Autor Rostand Medeiros
Como um Grupo
de Pessoas Sobreviveu Por Tanto Tempo, em um Lugar Inóspito, Após Serem
Abandonados Por Serem Considerados Seres Humanos Inferiores.
A
incrível saga dos escravos abandonados por quinze anos em uma ilha perdida do
Oceano Índico
Em 1776, 57
anos depois de Daniel Defoe escrever o clássico da literatura Robinson
Crusoe, oito pessoas foram resgatadas de uma pequena ilha chamada Tromelin, um
lugar perdido no meio do Oceano Índico. Sete destes eram mulheres que tinham
sobrevivido na ilha por 15 anos e o oitavo um menino que nasceu naquele fim de
mundo.
Aqueles
náufragos faziam parte de um grupo de 88 seres humanos que em 1761 foram
abandonados e esquecidos naquele pedaço inóspito de coral e areia, em um ponto
a 280 milhas náuticas (450 quilômetros) da costa mais próxima.
E tudo por uma
razão simples – eles eram escravos negros.
Ilha de
Tromelin – Fonte – static.panoramio.com-1
Recentemente
uma equipe de cientistas, liderados por Max Guérout, arqueólogo e ex-oficial
naval francês, vem realizando sistemáticas pesquisas em busca dos destroços do
navio que levou estes escravos e escavando na ilha para descobrir alguns
segredos de como estas pessoas se agarraram desesperadamente a vida,
desenvolveram uma comunidade elaborada em um fragmento de terra estéril,
frequentemente varrida por violentos tufões.
Escavações
arqueológicas em Tromelin.
A investigação
arqueológica, patrocinada pela UNESCO, era parte de comemorações pela luta
contra a escravidão e tinha a intenção de ampliar uma história quase esquecida
da desumanidade do homem contra o próprio o homem. Mas a pesquisa descobriu um
extraordinário conto de tenacidade humana, de determinação para sobreviver e da
capacidade de organização em face das adversidades.
A História do
Acidente
O que se sabe
sobre a Ilha de Tromelin é que este pequeno local foi descoberto no dia 11 de
agosto de 1722, pelo capitão Jean Marie Briand De La Feuillée, que comandava
o barco Diana, pertencente à Companhia Francesa das Índias Orientais
(Compagnie Française des Indes Orientales). Este chegou ao inóspito lugar após
se afastar das rotas tradicionalmente utilizadas pelos barcos da empresa por
conta de uma tempestade.
Localização da
ilha.
Como era praxe
na época o capitão La Feuillée fez uma breve descrição da ilha e um
cálculo de posição, que foram anotados no diário de bordo do Diana.
La Feuillée batizou o local simplesmente como L’Ile du Sable, ou Sand
Island, ou Ilha da Areia.
A partir daí
ninguém relatou ter visto a ilha por quase 32 anos.
No dia 17 de
novembro de 1760, o Utile, um antigo navio de guerra francês, pertencente
à mesma Companhia Francesa das Índias Orientais, zarpou de Bayonne, no sudoeste
da França, com destino à Ile de France, local atualmente conhecido como
República de Maurício.
Na época a
França estava em luta contra a Grã-Bretanha, na chamada Guerra dos Sete Anos e
o governador de Ile de France estava esperando um ataque vindo da Índia. Por
esta razão ele havia proibido a importação de escravos, temendo que estes se
tornassem mais bocas para alimentar durante um possível cerco naval.
Representação
do embarque dos escravos no Utile, em Madagascar.
Mesmo com esta
ordem o capitão do Utile, Jean De La Fargue, ancorou em Madagascar e
comprou clandestinamente cerca de 160 escravos malgaxes. Neste momento o
tráfico de escravos era algo muito rentável e os lucros daquela empreitada
deveriam trazer para o bolso do capitão La Fargue o equivalente a doze anos
de trabalho.
Em 23 de julho
o Utile retomou a sua viagem para o leste, mas foi pego por uma
violenta tempestade e no dia 31 de julho de 1761, por volta de 22:30, o barco
bateu duas vezes nos recifes de coral submerso da Ilha da Areia, que anos
depois ficaria conhecida como Ilha de Tromelin.
Hilarion
Dubuisson De Keraudic, oficial do navio Utile, escreveu um dramático e
conciso relato do naufrágio. Mais de 240 anos depois este documento foi
descoberto por Max Guérout nos arquivos marítimos da cidade de Lorient, na
França.
Dos 143 homens
que formavam a tripulação, 21 deles morreram afogados. Mas dos 160
escravos, apenas 88 “peças” que compunham a carga sobreviveram milagrosamente.
Quando se diz milagrosamente é porque os outros escravos ficaram presos no
convés inferior, com as escotilhas fechadas e morreram todos afogados.
Diante do
episódio o capitão La Fargue foi incapaz de tomar iniciativas confiáveis e caiu
em desgraça perante seus homens. O oficial Keraudic o descreveu como
“indisposto” e a liderança foi assumida pelo primeiro tenente Barthelemy
Castellan De Vernet.
Praia da ilha.
São
estabelecidos dois campos (um para a tripulação e outro para os
escravos negros) e armadas barracas. Os muitos materiais jogados
pelas ondas na praia (barris, comida, utensílios) são armazenados sob
vigilância armada e longe dos cativos.
Entre os
apontamentos feitos por Keraudic, fica bem clara a razão de quase um terço dos
88 escravos originalmente resgatados, morrerem pouco tempo depois – “Fizemos
uma grande tenda com a vela principal e algumas bandeiras. Nós vivíamos lá com
todas as fontes de suprimento. A tripulação foi colocada em pequenas tendas.
Nós começamos a sentir muito fortemente a escassez de água. Um número de negros
morreu, não sendo entregue a eles qualquer assistência”.
Uma ideia de
como ficou o barco após bater nos recifes de coral
Foram Vistos
Como Animais Que Não Valia a Pena Serem Salvos
Encontrar água
potável então se tornou rapidamente uma prioridade e o artilheiro mestre Louis
Taillefer ficou responsável por cavar um poço. Depois de um primeiro teste
negativo, uma segunda tentativa realizada em 4 de agosto conseguiu água
salobra. Além da comida recuperada, os sobreviventes comiam ovos das aves
(principalmente andorinhas) e carne de tartaruga.
Consciente de
que ninguém iria procurá-los naquela ilhota, pois eles estavam longe da rota
usual dos barcos, o primeiro tenente Castellan De Vernet começou a desenhar
planos para a construção de um barco de salvamento.
Versátil e
engenhoso, o primeiro tenente improvisa uma forja especial com um tronco e
assim consegue moldar peças de metal necessárias para a construção de uma
barcaça com 33.5 pés de comprimento, 12 pés de largura e 5 pés de altura.
Os canhões do
Utile em uma praia de Tromelin.
Em 27 de
setembro de 1761, às 17:00, quase dois meses após o naufrágio, o barco de resgate
batizado como Providência, é colocado na água e os 122 marinheiros brancos
sobem a bordo. Por falta de espaço 60 escravos negros sobreviventes são
deixados na ilha com três meses de alimentos. Os marinheiros prometem
voltar rapidamente e resgatá-los.
Partiram em
direção a Madagascar, aonde chegaram quatro dias depois na localidade
Foulepointe e apenas um homem foi perdido durante a travessia. Os marinheiros
dão testemunho do naufrágio e desenham um mapa detalhado da ilha (provavelmente
feito pelo piloto do Utile).
Em 23 de
outubro a maioria dos sobreviventes embarcou no veleiroSilhouette e vai
para a cidade de Port Louis, na Ile de France, a atual capital da República de
Maurício. Esta será a última viagem do capitão Jean De la Fargue, que
morre em 12 de novembro e tem seu corpo jogado ao mar.
Após a partida
dos marinheiros brancos, os escravos ficaram esperando o cumprimento da
promessa de que alguém viria salvá-los.
Na chegada (25
de novembro), o Governador Antoine-Marie Desforges-Boucher é informado do
naufrágio. Após saber os detalhes ele fica furioso e recusa a enviar um barco
para resgatar os escravos deixados na ilha. Documentos da época apontam que o
Governador referiu-se aos escravos como “animais” e que “não valia o gasto para
ir salvá-los”.
O Governador
era um funcionário da mesma Companhia Francesa das Índias Orientais e alegou
que não queria arriscar a perda de outro navio para resgatar um grupo de
escravos indesejados e ilícitos. Vários dignitários locais tentaram persuadir o
Governador a mudar de ideia, mas este recusou.
Talvez
desejando proteger a reputação da empresa, Desforges-Boucher buscou nitidamente
abafar o caso e não tornar público o negócio escuso do falecido capitão La
Fargue.
Após um
período de indignação com a decisão do governador, os escravos abandonados
acabam caindo no esquecimento e a promessa de Castellan não foi cumprida.
Max Guérout,
arqueólogo e ex-oficial naval francês.
Achados
Arqueológicos
Como aqueles
náufragos sobreviveram tanto tempo, em um lugar tão inóspito?
A princípio
eles tinham a água salobra do poço cavado pelos marinheiros. Tinham também
alguns implementos básicos de cozinha e a ilha é, até hoje, um terreno fértil
para tartarugas, peixes e aves marinhas.
Essa
explicação simplista bastaria como uma resposta para os muitos que desejassem
uma explicação sobre a sobrevivência deste grupo de pessoas naquele local e por
tantos anos. Mas o arqueólogo Max Guérout, criador do GRAN – Group de
Recherches en Archéologie Navale (Grupo de Investigação e Arqueologia Naval),
foi para aquela parte perdida do Oceano Índico determinado a descobrir mais.
Mergulhadores
próximo a uma das pontas da âncora do Utile – Fonte – Max Guérout, Groupe de
Recherche en Archéologie Navale
Seus colegas
arqueólogos avisaram que seria pouco provável que algum vestígio se mantivesse
em um solo fino, arenoso, em meio a uma ilha plana. Um lugar com altitude
máxima de meros sete metros, batido por ondas fortes e que localizado no
caminho dos ciclones anuais que varrem o Oceano Índico.
Guérout
insistiu que muito deveria ter permanecido na ilha e que os registros
arqueológicos encontrados poderiam contar uma interessante história. A crença
do cientista francês se baseava em intrigantes referências anotadas por
oficiais e marinheiros ingleses, quando estes realizaram visitas à ilha durante
o século 19 em navios da Royal Navy (Marinha Real). Os marinheiros britânicos
registraram que observaram restos de “casas de pedra” e túmulos dispostos
ordenadamente.
Mergulhador do
Groupe de Recherche en Archéologie Navale realizando pesquisas subaquáticas em
Tromelin.
Com o início
das pesquisas os arqueólogos e mergulhadores estiveram no naufrágio do Utile e
resgataram muitos objetos interessantes, mas nada que avançasse muito no
conhecimento desta história. Mas as escavações na areia rasa da ilha produziram
descobertas significativas.
Ficou
evidenciado que, pelos vestígios (cinzas) encontrados em camadas de sedimentos
desenterrados, os náufragos conseguiram manter com a madeira do barco o mesmo
fogo aceso por anos. Eles construíram um forno coletivo e sobreviveram com uma
dieta de tartarugas, aves marinhas e crustáceos.
Uma das
milhares de aves de Tromelin.
Seus
utensílios de cozinha confeccionados em cobre, salvos dos restos do navio,
foram reparados várias vezes de forma engenhosa e prática. Um destes tinha sido
reparado pelos escravos pelo menos oito vezes. “-Eles remendavam a peça
danificada com outras peças de cobre, usando rebites feitos à mão e forjados no
fogo do forno. Conseguimos até mesmo encontrar alguns dos rebites”, disse
Guérout.
Tacho de cobre
descoberto pelos arqueólogos, com inúmeros remendos feito pelos escravos nos
quinze anos que ficaram isolados na ilha.
Os cientistas
franceses descobriram que os náufragos desenvolveram abrigos com paredes
elaboradas, formadas por blocos de coral e areia compactada. Foram erguidos com
sabedoria, resultando em paredes sólidas e capazes de enfrentar fortes
ventos. Uma habitação coletiva foi organizada no ponto mais alto da ilha e
esta teria sido construída com restos do navio e cobertos com cascos de
tartaruga.
Abrigos
descobertos na ilha.
Escavações
também ajudaram a encontrar uma grande quantidade de utensílios (eixos,
raspadeiras, colheres, recipientes), algumas confeccionadas pelos náufragos.
Mas o que aconteceu
com os sobreviventes da Ilha de Tromelin?
A tripulação
de um navio que ancorou em Port Louis na segunda metade de 1775, anunciou haver
passado perto da ilha e visto os náufragos.
O novo
Governador em Ile de France é então Charles-Henri-Louis d’Arsac de Ternay, o “Chevalier
de Ternay” (Cavaleiro de Ternay). Este foi nomeado pelo Rei da França e não
pela Companhia Francesa das Índias Orientais. Então o veleiro Sauterelle é
enviado para realizar o resgate.
Mapa antigo da
Ilha de Tromelin, provavelmente feito pelo piloto do veleiro Utile.
Na ilha a
tripulação tenta desembarcar com uma baleeira, mas esta é destruída nos recifes
de coral. Um marinheiro nada para o Sauterelle, enquanto o outro, o
marujo Grasshopper, se juntou os náufragos na ilha.
Na sequência
dois outros veleiros foram enviados já em 1776, mas permanecem incapazes de se
aproximar da ilha. Frustrado com essas falhas e cansados de esperar, o
marujo Grasshopper tenta deixar a ilha em uma precária jangada, na companhia de
três homens e três mulheres. Mas eles desapareceram no mar.
Após estas
falhas o governador Louis d’Arsac de Ternay envia a corveta Dauphine,
capitaneado pelo nobre Jacques Marie Boudin, conhecido como “Chevalier de
Tromelin” (Cavaleiro de Tromelin).
Selo francês,
comemorativo ao capitão Jacques Marie Boudin
Tendo
aprendido as lições de fracassos anteriores, um dos oficiais do Dauphine assumiu
as operações e um barco e uma canoa foi utilizada para desembarcar na costa oeste
da ilha. Em três horas os últimos náufragos são recuperados, incluindo um
grupo de uma mesma família que tinha uma avó, a filha e a neta.
Por ocasião
deste salvamento a bandeira francesa foi hasteada na ilha e oficialmente a
França toma posse em nome do rei Luís XVI. Era 29 de novembro de 1776 e o local
passa a ser definitivamente conhecido como Ilha de Tromelin.
Foto de
Richard Bouhet, da Getty Images, que mostra claramente o grau de dificuldade
para se aportar nesta ilha.
As mulheres
resgatadas comentaram que um grupo de 18 dos náufragos malgaxes construiu um
pequeno barco à vela e partiram da ilha alguns anos antes. Mas sumiram!
Na Ile de
France os oito sobreviventes foram declarados livres.
Jacques
Maillard De Mesle, um alto funcionário francês na região, dá asilo à criança,
sua mãe (Eva) e sua avó (Dauphine). Ele insistiu que os náufragos não eram
escravos, mas pessoas livres, uma vez que eles tinham sido comprados
ilegalmente. Em 15 de dezembro de 1776 a criança salva é batizada em Port Louis
e recebe o nome de Jacques Moise. “Moise” é a forma francesa de Moisés – um
bebê resgatado da água.
Outro aspecto
dos abrigos encontrados na ilha.
O que
aconteceu com Jacques Moise e os outros depois disso?
Max Guérout
tem pesquisado os registros na França e na República de Maurício, mas sem
sucesso. Ele acredita que os sobreviventes devem ter sido incorporados pela
comunidade de escravos libertos em Maurício e provavelmente seus descendentes
estão vivendo lá até hoje.
A Ilha de
Tromelin é atualmente uma possessão ultramarina francesa, reivindicada pelos
governos de Madagascar e da República de Maurício e tem sido o local de uma
estação meteorológica francesa desde 1953. Em 60 anos de funcionamento esta
estação meteorológica sofreu muitos danos causados pelos violentos tufões e
ciclones que danificaram, ou destruíram, as suas instalações.
Foto que
mostra a estação meteorológica francesa sendo abastecida por um helicóptero,
devido as dificuldades de desembarque na Ilha de Tromelin.
O lugar é
apelidado de “Encruzilhada dos Ciclones” ou “Ilha Ciclone”, pois foi alvo de
uma dúzia destes fenômenos meteorológicos desde 1975.
Exemplo de
Sobrevivência
“-É uma
história muito humana, uma história do engenho e instinto de sobrevivência de
pessoas que foram abandonadas porque eram considerados seres humanos
inferiores”, comentou Max Guérout.
O arqueólogo
analisou que os náufragos da ilha “-Não eram pessoas que se deixaram oprimir
pelo seu destino. Foram pessoas que trabalharam juntas, de forma ordenada, na
intenção de sobreviver de alguma forma”.
Outros
abrigos.
Os arqueólogos
franceses falharam na busca dos túmulos mencionadas nos registros da Royal
Navy. “-Eles certamente ainda estão lá”, disse Guérout, que vai retornar a Ilha
de Tromelin com melhores equipamentos de escavação.
Para o
arqueólogo francês os estudos realizados na ilha são de extrema importância,
pois oferecem uma oportunidade única para estudar como um pequeno grupo humano
sobreviveu em meio a condições tão hostis, em um lugar diminuto e por tanto
tempo. A Ilha de Tromelin possui 3.700 metros de largura, por cerca de 1.700
metros de comprimento, é cercada de recifes de coral e sem pontos fáceis de
atracação.
Ilha de
Tromelin
Para Guérout,
as análises arqueológicas deste caso talvez possam se transformar em
ferramentas que ajudem os cientistas a compreender como pequenos grupos humanos
conseguiram realizar a migração entre os continentes e sobreviver em locais
inóspitos e isolados durante seus trajetos.
Ainda há muito
a ser encontrado e Max Guérout espera liderar novas expedição para a Ilha de
Tromelin.
Para mais
informações, consulte:
http://www.archaeology.org/issues/145-1409/features/2361-tromelin-island-castaways
Extraído do blog Tok de História do historiógrafo e pesquisador do cangaço Rostand Medeiros.
- http://tokdehistoria.com.br/2016/01/11/a-incrivel-historia-dos-escravos-que-foram-abandonados-por-15-anos-em-uma-ilha/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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