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sexta-feira, 18 de dezembro de 2020

TRECHO 4 DO ROMANCE “UM REPÓRTER DO FUTURO NO BANDO DE LAMPIÃO”

“Antes de se dirigir para a casa–grande, os cangaceiros deram, a galope, umas duas voltas em torno da praça, aparentando surpresa por não haver ninguém no lugar, muito menos ter sido preparada nenhuma resistência contra eles. Demonstravam que vieram mesmo dispostos a travar um intenso tiroteio contra os moradores do povoado. Estavam todos armados de fuzis, e tinham voltado a vestir as suas roupas de navegação, que haviam abandonado temporariamente enquanto estavam pacificamente hospedados na fazenda.

Mesmo constatando que o povoado estava deserto, os cabras se posicionaram de forma estratégica em torno da praça, para prevenir possíveis ataques, enquanto Lampião, Luís Pedro e Ezequiel Ponto Fino se dirigiram, ainda a galope, na nossa direção. Riscaram a dois metros do alpendre.

– Muito bom dia, seu Jeremias. Muito bom dia, seu Aparício – bradou o capitão – Que surpresa boa encontrá–los por aqui, uma hora desta. Cadê o povo da terra? Se escafederam assim de repente?

– Mudou–se todo mundo para a vila, capitão – respondeu Jeremias, sem levantar–se da cadeira, aparentando uma assustadora tranquilidade.

Eu fui me levantando devagar, em sinal de respeito a Lampião, e ao mesmo tempo sem saber que postura adotar diante do impávido Jeremias. Lampião foi descendo calmamente do cavalo, sem tirar os olhos de mim e do capataz. O olho esquerdo brilhava de ódio, o olho cego lacrimejava desprezo, e havia um sorriso meio zombeteiro nos lábios finos e arqueados. Luís Pedro e Ezequiel permaneciam em silêncio, e pareciam perplexos diante da placidez de Jeremias.

O capitão colocou um pé sobre um dos degraus do alpendre e descansou o fuzil sobre a perna, olhando fixamente para nós. Minhas pernas começaram a tremer. A figura de Lampião, naquele momento, era muito assustadora. Estava ali na sua mais inteira potencialidade de destruição e crueldade, embora de forma contida e dissimulada. Fazia o papel de cavalheiro do Mal. Era o Demônio na sua traiçoeira performance de elegância e cordialidade.

(...)

Lampião manteve cravado sobre mim o olhar inquisidor. Estava bem próximo de mim, eu sentia o seu cheiro forte, a emanação do seu calor. Embora fosse de minha altura, parecia bem mais alto, enorme, gigantesco. Meus cabelos estavam arrepiados.

(...)

Lampião virou–se para a praça e soprou o apito que trazia pendurado ao pescoço. Aquilo me deu um arrepio por todo o corpo. Imediatamente os cangaceiros espalhados pela praça esporearam os cavalos e vieram a galope, concentrando–se todos em frente à casa–grande. O capitão ordenou:

– Compadre Mariano, reúna um grupo e vá até o curral. Quero que matem com tiros de fuzil todos os animais que estiverem lá. Antonio de Engrácia, reúna outro grupo e vá até o depósito de grãos e à casa–de–farinha. Destruam tudo! Não quero nada em pé, nada funcionando, nada prestando mais para nada.

A seguir, virou–se para Jeremias e segurou–o pelos cabelos com brutalidade, fazendo–o levantar–se da cadeira de balanço.

– E vosmecê, seu fio da peste! O que faz aí sentado? Fique de pé diante do capitão Virgulino, gangrena do estopô!

Jeremias ficou em pé, sem fixar o olhar em nada, como se estivesse imerso num torpor. Virgulino olhou–o da cabeça aos pés.

– Eu podia sangrar vosmecê agora, seu condenado, mas tenho que reconhecer que vosmecê é um cabra de coragem. E eu respeito homem valente. Por isto vou lhe dar uma chance. Vou deixar que você escape desta, se sumir imediatamente da minha vista!

Mal o capitão terminou a frase, Mariano e o seu grupo retornaram do curral.

– Capitão, não tem um pé de criação no curral.

– Como não tem animal no curral? E onde foi parar o gado do coronel? – perguntou Lampião, já olhando para Jeremias.

– Cadê o gado do coronel, seu pustema? – gritou, próximo ao ouvido de Jeremias.

– Soltei o gado todo na caatinga ontem à tarde, capitão – respondeu o capataz, corajosamente.

Ezequiel interveio:

– Virgulino, vosmecê tá perdendo tempo com este desgraçado! Não vê que o miserável soltou o gado pra evitar que a gente matasse os animais? Ele fez tudo planejado, meu irmão. Enfia logo o punhal no pescoço desta desgraça!

Eu tomei coragem e me meti na discussão:

– Capitão, por favor, não mate Jeremias. Ele já vai sofrer punição nas mãos do coronel.

– O senhor não se meta onde não é chamado, seu Aparício! – respondeu Lampião, lançando sobre mim um olhar que me fez fugir num átimo o sangue do rosto.

Ezequiel saltou do cavalo e já veio subindo para o alpendre com o punhal desembainhado.

– Deixe que eu sangro este peste, Virgulino. Tenho uma conta pra ajustar com este corno.

– Alto lá, Ezequiel! – gritou o capitão – Quem decide aqui sou eu!

E mandou o próprio Ezequiel, acompanhado de Mergulhão, procurar querosene dentro da casa. Não seria difícil achar o produto, usado cotidianamente para acender os candeeiros. Os cabras voltaram logo depois com duas latas cheias.

– Amarre as mãos deste sujeito para trás – ordenou–me Lampião, estendendo–me uma tira de couro que havia tirado dos arreios do seu cavalo.

Achei curioso ele ter–me incumbido desta tarefa. Mas, enquanto amarrava as mãos de Jeremias, dei–me conta que o capitão ainda queria dar uma chance ao capataz. Acreditando nesta hipótese, deixei os nós frouxos, relativamente fáceis de serem desfeitos por quem tem habilidade com as tarefas de uma fazenda. Ao mesmo tempo, senti–me um pouco aliviado, com a esperança de que o capitão, ao confiar em mim esta incumbência, provavelmente me pouparia de qualquer violência.

– Espalhem querosene pela casa toda, e também pela casa do capataz. E toquem fogo em tudo! – ordenou.

Ezequiel e Mergulhão cumpriram a ordem, e em poucos minutos começavam a subir as primeiras labaredas em vários cantos das duas casas. Aí veio o momento mais terrível. Lampião puxou Jeremias por um dos braços, e foi arrastando–o com muita truculência para a porta da casa. Jeremias voltou–se rapidamente para mim, os olhos arregalados de pavor:

– Seu Aparício, se o senhor sair vivo desta, peça ao coronel pra tomar conta de minha família.

Só deu tempo para dizer esta frase, pois Lampião deu–lhe um violento empurrão, que o derrubou de bruços no meio da sala de visita, onde os móveis já estavam sendo tomados pelas chamas. A seguir fechou a porta.

– Se ele for macho mesmo, consegue se livrar das amarras, e pode escapar pela porta dos fundos. Não quero nem saber se vai conseguir. O Diabo que o carregue! – disse o capitão.”

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