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quarta-feira, 11 de outubro de 2017

EXÉQUIAS A UM HOMEM BOM

*Rangel Alves da Costa

Morreu. Assim como todo mundo morre ele morreu. Um homem bom, generoso, dadivoso enquanto viveu. Só lhe restavam as exéquias.
Num ritual católico, as exéquias são os préstimos de despedida, são os ritos e as últimas homenagens prestadas ao defunto. É momento solene onde se pranteia e onde se reconhece em palavras as qualidades daquele em partida.
No velório perfumado a flores brancas, a crisântemos e girassóis, envolto em velas chamejantes, lenços molhados e lágrimas derramadas, olhos e corações apertados pela tão triste despedida. Um homem bom estava de partida.
Ao fundo da sala, de braços abertos numa cruz amadeirada, um Cristo cabisbaixo, entristecido, parecia sentindo a mesma dor daqueles presentes. Amigos e mais amigos, parentes, consanguíneos, raízes plantadas ao longo de uma vida que ali se despedia.
Com a palavra o vigário: “Que desse corpo que parte e dessa alma que fica o exemplo de um bom. Um cristão em plenitude, talvez com o nome escrito nas páginas sagradas. Sim, pois foi na vida um evangelista pregando o bem e fazendo o bem”.
Com a palavra o confrade: “No teu último livro, página eterna de um poeta brilhante, talvez antecipasse sua despedida, meu bom amigo. Eis o que escreveste: Viver, partir, nada mais ser. Ou ser pela eternidade aquilo que viu, que não se foi na partida e que sempre será, pois flor fincada em raiz...”.
Enquanto os discursos se alongavam e os pratos escorriam entre as faces enrubescidas, uma perguntava a outra, baixinho: “De que ele morreu, estava doente?”. E a outra respondia: “Eu soube apenas que morreu de tristeza. Depois que pularam o muro e destruíram seu jardim, daí em diante nunca mais foi o mesmo, foi definhando cada vez mais...”.


Mas a conversa já era bem diferente noutras bocas e noutros ouvidos: “Morreu enquanto escrevia versos. Estava sentado à escrivaninha quando lhe veio um colapso fatal. E dizem que pendeu a cabeça bem em cima do último escrito: por que o outono lhe parecia a própria morte...”.
“Não. Já me contaram diferente. Dizem que ele morreu ao entardecer e enquanto ouvia um noturno de Chopin. Como se sabe, ele era apaixonado por música clássica, por Bach, Beethoven, Wagner, Strauss e muitos outros. Estava com uma taça de vinho à mão quando o noturno tomou os espaços. Então, embevecido pela canção, lentamente foi caminhando até a janela e diante aquela luz mágica do poente, apenas pronunciou: Você? e depois a taça estilhaçou pelo chão. E o homem estava morto”.
“Talvez não. Não acredito que tenha sido assim. Quem ouviu ele fazendo aquela pergunta, indagando por algo misterioso surgido além da janela, à sua frente. Por isso creio que não. No meu entendimento, conhecendo como ele era, morreu apenas por que quis morrer. Os poetas morrem apenas quando querem morrer. Não todos, mas alguns, escrevem tanta coisa bonita que passam a ter certeza que são eternos. Então apenas se desprendem do corpo físico e permanecem nas suas escritas, nos seus versos...”.
Certamente que não houve consenso sobre as reais causa da morte. Com efeito, ninguém sabia. Viúvo, solitário, convivia apenas com os seus livros, as suas folhas de papel, os seus versos e seus pensamentos. Mas tanto faz que tenha morrido de uma forma ou de outra. Na verdade, foi encontrado sentado, como que adormecido, num velho banco de seu jardim.
Com a palavra o vizinho de tantos anos: “Ah meu velho amigo, ainda ontem te avistei caminhando entre as flores. Conversava com colibris, com as flores, com borboletas e passarinhos. Será que estava se despedindo de seus melhores amigos?...”.
E de repente, pela janela, borboletas, colibris e outros passarinhos, entrando em lento voo. E sobre o falecido planando em despedida.

Escritor
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