Por: Rangel Alves da Costa
NAS VEREDAS DA MISÉRIA
O conceito academicista que sempre conferem à miséria está muito longe de sua realidade. Não precisa sentir na pele, no estômago e nas entranhas da alma para saber do que verdadeiramente se trata. Adentre as brenhas sertanejas e sinta. Não sinta repugnância, não olhe enviesado, não fuja da ferida aberta na pele e no olhar.
Ao cuidar da miséria os teóricos logo sintetizam acerca da desqualificação do status social. Dizem da pobreza, da fome, da condição social desfavorável, alguma ou outra vez apontando a falta de políticas públicas como uma de suas causas. Esquecem, contudo, de falar do olhar do povo, das mãos ossudas e calejadas da gente, do retrato de sua moradia e do que tem lá dentro, bem como de quantas panelas e pratos existem e qual a sua serventia.
Mas vamos lançar um rápido olhar ao que os livros pregam.Miséria é definida como a inexistência, por absoluta falta de condições de determinado povo, do que é necessário para satisfazer as necessidades básicas – alimentos, vestuário, habitação e cuidados de saúde. É a absoluta falta de recursos múltiplos, que predispõe a um estado quase permanente de ausência de condições básicas de sobrevivência e à privação física. É, enfim, estado de penúria, de miserabilidade; é a indigência social e o desprezo por parte da sociedade.
Verdade é que a miséria está além da pobreza, da fome, da falta disso ou daquilo. Forçosamente não há que se verificar permanente falta de comida na mesa, ausência de quilo disso ou daquilo no armário, dificuldade na obtenção de água para beber, carência de escolas ao redor, falta de serviços de saúde e de assistência social, quase inexistência de uma roupa minimamente decente para se vestir, distanciamento dos serviços públicos ou quaisquer outras carências para se ter a configuração da miséria.
Não. E não porque o abandono premeditado e persistente do povo sofredor também é miséria; a mentira política ao percorrer barraco a barraco em época de eleição também é miséria; o nojo, o preconceito, a discriminação, o afastamento, a falta de reconhecimento e a desvalorização também são misérias absolutas. E há miséria maior do que reconhecer num povo a morte em vida e ainda assim lavar as mãos?
E são estágios reconhecíveis de miséria a população já carente de tudo e ainda ter de se submeter às esmolas governamentais, de políticos, de candidatos, de pessoas que não estendem a mão sem estar pensando em tirar algum proveito. Não ter políticas honestas e eficazes de combate à seca também é miséria; não possibilitar o aproveitamento produtivo das águas de um rio que passa diante da pobreza absoluta também é miséria.
Antigamente tentavam combater as misérias sertanejas, principalmente em épocas de estiagens, oferecendo emprego aos homens na construção de açudes, estradas e na infraestrutura das cidades. Os flagelados formavam imensas filas orando para obter uma vaga nas frentes de trabalho, para se tornar “magnu”, ou magro e nu. Ou faziam isso ou colocavam toda a filharada em perigo ainda maior.
Todo final de semana pagavam com duas moedas e ofereciam uma cestinha de alimentos contendo farinha, feijão, açúcar, massa de milho, lata de óleo para cozinhar o nada e ainda um naco de jabá ou mortadela. Enganava-se a miséria, mas ao menos as famílias se fortaleciam na ilusão de um trabalho garantido enquanto durasse. Era, assim, a miséria produtiva.
Hoje procuram combater a miséria fortalecendo o sentimento de miserabilidade, de imprestabilidade, da preguiça contumaz e da passividade diante das esmolas dadas. Com as oferendas populescas e assistencialistas do governo, disseminou-se sertão adentro e por todo lugar a cultura da mendicância oficializada, da miséria como garantia para se ter a desavergonhada esmola, da indolência e da lassidão como cultura do entorpecimento. É a miséria desonrada, com fins meramente politiqueiros.
Mas nada disso tem o dom de esconder um outro tipo de miséria que está sempre escondida por trás dessas dissimulações. Falo da miséria visceral, miséria na pele e no osso, no olhar e no sentimento de impotência, no passo que de tão desamparado não se encoraja mais para ir a lugar nenhum. Já orou pedindo chuva, já implorou pedindo pão, já chorou a lágrima dos esquecidos, já inundou e desesperou diante do pranto e do grito inocente dos filhos.
Conheço uma miséria que é alegre, amiga, recebe qualquer um de braços abertos, oferece o resto do que ainda tiver. Aceite o convite e entre porta adentro, barraco adentro, se assente no tamborete e converse com esse povo. A miséria também é humana, logo saberá. Disfarce, mas de vez em quando olhe de canto a outro para ver o que encontra por cima do fogão de lenha apagado ou da mesinha de madeira.
Os olhos profundos e tristes são como poços vazios, esquecidos no tempo, sem mais esperança de umedecer. O corpo inteiro é aquilo mesmo que você enxerga adiante, nem um quilo a mais ou a menos. Da pele ao osso tudo se confunde, e nos dedos longos e ossudos as marcas de tanto buscar sem nada encontrar. Fazer o que, meu Deus, se a vida insiste em possuir esses eternos penitentes na grande procissão do sacrifício e do sofrimento?
E possa ter certeza que ao se despedir ouvirá de cada um que tenha paz, saúde e felicidade. Depois é só seguir pela estrada imaginando que não fazemos nada por aqueles que nos desejam tudo do bom e do melhor que precisamos: paz, saúde e felicidade. E a eles – que também somos nós -, além de tudo isso, também a vida.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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