Por Benedito Vasconcelos Mendes
No sertão semiárido nordestino, até a introdução da praga do bicudo do
algodoeiro no Brasil, em 1983, quase todas as fazendas sertanejas criavam gado
e cultivavam algodão mocó, consorciados. Após a colheita do algodão, no final do
ano, o gado era solto dentro do roçado, para consumir a rama (folhas, brotos e
restos florais). A rama do algodoal era liberada para o gado quando o estoque de
forragens nativas já tinha sido consumido ou estava no seu final. As folhas,
ramos e restos de capulho do algodoeiro constituíam um tipo de alimento muito
importante, não só pelo seu valor nutritivo, mas, principalmente, por ser a última
reserva de forragem ainda disponível na propriedade.
Como sabemos, a formação e a quantidade de forragens no Semiárido
nordestino depende do volume de chuvas caídas durante o ano na área. Nos
anos chuvosos, temos a formação de muita forragem nativa e nos anos secos, a
ocorrência de pouco ou de nenhum alimento autóctone. O gado, praticamente, só
cresce e ganha peso no inverno (período chuvoso) e emagrece ou morre de fome
por ocasião do período seco (estio anual), que ocorre todos os anos no segundo
semestre e durante as secas periódicas.
Tradicionalmente, a cultura do algodão mocó (Gossypium hirsutum var.
Marie-Galante) era uma das principais fontes econômicas do Nordeste brasileiro.
O algodão mocó era também conhecido por algodão seridó, por ser nativo da
região do Seridó paraibano e norte-rio-grandense. O nome mocó é devido ele
possuir sementes nuas, sem linter, pretas, parecidas com as fezes de mocó
(roedor nativo da caatinga). É uma planta perene, de porte arbóreo, que produz
algodão de fibra longa e de boas características industriais, como finura,
resistência e sedosidade da fibra.
A introdução da praga do bicudo do algodoeiro (Anthonomus grandis)
inviabilizou economicamente a cultura de sequeiro desta malvácea no Nordeste
brasileiro. Com a impossibilidade de se praticar a cotonicultura, devido a
presença deste inseto, as fazendas localizadas na região semiárida nordestina
deixaram de ser lucrativas e, como resultado, houve o empobrecimento e o
despovoamento regional. Estima-se que em consequência desta praga houve a
migração, do campo para as cidades, de cerca de 2 milhões de sertanejos. Hoje,
praticamente, não se planta mais algodão no Semiárido, a não ser com irrigação,
que, por possibilitar o aumento da produtividade da cultura, passa a compensar
os gastos com a compra de inseticidas, para combater a referida praga.
A pecuária regional, mesmo sendo extensiva, consumindo praticamente o
pasto nativo e mesmo usando baixa tecnologia, sem raças selecionadas e com
manejo sanitário, reprodutivo e alimentar rudimentares, ainda assim era a base
econômica das propriedades rurais. Devido às atrasadas práticas pecuárias da
região semiárida, geralmente, o boi da região só atingia a metade do peso,
ultrapassava o dobro da idade de abate e consumia o dobro das despesas,
quando comparado com o boi criado no Planalto Central ou em outra região
pecuária do Brasil. O boi regional, praticamente, só crescia e engordava durante
os seis primeiros meses do ano, quando existia disponibilidade de alimentos
nativos e perdia peso de julho a dezembro.
Nas fazendas regionais, o plantio de algodão era feito pelos agregados, no
regime de meia, ou seja, metade do algodão em caroço era para o dono da
propriedade e metade para o meeiro (operário que plantava). Meu avô não exigia
nenhum percentual do algodão colhido, pois sua única exigência era o direito de
colocar o gado dentro do roçado, após a colheita dos capulhos.
As fazendas que produziam muito algodão, geralmente, possuíam uma
pequena unidade de beneficiamento, constituída por um rústico descaroçador de
rolo e por uma grande prensa de fuso, construída de madeira, dotada de duas
almanjarras a tração humana, onde eram feitos os fardos de pluma, de 64 quilos.
O algodão em pluma (algodão sem caroço) era transportado em lombos de
burros, para ser vendido ao exportador de algodão, já o algodão em caroço
(pluma mais sementes) era comercializado nas usinas de beneficiamento de
algodão, que descaroçavam e esmagavam o caroço, para produzir óleo e torta
para consumo animal. Cada burro transportava 128 quilos (dois fardos de 64
quilos). No passado mais remoto, quando ainda não existiam as usinas de
extração de óleo e de produção de torta, as sementes de algodão eram ofertadas
diretamente no cocho, para o gado.
Em virtude do algodão e do gado serem importantes para a manutenção
econômica das fazendas, o consórcio boi X algodão era de uso generalizado na
região. Era difícil se encontrar uma propriedade rural que não praticasse o
consórcio boi X algodão.
Meu avô cedia aos agregados, que plantavam algodão mocó na Fazenda
Aracati, o seu lote de burros de carga, para transportar os fardos de algodão até a
cidade de Sobral, para serem vendidos nas diversas usinas de descaroçar
algodão existentes, à época, naquela cidade.
Meu avô gostava de lembrar que o pasto dos roçados de algodão era vital
para o gado deixar de emagrecer e se manter sem perder peso até o surgimento
de rama na vegetação nativa, no início do período chuvoso. Na realidade, o gado
só começava a engordar com o aparecimento da babugem e depois do pasto
rasteiro, que era um alimento abundante e mais diversificado.
Meu avô evitava colocar os touros dentro dos roçados de algodão, pois,
segundo ele, o gossipol, que é um alcalóide polifenólico, de cor amarela, presente
nas folhas, ramos e sementes do algodoeiro do Gênero Gossypium, provocava
esterilidade nos reprodutores. Ele também evitava que os equinos, asininos e
muares consumisse a rama de algodão, pois o gossipol é altamente tóxico para
animais monogástricos.
Uma das boas lembranças que tenho sobre algodão na Fazenda Aracati é a
do transporte em carro de boi, dos sacos de algodão colhidos no roçado, para o
armazém ao lado da casa grande. Dava gosto se ver passar o rústico carro de boi,
em sua marcha dolente e com seu gemido inconfundível, carregado de algodão. O
eixo das rodas, rangendo sob os mancais (chumaços), originava um som
característico e agradável. O carreiro colocava pó de carvão vegetal, misturado
com sebo de carneiro, na cantadeira (eixo) para realçar o som característico do
carro de boi. A gemedeira típica deste veículo era agradável aos ouvidos.
Também chamava a atenção, a bonita e bem tratada parelha de bovinos taurinos
da raça Curraleiro Pé-duro (Bos taurus), vermelhos com estrela na testa, tão
parecidos um com o outro, que aparentavam serem gêmeos. Os bois
“Vermelhinho” e “Encarnado” eram bonitos, mansos e gordos. Eu e meus primos
gostávamos de andar montado no boi Vermelhinho, por ser o mais manso e
mais obediente. Não usávamos sela, pois montávamos no “pelo”, ou seja,
escanchávamos direto no lombo do boi. Seus chifres despigmentados,
excessivamente grandes e abertos, exatamente iguais nos dois bois da junta,
uniam um boi ao outro através de uma estreita fita de couro cru, que unia os dois
bois pelos chifres. As pontas dos chifres eram furadas, para permitir a amarração
do chifre direito de um dos bois, no chifre esquerdo do outro boi. Os bois da
junta eram unidos um ao outro pela canga de madeira e pelos chifres. Estes
animais eram dóceis, adestrados e obedeciam ao comando de voz do carreiro e à
cutucada do ferrão (vara de madeira com cerca de três metros de comprimento,
com um ferro pontiagudo acoplado na extremidade).
Enviado pelo professor e escritor Benedito Vasconcelos Mendes
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário