Por Rangel Alves da Costa*
Em seu livro
mais famoso, A Metamorfose, o escritor tcheco Franz Kafka (1883-1924) desvela a
condição humana de forma tão real como asquerosa. O que verdadeiramente é o
homem? Há de se indagar, principalmente quando não tem mais serventia para a
função materialista do mundo e tem de amargar a submissão e continuamente se
sentir ameaçado pela sola dos sapatos dos seus e da sociedade. A dura analogia
da transformação do homem à condição de verme e, como tal, sempre sujeito aos
pisoteamentos e massacres do poder.
Originalmente
um conto, A Metamorfose de Kafka trata sobre um homem comum que ao acordar
descobre que o seu corpo está sendo transformado, aos poucos tomando a feição
de um ser repulsivo. A transmudação de um sujeito normal em um inseto
repugnante vai tomando rumos catastróficos. Mesmo querendo levar uma vida
habitual, o sujeito vai sendo condicionado pelo seu novo estado. Trancado um
quarto, rejeitado pela maioria dos conhecidos, de repente é avistado subindo
pelas paredes. Já não passa de uma barata monstruosa e repelente, repulsiva a
todos. Tenta fugir e é ferido pelo próprio pai, ferimento este que vai
dominando suas forças até definhá-lo completamente, minguando como um bicho
asqueroso qualquer.
A Metamorfose
é também a simbologia da desvalia humana e de sua impotência para qualquer ação
ante a realidade que o cerca. Mesmo transformado num bicho monstruoso, o
sujeito ainda ouve tudo o que dizem a seu respeito, ainda tem sentimentos,
ainda consegue discernir o que desejaria encontrar. Mantinha a família com o
seu trabalho, mas agora se vê enojado e até odiado pelo que inesperadamente
aconteceu na sua vida. Um triste e inexplicável acontecimento que vai levando a
existência de um ser ao mais reles do chão. Uma barata, um inseto nojento, um
bicho repulsivo. O que será do homem ao chegar a tal estágio?
O mais
doloroso é sentir-se em tal condição e não poder reagir. Em meio aos
presumivelmente normais e sadios não há lugar para parasitas. E assim, na
solidão de seu quarto, sem voz nem poder de ação, envolto em dor física e
espiritual, sente apenas as solas do mundo querendo pisar sobre si para
expurgar de vez aquela abominação da existência. Neste sentido, talvez a
verdadeira visão de ser repulsivo não estivesse no resultado da transformação,
mas tão somente no homem visto como ser econômica e socialmente imprestável.
Aquele que agora rasteja já não interessa àqueles acostumados a rastejar pelos
seus pés.
Gregor Samsa,
o personagem de Kafka, pode ser avistado muito além das paredes de seu
solitário quarto. No tempo presente, aquele inseto asqueroso, aquele bicho
repelente, aquela barata repugnante, pode ser reconhecido em muitos seres
humanos. O próprio mundo se incumbiu de metamorfosear não só a compleição
física como os sentimentos e as virtudes. As realidades do mundo novo e
contraditório, moderno e ainda tão primitivo, tecnológico e estarrecedor, logo
cuidam de transformar o homem num ser estranho consigo mesmo, intimamente
desconhecido e relegado às imposições de um mundo opressivamente voraz. Daí que
as baratas kafkianas continuam proliferando a cada instante e por todos os
lugares.
Mas a
metamorfose kafkiana alastra-se por horizontes ainda maiores. A transformação
do valoroso homem num ser negado ante sua nova condição está mais visível no
mundo moderno do que se possa imaginar. Em qualquer quadrante da vida, basta
que a pobreza ou a miséria de repente recaiam sobre o sujeito e logo este será
avistado como aquele ser descrito por Kafka. Igualmente, basta que os
infortúnios ou o desandar de caminhos escondam um pouco do sol do sujeito, e
este sequer será avistado em meio às sombras. Em muitos sentidos, é o ter ou
não ter que tende a transformar um indivíduo em parasita repulsivo, sempre na
visão do dono da sola do sapato pronta para pisotear.
O Brasil, por
exemplo, desde uns tempos para cá, a partir dos contínuos desacertos
governamentais que transformaram o cotidiano da existência num caos, a
metamorfose de Kafka não se cansa de provocar novos seres rastejantes,
submissos, levados aos esgotos da desesperança. Ao invés daquele quarto onde
Gregor Samsa suporta seu infortúnio, é no clarão do dia ou no negrume da noite
que a população brasileira se vê subindo em paredes, andejando pelos esgotos,
rastejando na cada vez mais difícil sobrevivência.
Na história de
Kafka, quem começa a acabar com a vida do filho/barata é o próprio pai, após
feri-lo nas costas. E na realidade brasileira atual, quem faz surgir os seres
rastejantes e a cada dia pisoteia um pouquinho mais é a governança maior. O
governo, criador de submissos que perambulam empobrecidos, desesperançados e
desvalidos, a cada medida tomada para ajustar as contas da roubalheira
desenfreada, é como se estivesse avançando com os sapatos da arrogância e da
insensatez sobre os já indefesos seres.
Infelizmente,
a visão do ser enojado e odiado descrito por Kafka é a mesma avistada na face
do brasileiro comum. A cada manhã acorda mais empobrecido, mais aviltado na sua
integridade humana. A cada manhã traz consigo um pouco mais dessa metamorfose
cruel. E pelas favelas, nos distantes rincões, nos lugarejos empobrecidos, em
meio à tristeza das ruas, as baratas rastejam sem rumo. Ou será o homem?
Poeta e
cronista
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário