Por: Rangel Alves da Costa(*)
CORONEL
NATÉRIO, OU O DILACERADO CORAÇÃO
Não haveria
nem como falar dos bens, das infinitas riquezas, das contadas e acrescidas
propriedades e posses do Coronel Natério Quintiliano Titó. Esse era o nome do
homem, do coronel dono do mundo, protetor da jagunçada e de tristezas e
solidões infinitas.
Na varanda do
casarão, bem perto da escadaria de pedra sangrantemente escrava de onde se
avistava uma paisagem num misto de mato, de bicho, de plantação e colheita,
depois de tirar por um instante o inseparável charuto do canto da boca, chamou
um dos jagunços, aquele em quem mais confiava, e foi falando coisas de se
estranhar.
Num gosto de
falar nessas coisa não, mas vosmicê é feliz Tibero? Se for pessoa que conhece
essa coisa chamada felicidade num precisa me dizer cuma é não. Só me diga se
num for, que aí vou comparar com a minha infelicidade. Arresponda homem!...
O jagunço
baixou a cabeça, matutou pra responder, então o coronel entendeu tudo. O cabra
era feliz e tava com vergonha de dizer qualquer coisa. Mas o trato havia sido
esse, não podia reclamar do vergonhoso silêncio do outro.
Coçou a cabeça
por cima do chapéu, baforou longamente, se adiantou um pouco mais do frontal do
avarandado, fez sinal pro outro lhe acompanhar e continuou na sua tristeza de
dá dó, até mesmo perante os sentimentos de um jagunço, de um pistoleiro de
marca maior, e que já havia tocaiado uma verdadeira boiada de desafetos. E
prosseguiu:
Se sua vida
vale nada, cabra veio, a minha num acrescenta um tostão, nem uma nica que só
trinca no bolso. Boiada tenho demais, terra que num sei mais nem adonde chega,
dinheiro de fazer escada pras nuvem. E acho que até subi nessa nuvem, nesse
alto da glória e poder, do mandar e nunca ser desdito, coisa que fiz sem
pensar. E o que quero agora é somente descer sem poder...
Mas coronel, o
sinhozinho... Mas o dono do mundo nem deixou o outro prosseguir, continuando
ele mesmo a falar, mas não sem antes tirar do bolso um pequeno cantil e tomar
uma golada de uma bebida forte que sempre trazia consigo. E prosseguiu no passo
da lamentação:
Vosmicê mesmo
tá como prova do poder que tenho até sobre as pessoas. Quem eu quero vem se
ajoelhar a meus pés, pedir perdão até pelo nada feito, implorar um clemência,
beijar até minhas botas. E tudo porque exigi que fosse assim, sempre lutei pra
impor uma ordem através da ignorância, da arrogância, do medo e da brutalidade.
Com meus inimigos não tenho nem muito a dizer, pois suas mãos enlameadas de
sangue e o cano de sua arma sempre fumaçando e ainda quente dos disparos sabe
quantos já mandei por terra. Mas pruquê tudo isso, meu Deus? Agora me
penitencio e pergunto pruque jamais parei pra pensar que um dia ia envelhecer e
num momento como esse me penitenciar feito um cristão arrependido. E como tô
cabra veio, e como tô...
Mas o senhor,
meu sinhozinho, ainda tem tempo de... E o jagunço foi novamente interrompido
pelo coronel dono do mundo. Se o matador tivesse oportunidade de olhar nos
olhos do patrão estranhamente veria uma feição mais ruborizada, cheia de
ressentimentos, e também um olhar cansado e distante, já sem o brilho voraz que
era uma de suas marcas. E o impensável é que veria ainda lágrimas mansamente
escorrendo, desaguando pela fronte até se espalhar pelos vastos bigodes. E com
voz trêmula o homem continuou na sua palavra.
Vosmicê, bem
sei, tem mulher e filhos. Tem uma famia, bem sei. Também tenho muitos filhos e
netos, mas num sei se tenho famia. Agora todos eles tão na cidade grande na
grã-finagem, no bem bom, gastando de minhas posse, do que consegui juntar inté
agora. Mas juro que nenhum sabe o que fiz pra chegar adonde cheguei e ter o que
tenho. Sabe apenas da fonte rica que tem, mas num sabe a custa de quantas
bataia, quantas lutas, mortes e perseguições, tive de enfrentar pra construir
esse império de nada...
Mas o
senhor... E não foi adiante porque o coronel não deixou. Este prosseguiu
dizendo que sabia que os seus dias estavam terminando, nada mais lhe daria
felicidade. E mandou que o jagunço escolhesse o que quisesse como forma de
pagamento por tudo que já havia feito, ainda que de forma tão cruel. Escolhesse
porque com os outros daria o pagamento em moeda.
O jagunço
disse que não queria nada não, apenas continuar ao lado do seu sinhôzinho até
quando ele vivesse. Então o velho senhor dono do mundo se virou e pediu que ele
trouxesse seus netinhos até ali. O cabra não entendeu nada, até pensou que
tinha de ir à capital buscar a filharada do patrão. Perguntou quando poderia
partir, e então o velho ensaiou um sorriso.
Que nada
homem, que nada. Deixe aqueles que dizem de sangue do meu sangue por lá. Eles
conhecem bem quem sou e onde vivo. Eu falo dos seus filhos, que agora quero ter
como meus netos. Vá logo homem, vá logo e traga também a mulher, o cachorro, e
tudo. Aqui agora será sua moradia.
Nos outros,
buscava uma tardia alegria. Porém difícil demais de obter diante de tantos
remorsos, arrependimentos, tristezas infinitas. Mas um dia, assim que um
molecote subiu no seu colo, ele fez um carinho e sentiu contentamento de
verdade. Um dos últimos gestos afetivos daquela velha pedra dilacerada.
(*)Poeta e
cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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