Por Brasília
Carlos Ferreira – Organizadora, 1992
Lauro
Reginaldo da Rocha era mossoroense - Insurreição Comunista de 1935 em Natal e
Rio Grande do Norte.
“SEGUNDO DIA”
Na sala onde me colocaram puseram um investigador para me vigiar. Esse vigia sentado à minha frente, tinha ordens para me manter de pé num canto de parede, de maneira nenhuma devia deixar que eu sentasse, dormisse ou cochilasse.
No início o sentinela não teve dificuldade em cumprir sua missão. Dormir eu não podia, mesmo que quisesse. Logo após a minha retirada do “quadrado”, trouxeram para lá outras pessoas. Do canto onde eu estava ouvi vozes assustadas de homem e de mulher, choro de criança, as mesmas ordens de “tira a roupa” e, a seguir, gritos pavorosos martelaram os meus ouvidos.
A porta que dava para o “quadrado” estava aberta e eu a dois passos dela. Os gritos e os soluços eram tão perto que me abalavam os nervos, podia ouvir perfeitamente as batidas do sarrafo nos espetos de bambu, era como se estes estivesse penetrando em minha própria carne. As gargalhadas dos tiras, os deboches e os palavrões vinham de roldão com o gemido das vítimas e me invadiram os sentidos, sem que eu pudesse fugir daquele inferno, eu tinha que suportá-lo, até quando, não sabia. Perdi a noção do tempo, todas as janelas estavam fechadas, as luzes acesas, não podia distinguir a noite do dia. Distinguimos o dia da noite pela visão: luz e sombra. Agora outros sentidos entraram em função para a divisão do tempo. As horas de silêncio correspondem ao dia. E quando as carnes começaram a ser dilaceradas no “quadrado”, quando os gritos, os ais e as gargalhadas enchem o espaço, é porque a noite chegou.
Mas, o suplício não sofre intermitência. Durante a noite ele é violento, brutal, arrasador. De dia o sofrimento é lento, morre-se aos poucos pela fome, pela sede. Morre-se devagarinho, de pé, as carnes se consumindo, o corpo diminuindo e afinando até ficar um esqueleto, a pele colada aos ossos.
De vez em quando me vem um pensamento que procuro afastar: a mulher e os filhos. Não sei o que está havendo com eles mas não posso pensar neles, sei que qualquer sentimentalismo é perigoso, o melhor é mudar as ideias para outra coisa, fazer de conta que eles não existem, muito embora isto muito me custou.
Os dedos estão dormentes, não há dor localizada em nenhum ponto, porque é o corpo todo que me dói. Aperto os dedos e das unhas sai um sangue preto, pisado com mau cheiro.
Não sentia fome ainda mas a sede ia aumentando cada vez mais, percebi que ela ia se tornar uma obsessão, no meu maior tormento. Procuro também afastar do pensamento a palavra água, mas é impossível. No mictório ao lado, deixaram a descarga automática funcionando, o barulho da água chega aos meus ouvidos como o som de uma cascata, sem parar.
Começo a sentir as pernas bambas. Mas sou forçado a continuar de pé, sob a ameaça de uma correia larga que o investigador empunha, à minha frente.
O tempo foi se escoando até que a noite chegou, pois alí estava a turma de espancadores para confirmá-la. Fui novamente levado ao “quadrado”. Agora, os apetrechos são outros: uma enorme palmatória, maços de jornais, indicando que novas formas de torturas iam ser postas em prática.
Fui amarrado de forma a deixar as mãos livres para receber pancadas de palmatória. Esta passou a funcionar pelo braço dos espancadores, o revezamento era feito quando um se sentia cansado. As mãos ficaram inchadas, redondas. Depois passaram a bater nas nádegas, até deixar em carne viva. Por último, fui amarrado numa cadeira, esta foi deitada ao solo, deixando-me com os pés para cima. Reiniciaram as palmadas, agora na sola dos pés.
Nessa noite estava presente um rapazinho ainda moço, de uns 18 anos presumíveis, que estava treinando para espancador. Quando iniciaram a pancadaria, esse rapaz ficou de tal forma excitado que dava gargalhadas feito louco, fingia soltar foguetes, imitava o seu chiado e estampidos, pulava, subia nas portas feito macaco, saltava lá de cima ao solo, tornava a subir, tornava a pular, dava gritos histéricos, num espetáculo inédito, coisa nunca vista nem imaginável.
A pancadaria continuava, minhas carnes começavam a rachar, e o desgraçado do tarado a gritar e a pular como um possesso. A seguir fui amarrado em forma de crucificado, trouxeram os jornais, acenderam tochas e começaram a me chamuscar como que pela um porco. O cheiro de carne chamuscada e de cabelos queimados encheu o “quadrado”. Acenderam fogueiras aos meus pés, o calor tremendo e a fumaça me asfixiavam, a sede aumentou, a garganta ressecou. Os carrascos iam alternadamente lá fora, para respirar. Eu não podia sair dali. Estava sendo assado vivo.
E o miserável histérico a pular e gritar delirantemente.
CONTINUA...
Na sala onde me colocaram puseram um investigador para me vigiar. Esse vigia sentado à minha frente, tinha ordens para me manter de pé num canto de parede, de maneira nenhuma devia deixar que eu sentasse, dormisse ou cochilasse.
No início o sentinela não teve dificuldade em cumprir sua missão. Dormir eu não podia, mesmo que quisesse. Logo após a minha retirada do “quadrado”, trouxeram para lá outras pessoas. Do canto onde eu estava ouvi vozes assustadas de homem e de mulher, choro de criança, as mesmas ordens de “tira a roupa” e, a seguir, gritos pavorosos martelaram os meus ouvidos.
A porta que dava para o “quadrado” estava aberta e eu a dois passos dela. Os gritos e os soluços eram tão perto que me abalavam os nervos, podia ouvir perfeitamente as batidas do sarrafo nos espetos de bambu, era como se estes estivesse penetrando em minha própria carne. As gargalhadas dos tiras, os deboches e os palavrões vinham de roldão com o gemido das vítimas e me invadiram os sentidos, sem que eu pudesse fugir daquele inferno, eu tinha que suportá-lo, até quando, não sabia. Perdi a noção do tempo, todas as janelas estavam fechadas, as luzes acesas, não podia distinguir a noite do dia. Distinguimos o dia da noite pela visão: luz e sombra. Agora outros sentidos entraram em função para a divisão do tempo. As horas de silêncio correspondem ao dia. E quando as carnes começaram a ser dilaceradas no “quadrado”, quando os gritos, os ais e as gargalhadas enchem o espaço, é porque a noite chegou.
Mas, o suplício não sofre intermitência. Durante a noite ele é violento, brutal, arrasador. De dia o sofrimento é lento, morre-se aos poucos pela fome, pela sede. Morre-se devagarinho, de pé, as carnes se consumindo, o corpo diminuindo e afinando até ficar um esqueleto, a pele colada aos ossos.
De vez em quando me vem um pensamento que procuro afastar: a mulher e os filhos. Não sei o que está havendo com eles mas não posso pensar neles, sei que qualquer sentimentalismo é perigoso, o melhor é mudar as ideias para outra coisa, fazer de conta que eles não existem, muito embora isto muito me custou.
Os dedos estão dormentes, não há dor localizada em nenhum ponto, porque é o corpo todo que me dói. Aperto os dedos e das unhas sai um sangue preto, pisado com mau cheiro.
Não sentia fome ainda mas a sede ia aumentando cada vez mais, percebi que ela ia se tornar uma obsessão, no meu maior tormento. Procuro também afastar do pensamento a palavra água, mas é impossível. No mictório ao lado, deixaram a descarga automática funcionando, o barulho da água chega aos meus ouvidos como o som de uma cascata, sem parar.
Começo a sentir as pernas bambas. Mas sou forçado a continuar de pé, sob a ameaça de uma correia larga que o investigador empunha, à minha frente.
O tempo foi se escoando até que a noite chegou, pois alí estava a turma de espancadores para confirmá-la. Fui novamente levado ao “quadrado”. Agora, os apetrechos são outros: uma enorme palmatória, maços de jornais, indicando que novas formas de torturas iam ser postas em prática.
Fui amarrado de forma a deixar as mãos livres para receber pancadas de palmatória. Esta passou a funcionar pelo braço dos espancadores, o revezamento era feito quando um se sentia cansado. As mãos ficaram inchadas, redondas. Depois passaram a bater nas nádegas, até deixar em carne viva. Por último, fui amarrado numa cadeira, esta foi deitada ao solo, deixando-me com os pés para cima. Reiniciaram as palmadas, agora na sola dos pés.
Nessa noite estava presente um rapazinho ainda moço, de uns 18 anos presumíveis, que estava treinando para espancador. Quando iniciaram a pancadaria, esse rapaz ficou de tal forma excitado que dava gargalhadas feito louco, fingia soltar foguetes, imitava o seu chiado e estampidos, pulava, subia nas portas feito macaco, saltava lá de cima ao solo, tornava a subir, tornava a pular, dava gritos histéricos, num espetáculo inédito, coisa nunca vista nem imaginável.
A pancadaria continuava, minhas carnes começavam a rachar, e o desgraçado do tarado a gritar e a pular como um possesso. A seguir fui amarrado em forma de crucificado, trouxeram os jornais, acenderam tochas e começaram a me chamuscar como que pela um porco. O cheiro de carne chamuscada e de cabelos queimados encheu o “quadrado”. Acenderam fogueiras aos meus pés, o calor tremendo e a fumaça me asfixiavam, a sede aumentou, a garganta ressecou. Os carrascos iam alternadamente lá fora, para respirar. Eu não podia sair dali. Estava sendo assado vivo.
E o miserável histérico a pular e gritar delirantemente.
CONTINUA...
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