A Virgulino
Ferreira da Silva, o Lampião, faltava o olho direito, e ele mancava da perna
direita. O cantor Orlando Silva não tinha alguns dedos do pé esquerdo. Os
músicos Ray Charles e Stevie Wonder conviveram desde cedo com a cegueira em
ambos os olhos. Menino, Roberto Carlos perdeu parte da perna direita. A Luiz
Inácio da Silva o Lula, falta um dedo da mão esquerda.
A mitologia da
deficiência física produziu figuras públicas tão diversas quanto cruciais a
seus tempos, algumas das quais voltam feito bumerangues em momentos graves. No
Brasil truculento de 2019, é vez de o bando cangaceiro liderado pelo pernambucano
Lampião e pela baiana Maria Bonita voltarem à baila, em parte sob o
pretexto dos 80 anos da dizimação dos bandoleiros, na Grota do Angico, Sergipe,
em 28 de julho de 1938.
Dois livros de
peso revisitam o mito por enfoques de alguma maneira opostos. Em Apagando
o Lampião ‒ Vida e Morte do Rei do Cangaço, o historiador e jurista Frederico
Pernambucano de Mello reconstitui a fibra masculina da história, enquanto a
jornalista paulistana Adriana Negreiros cuida de dar luz inédita à contrafação
feminina, em Maria Bonita ‒ Sexo, Violência e Mulheres no Cangaço.
Conterrâneo de
Lampião, Frederico conta que o sertanejo Virgulino automedicou o glaucoma no
olho direito, desde a infância, aplicando-lhe claras de ovo. À falta de luz
para todos e todas no sertão nordestino de um século atrás, combateu a
escuridão do olho, da Caatinga e da Grota do Angico com rajadas de balas e com
o codinome Lampião, secundado por cangaceiros de apelidos luminares como
Corisco, Labareda, Candeeiro, Elétrico e Caixa de Fósforos.
Maria Bonita,
segundo Adriana, jamais foi chamada assim em vida (a invenção midiática
surgiria com sua morte). Nascida Maria Gomes de Oliveira, era Maria de Déa,
filha de dona Déa, ou Maria do Capitão, depois de integrada ao cangaço. Mais
moça que Virgulino 13 anos e tombada morta aos 28, xingava o companheiro de
“cego velho” e “canela de veado” nas horas de desavença.
Enfrentado com
displicência pelo Brasil das revoluções de 1930 (na tomada do poder por Getúlio
Vargas, por meio de golpe) e 1932 (na malograda reação paulista da
Revolução Constitucionalista), o casal sobreviveria menos de um ano à
instauração do Estado Novo, o golpe dentro do golpe de Getúlio em 1937.
Antes, Lampião
ajudou a República Velha a combater a Coluna Prestes, por convocação de seu
padrinho informal cearense, o igualmente mítico Padre Cícero Romão Batista
(1844-1934), num encontro sobrenatural (mas nem tão raro) entre política,
religião, Justiça e cangaço.
Em meio às
revoluções, foi disputado pela direita e pela esquerda do espectro político e
encampado pela Intentona Comunista (1935) de Luiz
Carlos Prestes, numa tentativa, segundo Frederico, de “canalizar”
cangaceiros “para outra função, para que se pudesse com eles levar a cabo uma
revolução social”, décadas antes do advento bem menos violento do Movimento dos
Trabalhadores Sem-Terra.
Ambas as obras
avançam como que complementares. Na distribuição desigual de quase tudo entre
os sexos, Pernambucano cuida da guerra e das grandes narrativas, enquanto
Negreiros mergulha a fundo na crônica do cotidiano, do comportamento, das
sexualidades das personagens. A cultura do estupro, vigente em 1938 como em
2019, ocupa parte importante de seu livro. Embora sem conotação explicitamente
sexual, o estupro do Nordeste pelo resto do País é o mote glosado por
Frederico.
Autor de
livros sobre o cangaço e a Guerra de Canudos, o pesquisador dedicou grande
parte da vida adulta ao estudo de Lampião. Guardava até a edição do livro de
depoimentos de testemunhas oculares da história, alguns mantidos inéditos desde
até 1970. As revelações históricas remontam a 1917, quando Virgulino, nascido
em 1898, selou sua entrada na ilegalidade e no banditismo.
Elemento
importante de Apagando o Lampião é a compreensão da
instrumentalização do cangaço com fins políticos, tanto pelos coronéis
nordestinos como pelos “civilizados” do Sudeste brasileiro. “Para o Brasil, o
banditismo e a seca são males necessários”, ele afirma, sob a assinatura do
conterrâneo Manoel Bastos Tigre, em artigo datado de agosto de 1938. “Como
esses mendigos de porta de igreja, que ‘cultivam’ a chaga da perna para que não
feche, assim deve o sertão cultivar a seca e alimentar discretamente o
cangaço”, apunhala o Tigre de 1938.
Embora
discorra com valentia sobre o racismo expressado pelo
afrodescendente/indígena/cigano Virgulino, Frederico planifica o sadismo
cangaceiro entre homens e a violência de bandoleiros e soldados contra
mulheres, evitando descer a detalhes desses dois assuntos que são um só. A
naturalização masculina da violência, dominante desde sempre e, em particular,
a partir da megaexposição chocante das cabeças decepadas dos cangaceiros,
encontra combate inédito na obra da escritora estreante Adriana Negreiros.
Casada com o
escritor Lira Neto (autor de biografias de Padre Cícero, Getúlio Vargas e
Maysa), ela complexifica o quebra-cabeças ao documentar as minúcias do sadismo
vigente no Brasil sertanejo dos anos 1920 e 1930.
As mulheres,
esquadrinha Adriana, chegavam ao cangaço através da violência, do sequestro e
do estupro, a maioria em idades que recuavam a até 11 anos.
Estudiosos de
época minimizaram os estupros coletivos como “peraltices insignificantes”,
segundo registra. Ela conta dos hábitos do cangaceiro José Baiano: “Depois de
esquentar o objeto (um ferro de marcar gado) no fogo em brasa, pressionava-o
contra a face, a genitália, a nádega ou a panturrilha de suas vítimas, todas do
sexo feminino”.
Morto o
companheiro em combate, restava às cangaceiras ser tomadas por outro bandoleiro
ou morrer assassinadas. Sila, esposa do cangaceiro Luiz Pedro, foi estuprada
pelos soldados depois de morta. As cangaceiras, inclusive Maria Bonita, eram
forçadas a dar os filhos em adoção assim que nascidos. A narrativa evidencia a
tensão constante entre tradição e inovação no cangaço.
..., de branco Sila e Zé Sereno - http://josemendespereirapotiguar.blogspot.com/2016/01/a-morte-de-nenem-de-luiz-pedro_17.html
Adendo: José Mendes Pereira
Corrigir o parágrafo acima.
Sila era companheira do cangaceiro Zé Sereno. A companheira de Luiz Pedro era Neném do Ouro.
O cangaceiro Luiz Pedro e sua companheira Neném do Ouro
Reconhece o
pioneirismo da admissão de mulheres no bando, a partir do apaixonamento de
Virgulino por Maria, em 1929, mas também a conservação de costumes na Caatinga
impregnada por um sadismo contemporâneo aos adventos do fascismo e do nazismo
na Europa.
“O (corpo) de
Maria seria abandonado com as pernas abertas e um pedaço de madeira enfiado na
vagina”, escreve Adriana, que em posfácio não se furta a expressar espanto
diante do descrédito lançado por estudiosos sobre a brutalidade feminicida no
microcosmo do cangaço.
Tabu entre
tabus, a violência sexual entre homens aparece de resvalo em Maria Bonita,
quando um cangaceiro penetra um subdelegado com uma vela posteriormente acesa e
queimada até o fim ‒ até aí o clarão se diz presente no sertão sem luz. A
violência não sexual entre homens é documentada por Adriana, em atos como os de
Corisco, que “arrancara a cabeça do homem, bem como seus braços e pernas, e
cortara o tronco em postas”.
No
contrafluxo, Frederico resiste a reconhecer a autoridade de Maria Bonita e
atribui a Dadá a derrocada de Corisco, morto dois anos depois do chefe, segundo
o autor por conta da cachaça e do “autoritarismo” da companheira Dadá, “que
intervém nas questões do bando a cada passo”, qual uma Yoko Ono caso Corisco
fosse John Lennon. Adriana diverge:
“A
impetuosidade e a coragem que, em Corisco, inspiravam os rapazes, na esposa
eram tomadas como autoritarismo e agressividade”.
Ambos os
autores abordam com entusiasmo a força estética do cangaço. Na
tensão-contradição entre brutalidade e ternura, Adriana aponta que Maria Bonita
brincava de boneca em campo e foi tida como uma Greta Garbo da Caatinga, e
ambos notam que Lampião era exímio costureiro à máquina Singer ‒ Frederico
afoba-se a esclarecer que, no sertão dos 1930, isso não indicava traço de
“efeminação”.
O merchandising de
primeira hora é lembrado por Adriana, na narrativa das filmagens do bando pelo
sírio Benjamin Abrahão, em 1936, sob patrocínio da farmacêutica Bayer
(explicitado por folheto de propaganda exibido nas imagens em movimento) e da
fabricante de óculos Zeiss.
O episódio
seria estetizado no filme manguebit Baile Perfumado (1998). Embora
citem o disco de xaxados gravado pelo ex-cangaceiro júnior Volta Seca (Cantigas
de Lampeão, 1957), nenhum dos autores aponta a importância de Virgulino na
gestação do mito do conterrâneo pernambucano Luiz Gonzaga (1912-1989),
consolidado a partir de baiões como Asa Branca (1947) e a canção de
passarinho cego dos olhos Assum Preto (1950).
Detalhista ao
extremo, Apagando o Lampião cobiça algo da metodologia d’Os
Sertões de Euclides da Cunha, e chega a exasperar quando entra no
labirinto de nomes de personagens secundários. No campo das interpretações
originais, expõe que, ao ser mortos imersos em crise pós-Estado Novo, Lampião e
Maria Bonita preparavam uma mudança para o Sudeste, “para roubar em Minas
Gerais”, segundo Virgulino.
Em comum
com Maria Bonita, guarda o laço de não arriscar maiores interpretações
sobre os porquês profundos da existência do bando de Lampião. O que, afinal de
contas, teria permitido a explosão de violência no Brasil sertanejo dos anos
1920 e 1930?
Que vínculos
teria o fenômeno do cangaço com expressões anteriores, da época pré-abolição da
escravização institucional, e posteriores, da marginalização que nas metrópoles
do Sudeste viria acompanhada não mais pelo xaxado, mas pelo rap,
pelo funk, pelo Movimento
dos Sem-Teto?
O Brasil
desalumiado segue a tremular em 2019, entre a deficiência visual e os fósforos
riscados de Lampião e a luz para todos e todas que nunca se consolida, do
medievo à era (des)iluminada pelo WhatsApp.
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