Por Antonio Corrêa Sobrinho
Lembrei dos
amigos ao ler este texto sobre a palavra "sertão" e seus
significados, publicado no “O Estado de S. Paulo”, edição de 18/06/1960, de
autoria do escritor e filósofo paraense Benedito Nunes, in comentário ao ensaio
do intelectual paraibano Eidorfe Moreira: “sertão - a palavra e a imagem”.
IMAGEM DO
SERTÃO
O ensaio de
Eidorfe Moreira, “Sertão – A Palavra e a Imagem”* não é um simples trabalho de
especialista. Geógrafo completo, Eidorfe Moreira é também um historiador com
sólida formação filosófica e humanística. O seu extraordinário “background”
cultural, revela-se, logo de início, na análise da palavra “sertão”, inspirada
nos princípios gerais que regem a moderna semântica. Declarando que “todas as
palavras são suscetíveis de certas disponibilidades semânticas” e que “por trás
da crosta do significado comum, que é o seu valor usual como unidade de
significação, elas encerram também certas possibilidades latentes”, o autor
qualifica “sertão” como palavra-mundo. “Poucos vocábulos, diz ele, estarão tão
intimamente ligados à vida nacional como este. Ele representa, para nós, o que
‘pampa’ representa para a Argentina, ‘estepe’ para a Rússia, ‘deserto’ para a
Judeia ou para Arábia: um símbolo geográfico e um elemento de caracterização”.
Essa palavra, importante no vocabulário administrativo do Brasil-colônia,
indica um dos elementos dialéticos da nossa história. É o termo oposto a
litoral, a costa, a vida urbana. A formação nacional se processou debaixo dessa
tensão entre um exterior sujeito a influências oscilantes, que dependiam do
ritmo da própria história europeia e de um interior que suscitava novas forças
sociais e econômicas, e que é responsável tanto pelo movimento das bandeiras
como pelos ciclos da mineração e da criação de gado. “O litoral representa as
influências externas, aquilo que temos de comum e incaracterístico com os
demais povos; o sertão encarna as nossas persistências históricas, o substrato
real da nacionalidade. Pelo litoral somos universais; pelo sertão somos nós
mesmos”. Daí por que a oposição litoral-sertão, uma das chaves dialéticas do
nosso desenvolvimento como povo, não exprime uma simples dicotomia geográfica.
Ela traduz uma antítese cuja importância e, simultaneamente, histórica e
social.
Penetrando no conteúdo da palavra, Eidorfe Moreira extrai seis aspectos que se entrecruzam na gama de significados que o sertão exprime. Em primeiro lugar, “sertão” exprime uma relação topológica. É o interior (Backland, Hinterland), compreendendo “as terras situadas além da faixa litorânea”. Não há, porém, limites fixos entre a área do sertão e a do litoral. Tomando-se por base um só critério, seja fisiográfico, fitofisionômico ou climático, não conseguimos estabelecer fronteiras precisas. Igualmente, nem a natureza do solo, nem a incidência das chuvas podem enquadrar o sertão nessa moldura geográfica extremamente simples. O interior não é sertão para o Extremo-Norte e para o Extremo-Sul. A relação topológica é, portanto, grandemente móvel; os dois termos, sertão, sinônimo de interior, e litoral ou costa, ora se afastam, ora se aproximam muito.
Sertão significa, também “um tipo de paisagem, um quadro ou panorama caracterizado por certos traços geográficos e humanos”. Nada exuberante, indisciplinada e violenta, hostil ao homem, essa paisagem caracteriza-se por um certo abandono intrínseco que a agrestia eleva ao superlativo. Dela fazem parte o primarismo do regime econômico e o primarismo da cultura. O seu paradigma é o interior do Nordeste. Apresenta formas atenuadas de relevo, clima quente e seco, com pluviosidade irregular, além de vegetação rasteira, fraca expressão demográfica e, ao lado de uma economia tradicionalmente pastoril, populações em estado de penúria, com baixo padrão de vida.
O terceiro significado de sertão é grandeza, “vastidão, distância, lonjura”. A palavra em si, como observa o autor, já traz no seu corpo elementos sonoros ou fonéticos que lhe permitem sugerir o imenso e o ilimitado e que adjetivos como “grande” só podem fortalecer, acentuando a impressão de abertura espacial e também, diríamos, de profundidade. Nesse sentido o sertão vale por uma presença espiritual. É o sertão de Riobaldo que “está em toda parte” e “é sem lugar”.
Ainda não se esgotou a riqueza da palavra “sertão”, e ainda não se compôs a imagem correspondente que autor deseja transmitir-nos. Pois o sertão não é um só. Como topônimo, ele varia. “Na realidade não há sertão, há sertões”. Euclides da Cunha e Taunay não falaram de uma mesma terra sertaneja. E o sertão que eles conheceram não foi o solo que os bandeirantes pisaram e desbravaram.
Em torno dos dois últimos significados é que Eidorfe Moreira desenvolve as ideias mais interessantes, de um modo muito pessoal, completando a imagem múltipla do sertão, que possui, para ele, um sentido espiritual profundo, transcendente e decisivo para a realização do destino histórico do povo brasileiro. Daí por diante o geógrafo vai utilizar a análise sociológica e política, sem desprender-se da realidade viva que procura compreender e interpretar.
Sertão e acracia se confundem. O sertão é natural e socialmente acrático: um estado de anarquia permanente que as condições ambientes consolidam e estimulam. A presença do Poder Público nele se esfuma. A organização do estado dilui-se entre os chapadões altivos, no remanso traiçoeiro das veredas silentes, nos pés de serra, nas voltas dos caminhos ao longo dos descampados adustos, durante a dispersão determinada pelas secas, ou em torno dos santuários milagrosos.
O anarquismo do sertão não está só na arma do cangaceiro e no mandonismo dos coronéis e senhores de terra. Ao lado do anarquismo ativo, responsável por tantos “governadores”, que produz as empreitadas de sangue e o sistema ininterrupto de vinditas privadas que os interesses políticos perpetuam, há “o anarquismo com agitação intermitente” do sertanejo, “endêmico, pacífico e natural”. Essa última forma de anarquismo representa, em imagem grosseira, um “estado natural”, constante, que neutraliza a presença do Poder Público, estabelece a força disciplinadora da ordem jurídica, fazendo com que os costumes e as tradições prevaleçam sobre a lei tanto quanto as relações de ordem privada sobre os de ordem pública.
Penso que esse anarquismo intermitente está estreitamente relacionado com o sexto e último significado: sertão como “estado mental”, que não é interiorização da paisagem, nem apenas reação emotiva do homem ao ambiente em que ele vive. É toda uma atitude de espírito, um modo permanente de sentir, de ver, de dar valor às coisas. Mais do que arraigamento à terra, o estado mental correspondente a sertão é o de introversão psíquica. É o mundo interior, o Hinterland da alma que Guimarães Rosa soube compreender e retratar admiravelmente nas peripécias de Riobaldo e Diadorim.
Signo espiritual da vida brasileira no que ela tem de mais interior, profundo e secreto, o sertão tem sido e continua sendo um dos polos da nossa história e da nossa formação social. Contrabalançando as solicitações do litoral, o sertão, como termo antitético, é a reserva das forças sociais e econômicas que, convenientemente aproveitadas, servirão para garantir o equilíbrio, a unidade e o desenvolvimento harmonioso do pais.
* Eidorfe
Moreira – Sertão – A Palavra e a Imagem. Ed. Particular. Belém, 1959
imagens: internet mirnacavalcanti.wordpres, arte1.band.uol.com.br correiodobrasil.com.br, respectivamente
Fonte: facebook
Página: Antônio Corrêa
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