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quinta-feira, 24 de dezembro de 2015

VAQUEIROS E CURRAIS

Por Rangel Alves da Costa*

No Nordeste brasileiro, pode-se afirmar que os currais antecederam aos vaqueiros. Quer dizer, antes mesmo que se falasse em sertanejo montando em cavalo guiando boi e boiada pelas estradas empoeiradas, os currais já estavam instalados nas beiradas dos rios, principalmente o Velho Chico. E assim por que o desbravamento e povoação da região nordestina até então inóspita, se deu através do caminho das águas, pelos leitos dos rios que levaram o litorâneo às margens e depois às entranhas da mata.

O litorâneo trazia consigo toda uma vida juntada e então ameaçada pelas rebeliões e incertezas coloniais. E nessa junção de vida, os sonhos de se estabelecer noutras paragens e de nas novas terras espalhar seus rebanhos, ainda que pequenos. Por isso que embarcavam com seus criatórios e iam remansando nas águas em busca das margens mais propícias ao desembarque. Como as ribeiras geralmente eram ladeadas por serras, enchiam-se de contentamento ao avistar paisagens mais planas e que servissem para levantar currais e alimentar os animais pelos arredores.

Ao adentrar na mata em busca de terras para fixar moradia, o colonizador sertanejo abandonou seus antigos currais e deixou para trás as pedras fundamentais das povoações que foram surgindo nas beiradas dos rios. Depois de vencer a mata e suas hostilidades naturais e de se estabelecer em descampados ou em regiões mais altas, novos currais foram construídos e espalhados por toda a vastidão sertaneja. Nas proximidades ou ao lado das rústicas moradias, erguidos como simples cercados de proteção, abrigavam alguns cavalos e bois após a chiqueiragem do entardecer. Em meio a cantos dolentes de aboiador, os bichos iam sendo reunidos e levados à porteira. E depois os berros e mugidos até a descida da lua grande.

Na nova paisagem, com os animais criados soltos e se espalhando pelas distâncias, a sua vigilância e recolhimento só eram possíveis com o dono montado no lombo de cavalo. Cavalos brabos ou já amansados pelo arreio e chicote, venciam os espinhos e as traições da mataria no encalço da novilha mais desgarrada. Então aqueles senhores, tantas vezes protegidos por gibão, perneira e chapéu de couro, apertavam os estribos no alazão e se lançavam afoitos no rastro das crias apartadas do rebanho. Retornavam lanhados de pontas de pau, mas sempre tendo adiante o bicho mais arredio.


Assim que os sertões foram sendo cada vez mais povoados e as fazendas de gado se espalhando pelas suas distâncias, os proprietários dos grandes rebanhos foram buscar na experiência do homem da terra o cuidado exigido por suas crias. Então aqueles sertanejos de curral com poucas reses ou de pedaço de chão de pouco cultivo, passaram a exercer os ofícios da vaqueirama, do cuidando com a gadama alheia, do alimentar o bicho com palma e capim, de tirar leite, de fazer apartação, de manter a boiada sem perigo e correr atrás daquele bicho mais afoito que se embrenhava pelas matas.

Mas vaqueiros de afazeres diferenciados segundo o patrão, a fazenda e o rebanho. Vaqueiros de moradia fixa na fazenda do grande criador, ali residente com a família e tomando conta de tudo ao redor, desde o bicho à cerca de tronco ou arame farpado. Eram verdadeiros administradores das propriedades, cuidando não só dos rebanhos como das pastagens e dos serviços e melhorias. Confiados pelos patrões, destes recebiam permissões para de tudo cuidar como se fosse seu. Daí o progresso de tantas propriedades, do crescimento saudável dos rebanhos, da terra frutificando a cada passo.

Outros vaqueiros trabalhavam por empreitada, por serviço a ser realizado, mas também de forma assalariada, sem moradia nos arredores do curral. Aqueles transportavam boiadas, levavam rebanhos de canto a outro, faziam o recolhimento do gado solto nos latifúndios, corriam pelas caatingas e matarias em busca de bicho brabo. Geralmente não trabalhava sozinho, mas em dupla ou mesmo em grupo, dependendo do tamanho dos rebanhos e das brabezas dos animais. Já estes, de comparecimento diário, possuíam como ofício a apartação do gado, a chiqueiragem até o curral, o ordenhamento das vacas leiteiras, a vacinação do gado, além da esticagem até as lonjuras quando alguma rês não aparecia na contagem.

Pelos sertões se acostumou dizer que vaqueiro bom logo se reconhece pela cara lanhada ou pelo corpo marcado da luta. Com efeito, em muitas ocasiões, geralmente nas famosas pega-de-bois, o vaqueiro retorna trazendo não só o boi valente e arredio como o rosto marcado pelos espinhos, galhagens e cipós traiçoeiros. Mesmo que esteja todo paramentado ao subir no cavalo, com seu inseparável gibão, perneira, guarda-peito, chapéu de couro e roló, o vaqueiro nunca consegue vencer as armadilhas pontiagudas das caatingas.

Segundo a indumentária usada, também a diferença do vaqueiro do mato daquele de moradia na propriedade. Mas nos dois a intencionalidade maior de levar a rês ao curral. Neste, com aquele cheiro típico de estrume e com o som do berro e do chocalho, o destino de retorno da vida vaqueira. Uma vida tanto perigosa como não devidamente reconhecida. Mas foi através destes homens encourados que os sertões seguiram como boiada na estrada. E na voz o aboio dolente: “Boi na lua se escondeu, mas São Jorge no cavalo com o bicho logo desceu. Ê gado ê, ô...”.

Poeta e cronista
blograngel-sertao.blogspot.com

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