Por Vandeck
Santiago
Hoje faz cem
anos da morte de um nordestino que sonhou com um Nordeste industrializado e
desenvolvido. Na luta para concretizar o seu sonho, enfrentou oligarquias
estaduais, brigou com empresa estrangeira, agrediu a golpes de bengala o
político mais poderoso de Pernambuco na época (Rosa e Silva, em 1899), desafiou
coronéis da região e abriu uma fábrica no Sertão alagoano que transformava
camponeses e ex-flagelados da seca em operários, e os tratava como cidadãos.
Não podia acabar bem. Por volta das 21h de 10 de outubro de 1917, quando lia
jornais na varanda de casa, foi morto a tiros de rifles, disparados por
pistoleiros. Nunca se descobriu o mandante, ou mandantes, do crime.
Delmiro
Gouveia — este era o seu nome — morreu cedo (tinha apenas 54 anos), mas deixou
em torno de si uma série de imagens míticas, como a de pioneiro do
desenvolvimento do Nordeste, de mártir da luta contra o imperialismo e de
pobretão (órfão de pai e mãe, ex-vendedor de passagens em trem) que fizera
fortuna graças ao próprio esforço.
Nasceu em
1863, em Ipu, interior do Ceará. Perdeu o pai aos 5 anos. Sua mãe migrou para
Pernambuco, trabalhou como empregada doméstica e morreu pouco tempo depois. Ele
tinha 15 anos. Nenhum lugar do mundo é bom para um órfão de pai e mãe, nessa
idade — muito menos o Recife da segunda metade do século 19. Mas Delmiro
Gouveia contrariou o destino esperado para alguém na situação dele. A história
registra um dos seus empregos — o de cobrador de trem. Mais tarde, a origem
humilde seria alvo de zombaria dos seus adversários ricos.
Nas suas
viagens ao interior, teve o seu faro empreendedor despertado para produtos
típicos da região, peles e couros de bode, cabra, carneiro. Tornou-se
comerciante desses produtos, e conseguiu chamar a atenção de uma firma
americana, com quem fez sociedade, passando a exportar os couros dos bichos
para Europa e Estados Unidos, onde eram itens cobiçados. Saía de cena o órfão
pobre de Jó, e entrava “o empresário jovem, elegante e charmoso que despontava
no mundo dos negócios”, segundo expressão da professora da USP Telma de Barros
Correia, autora de uma das muitas obras que narram a vida de Delmiro (Pedra:
plano e cotidiano operário no Sertão, lançado em 1998, pela Editora Papirus).
Em 1899, aos
36 anos, ele inaugura o Mercado do Derby — se o leitor, ao ler este nome,
imaginou (com todo respeito) carnes, moscas, frutas e caldo de cana espalhado
por todo o recinto, permita-me dizer que está completamente enganado. O de
Delmiro reunia um centro de comércio, hotel, velódromo e parque de diversões.
Sim, nele se comercializava alimentos, mas também itens sofisticados, tecidos,
calçados, louças, jornais, livros. Sua concepção o aproximava “do conceito do
shopping center atual”, e quem diz isso não é um pernambucano bairrista, e sim
a professora da USP, Telma Correia. Há também outro testemunho insuspeito de
bairrismo — o da escritora americana Marie Robinson Wright, que o descreveu no
livro The New Brazil (1890): “(...) Um dos melhores hotéis da América do Sul, o
Hotel do [Mercado] do Derby é um dos maiores estabelecimentos do seu tipo, no
Brasil, e está equipado para os amplos negócios que diariamente são nele
realizados”.
Nos conflitos
entre Delmiro e governantes locais, o Mercado acabou pagando o pato: foi
incendiado pela polícia, em 1890. Três anos depois, Delmiro mudou-se para
Alagoas. Comprou uma fazenda no Sertão alagoano, no povoado de Pedra (atual
município de Delmiro Gouveia, a 300 km de Maceió). Lá idealiza a construção de
uma fábrica de linhas de costura — não havia nenhuma no Brasil. Para isso
precisava antes de energia elétrica. Em 1913 ele implanta uma usina
hidrelétrica próxima à Cachoeira de Paulo Afonso (BA) — e daí sai a energia
para a fábrica em Pedra.
No auge do
funcionamento, a fábrica tinha 2.000 funcionários, submetidos a jornada de 8
horas de trabalho e com creches para os filhos. O empreendimento tinha outra
experiência inovadora: uma vila operária, formada de casas de alvenaria. A
comunidade vivia sob rígidos códigos de higiene (as ruas e as casas tinham de
estar sempre limpas; era proibido cuspir na rua) e conduta (quem “mexesse” com
as mulheres operárias, era “punido” com o casamento obrigatório). Cuidava-se
também do lazer dos trabalhadores: havia sessões de cinema, bailes, pista de
patinação, campo de futebol e parque de diversões.
As inovações
de Delmiro Gouveia para o Nordeste morreram com ele, na tocaia. “E o que se vê,
em 1917, naquele tenebroso 10 de outubro”, diz o historiador pernambucano
Frederico Pernambucano de Mello, que cunhou a melhor definição sobre o assassinato
dele, “é nada menos que a morte do futuro pelas piores energias do passado”.
Foto:
Arquivo/DP
* O texto
acima retrata única e exclusivamente a opinião do autor.
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