Por Ruy Guerra
Imagem de Rufino por mim extraída na internet Antonio Corrêa Sobrinho
O sol do meio
dia fazia da Praça de Jeremoabo um imenso deserto.
Lembro-me que tudo se passou nesse ano triste de 1961, ano da morte do Miguel Torres, no acidente desse mesmo jipe ali estacionado, coberto de poeira, junto da única loja aberta naquele vazio do mundo. Só não me lembro como foi que o coronel Rufino surgiu, ali sentado, esfíngico, vestido de uma camisa e calça caqui, certamente sem atinar muito bem o que queríamos dele. Nós, igualmente calados, sem outro projeto que o de trocar umas palavras com o homem que matou Corisco.
Mas daqui para a frente, tudo ficou marcado em mim com uma nitidez que chega a assustar. Cada gesto, cada palavra, cada silêncio, foi ficando através do tempo mais depurado, mais definido, mais exato. Não há um detalhe, uma palavra, um sentimento, de que eu não tenha a convicção serena que foi assim, rigorosamente, que tudo se passou. Pedi uma cerveja, que chegou morna. O coronel Rufino, não sei porque isso me devia surpreender, pediu um sorvete de morango. O Miguel Torres, por uma dessas crueldades da memória, deixou de estar presente. Houve um silêncio largo, desses silêncios de quando estranhos se medem e se perguntam a si mesmos como começar essa aventura que é ade se conhecer.
Do coronel Rufino eu sabia tudo o que me parecia importante saber: que era o maior caçador de cangaceiros ainda vivo, que há muito estava aposentado, que era de ali mesmo, daquele Sertão. De nós, imagino, ele sabia apenas que fazíamos cinema e pensávamos filmar por aquelas bandas. E não parecia particularmente interessado em saber mais. Aceitava o encontro como a inevitável curiosidade que desperta quem traz o estigma de ter matado o bandoleiro mais mítico de toda a história do cangaço. Com movimentos pausados, de quem tem toda a velhice diante de si para gastar, ia sorvendo o seu sorvete de morango.
O que mais me marcou nesse encontro, para já, foi isso mesmo: o sorvete de morango. A cor desmaiada do sorvete barato, a colherzinha vagabunda na mão grossa, seca, veienta, com o dedo mindinho ridiculamente afastado dos outros dedos. Por que um sorvete e ainda mais de morango?
Por causa desse insólito sorvete, me custou a lançar a conversa. Comecei com perguntas banais de que já conhecia as respostas, e que não justificavam o desvio que havíamos feito por aquelas poeiras calorentas do Sertão para este eventual encontro. Se ele, coronel Rufino, havia comandado muitas volantes atrás de cangaceiros? Se toda a sua vida se havia dedicado a essa caça? Se havia dado voz de sangrar a muito bandido? A cada pergunta, Rufino ia monossilabicamente confirmando, pausado, aparentemente mais atento ao sorvete de morango que ao óbvio questionário.
- E Corisco? O senhor matou Corisco?
- Matei.
O coronel Rufino não era um homem alto, nem tinha nada que à primeira vista pudesse impressionar alguém que não soubesse do seu passado. Nos seus 60 e tantos nãos, imagino, não se lhe sentia um grama de gordura. Tinha um rosto marcadamente nordestino, sem emoções visíveis, os olhos fendidos preparados para os exageros da luz da caatinga e uma voz surpreendentemente jovem.
Parecia desinteressado, embora cortês. Senti-o, não ansioso, mas decidido a terminar o encontro com o final do seu, para mim já irritante sorvete de morango. Foi essa certeza, e o sentimento da idiotice das minhas perguntas, que me fizeram perguntar de supetão, gratuitamente.
- O senhor, coronel, torturou muita gente?
O coronel Rufino parou de comer o seu sorvete, a mão pesada, suspensa no ar, a meio caminho. Pela primeira vez o senti pensar rápido, embora o tempo durasse. Depois, delicadamente, pousou a colher. Até então ele nunca me havia encarado, e ainda aí não o fez. Limitou-se a olhar a imensa praça vazia, assustadoramente amarelada pela crueldade do sol.
- Seu João!
A sua voz continuava controlada e, embora o tom da voz não tivesse aparentemente subido, atravessou a distância. Foi então que eu notei que um camponês desgarrado estava passando. O homem entrou no bar, as alpercatas de couro sem ruído, o chapéu de palha agora respeitosamente na mão. Um olhar rápido para os forasteiros, o tom respeitoso.
- Sim, coronel?
O coronel falou num tom macio, quase afetuoso.
- Seu João, o senhor me conhece há muito tempo, não é verdade?
- Conheço sim, coronel.
- Quem sou eu?
Uma leve estranheza na voz do camponês.
- O senhor? ... O senhor é o coronel José Rufino.
- Eu persegui muito cangaceiro, não persegui?
- Perseguiu, coronel.
- Eu matei muito cangaceiro, não matei?
- Matou, coronel.
A voz do coronel Rufino continuou, inalterada.
- Eu torturei muito cangaceiro, não torturei?
O camponês pareceu não entender.
- Como, coronel?
A voz do coronel Rufino parecia ainda mais mansa, mais paciente.
- Eu torturei muito cangaceiro, não torturei?
Os olhos do camponês correram por nós, intrigados.
- Não, coronel... Não senhor.
Obrigado, seu João. Pode dispor!
Como um leve aceno de cabeça para todos, o camponês, afastou-se. O coronel Rufino esperou que o homem desaparecesse no sol da praça e só então me encarou, pela primeira vez. Os olhos fendidos sem expressão, talvez por isso mais inquietantes, aprisionando os meus. A voz sempre serena, igual, mas onde se podia sentir agora, nítida uma intensa paixão.
- Toda a minha vida eu persegui cangaceiro. Prendi muitos, também dei fuga a muito pobre diabo que se meteu nessa vida por injustiça que sofreu. Mas matei muitos, muitos mesmo. De bala, de faca, de todo o jeito. Era a minha profissão.
Levantou a mão, espalmada à altura do seu rosto. Essa mesma mão, que até então tinha servido para comer aquele irritante sorvete de morango. Foi uma pausa curta, mas esses breves instantes, guardo como os de uma indefinível angústia.
- Mas esta mão, esta mão que o senhor está vendo aqui, nunca tocou o rosto de um homem, fosse que homem fosse, nem do pior bandido. Porque homem a gente mata, sangra.
Passou a mão suavemente pelo próprio rosto.
- Mas tocar o rosto de um homem, só a mulher e o barbeiro têm o direito de tocar.
O coronel Rufino retomou a colher e continuou a comer o interminável sorvete de morango. Lembro-me, que no momento, senti um imenso alívio, como se tivesse vindo de muito longe. E tinha, como compreendi mais tarde.
Daí para diante, nada mais consigo evocar. Não sei como nos separamos, se trocamos mais algumas palavras – o que duvido – além de alguma banal despedida. Mas ao longo dos anos – e muitos anos depois – comecei a relembrar e a contar, obsessivamente, este encontro. Não com o sentimento de ter escapado a algum perigo – embora ainda hoje não esteja muito certo disso – mas com a desconfortável convicção de ter ido tão fundo nesse Sertão, para ingenuamente insultar um homem na sua hospitalidade, na sua memória, no seu mundo.
Fonte: facebook
Página: Antônio
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