento
teve de, coagido, emigrar da pátria”.
É uma verdade a afirmativa do ilustre sergipano, reconhecida por eminentes
personagens de outras terras do Brasil. O saudoso Barão do Rio Branco, tivera
para nossa terra a denominação de “cárcere do gênio”, e o notável estadista
Nilo Peçanha, que, também, quando lhe permitiam os folgares da política
partidária, se entregava ao arroteio das boas letras e da História, chamou-a
“mãe da espiritualidade”.
Existiu um digno sergipano obscuro de origem, pois que nascera num almadraque
de senzala com o estigma ignominioso de escravo, que bem alto se elevou
elevando a sua gleba, em longínqua província brasileira onde tem memória
veneranda perpetuada em magnífico mausoléu ereto pelo povo que muito o quis e o
admirou pelo seu civismo incomparável.
Em Sergipe é ele totalmente olvidado ou talvez desconhecido.
Foi ele o negro Quintino de Lacerda, grande pelo amor aos seus desgraçados
irmãos de cativeiro e maior ainda pelo destemor com que, afrontando as iras dos
potentados escravocratas do Império, organizara por determinação de figuras
notáveis da campanha abolicionista de São Paulo, um quilombo de pretos fugidos
nos arredores da cidade invicta de Santos.
Quintino de Lacerda nasceu em Itabaiana, neste Estado, no ano de 1855, não se
sabe o dia certo, e ali viveu até 1874, quando foi vendido, aos 19 anos, para
Santos, pelo seu senhor, o major Antônio dos Santos Leite, pai do atual e
conhecido livreiro desta praça Sr. Agripino Leite.
Moleque ativo, simpático, afável, inteligente, dócil, afeiçoara-se à família de
seu senhor o Cel. Antônio de Lacerda Franco, de quem adotara o sobrenome, e com
as suas sinhás-moças estudara os rudimentos da leitura e da escrita após os
fazeres da cozinha, conseguindo, depois de oito anos de serviços como escravo,
a carta de alforria, se bem que fosse por toda Santos considerado um liberto,
com os privilégios da consideração a poucos brancos concedidos pelo seu
riquíssimo e fidalgo possuidor.
No auge da campanha abolicionista em que batalhavam com denodo e fé um
ex-escravo já ilustre, Luiz Gama e mais Antônio Bento, João Otávio, Lobo Viana,
Augusto Bastos, Robim César Américo Martins, Afonso Veridiano (que eu conheci
em 1911 no exercício de tabelião e com ele mantive estreitas relações), Vicente
de Carvalho, Silvério Fontes (sergipano, pai do grande poeta paulista Martins
Fontes), Martin Francisco, Jorge Montenegro, Geraldo Leite, Ricardo Pinto e muitos
outros vitoriosos idealistas, o preto de Itabaiana Quintino de Lacerda, que
então era capataz de turmas nos armazéns recebedores e exportadores de café,
entre os seus companheiros fazia intensa propaganda, liderava o movimento
libertador, alcançando com a sua catequese cívica prestígio extraordinário. A
massa proletária seguia-o cegamente.
A sua influência e poder de sedução eram tão grandes, o seu nome era tão
querido e respeitado, tão proclamada a sua audácia, que os abolicionistas de
Santos, não podendo conter mais em suas residências particulares o número
crescente de negros fugidos do chicote dos ferozes fazendeiros, dirigiram-se
lhe, por intermédio do seu ex-senhor e amigo Lacerda Franco, pedindo-lhe
organizasse e assumisse o comando do reduto estabelecido nas próximas matas de
Jabaquara.
É agora que começa a obra que devia elevá-lo às cumeadas da fama que o sagrou
cavalheiro da cruzada santa da libertação.
A história dos Palmares repete-se, sem o drama trágico da derrota nas planícies
e alcantis que formam o inexpugnável reduto da Jabaquara.
O negro filho
de Itabaiana desdobrou-se em atividade, caminhou resoluto para frente sem temer
os perigos que se lhe ofereciam na campanha. As palavras inflamadas, candentes,
destruidoras de Silva Jardim e José do Patrocínio, que ele ouvia nos comícios
da Praça dos Andradas e no Teatro Guarani, davam-lhe estímulo e forças de um
Anteu. O negro destemeroso tomava agora parte em todas as conspirações
libertadoras, iludia a vigilância da polícia e da tropa de linha postada nas
estradas para capturarem os fugitivos, subornava os capitães do mato, subia e
descia serras e montanhas, galgava Monte Serrate e Cubatão, fazia
reconhecimentos perigosos nas estradas do Vergueiro, e assim, sempre vigilante,
noite e dia, povoava o quilombo da Jabaquara, que, na sua ausência, era
guardado por outro negro valoroso conhecido por pai Felipe.
Santos, que considerava abolida do seu seio, desde 1886, a escravidão, era
agora o refúgio dos negros que de modo próprio se davam à liberdade, fazendo
longas e arriscadas caminhadas através das matas em busca do asilo que lhes
preparava Quintino de Lacerda.
Quando, a 13 de maio de 88, chegara a Santos o decreto que extinguia o
cativeiro foi como se propagasse a loucura coletiva entre seu povo. Bimbalhavam
os sinos das igrejas, apitavam as embarcações surtas no porto, homens, mulheres
e crianças de todas as classes e categorias sociais, gritavam e choravam de
contentamento. Fechara-se o comércio. Toda a população negra de Jabaquara,
composta de 2023 cativos com Quintino à frente, veio às ruas cantando e
empunhando palmas e estandartes.
À noite houve luminárias e passeatas e festas populares que se prolongaram por
dez dias.
No sexto dia, narra Carlos Vitorino nas suas Reminiscências, Quintino recebia
tocantes homenagens promovidas por parte das comissões organizadoras dos
festejos, como justo prêmio que cabia ao abolicionista fervoroso. E ele era,
agora, ídolo do povo santista. Evaristo de Morais em substancial trabalho sobre
a abolição focaliza a ação do negro sergipano que foi Quintino de Lacerda.
Passada a fase árdua da obra redentora, trabalhava-se, agora, em abater o
trono.
Com esse fim Quintino organizou o batalhão Silva Jardim, no qual fora investido
no cargo de seu supremo chefe, no posto de capitão. Com a proclamação, pouco
depois, da República, Quintino é promovido a major honorário por merecimento.
As patentes eram distribuídas aos mais dignos, capazes.
Candidatara-se ele à vereança municipal e foi eleito. Alguns colegas de
representação, por preconceito racial, asseveram uns, por iliquidez do pleito,
afirmavam outros, impedem a entrada de Quintino no recinto do Conselho.
Quintino queda-se no seu posto, surdo aos protestos de seus pares. Os
dissidentes chegam a um acordo honroso, mas procede-se a nova eleição dias
depois, sendo reconduzido o abolicionista sergipano.
As classes trabalhadoras e o comércio prestaram-lhe, por mais esse triunfo, que
demonstrava a sua popularidade indiscutível, significativa manifestação de
apreço.
A influência política e moral de que dispunha Quintino de Lacerda revertia em
proveito dos seus camaradas de jornada que não tinham amparo.
Filantropo, suas portas sempre estavam abertas aos desgraçados, aos náufragos
de todas as travessias por entre tormentas e procelas da existência. Por isso a
sua voz era sempre ouvida com atenção e ao seu apelo não lhe fugiam os votos
nos renhidos prélios eleitorais.
Assim, por exemplo, quando em 1891 e 1892 declararam-se em greve dois mil
trabalhadores no porto de Santos, foi o então major Quintino quem conseguiu
voltassem os paredistas pacificamente ao trabalho, recebendo, por esse serviço
relevante, uma pública e significativa homenagem do comércio.
O despeito dos seus colegas de representação no Conselho do Município mais uma
vez trouxera-lhe momentos de desgostos.
Mas ele era um homem forte, de têmpera de aço, limpo de caráter e dominado pela
mística de Deus e da Justiça.
Certa feita descobrira uma conspiração entre os camaristas. Puseram Quintino
violentamente para fora do recinto e do ocorrido telegrafara ao presidente
Bernardino de Campos, que logo interveio com imediatas providências a bem da
ordem. E Quintino continuou a fazer parte do Conselho até 1896.
Terminado o seu mandato legislativo e não querendo mais tornar às lides
partidárias da política, recolheu-se ao lar pobre mas honrado, recebendo por
essa ocasião calorosa ovação do povo que sempre o acompanhou com abnegação nas
campanhas em prol da redenção da raça negra.
Morreu Quintino a 13 de agosto de 1898. O seu enterro teve as pompas fúnebres a
que têm direito os vultos singulares que se enobrecem e passam a enriquecer a
História.
No cemitério do Paquetá descansam os seus despojos sob grandioso monumento
levantado pela gratidão dos filhos da terra de Braz Cubas.
Eu lá estive várias vezes contemplando-o com cívica devoção e comigo mesmo
lamentando que, enquanto naquela grande e orgulhosa terra um negro adventício
sergipano recebia as honras que só se tributam a quem tem mérito real, Sergipe,
a sua e minha terra, jamais teve a lembrança de lhe perpetuar o nome ao menos
numa escura via pública de subúrbio.
"Correio
de Aracaju" – 23/02/39
Fonte: facebook
http://blogdomendesemendes.blogspot.com