Recife, 14 de setembro de 1968
A noite era quente e abafada como costumam ser as noites de verão no sertão
nordestino. Firmino Rodrigues Pereira, a última pessoa que falou com o coronel
Delmiro, declara tê-lo deixado a ler tranquilamente o “Jornal de Alagoas” no
alpendre da casa de “Dona Jovem”.
Algumas pessoas asseguraram que a luz elétrica foi cortada por alguns segundos
e, nesse ínterim, passou um desconhecido com um lampião a querosene aceso
diante da varanda de D. Jovem. Então, ouviram-se os tiros.
Os pesquisadores não acreditam muito no corte de luz, porque Delmiro era um
homem prevenidíssimo; o corte o teria alertado.
Diz ainda Firmino, um dos acusados de mandante do crime, apesar de sua amizade
com o Pioneiro, que ao chegar em casa aquela noite, antes de tirar o paletó,
ouviu ruídos como de pancada. “Que pancadas são essas?”, teria perguntado a sua
mulher, ao que ela respondeu: “que pancada que nada! Foi tiro, e no Coronel
Delmiro”.
Firmino chegou ao local do crime ainda a tempo de amparar a vítima. Dizem que
ao cair Delmiro perguntou: “Já prenderam os cabras?”.
Levado para um quarto, Delmiro pediu que lhe tirassem o paletó. Firmino
Rodrigues estava nervoso e desorientado, naquele momento de aflição,
demorando-se um pouco em cumprir o pedido. O industrial solicitou então que o
paletó fosse rasgado, o que se fez. Logo depois ele pedia que lhe rasgassem a
camisa. Os presentes viram então, no peito, bem em cima do coração, orifício de
uma bala, do qual saia um pouco de sangue. Delmiro morreu antes de ser
socorrido pelo médico. Dizem os presentes que suas últimas palavras foram:
“Valha-me... Nossa... Senhora...”, ditas compassadamente, muito devagar.
O impávido industrial sepultado no dia seguinte, sem pompas, conforme ele mesmo
determinara em seu testamento. A morte de Delmiro foi chorada em prosa e verso
pelo povo que inclusive, denunciava os criminosos:
“Quando o enterro de Delmiro
Foi pela rua passando,
parece que a gente ouvia
a cachoeira chorando
Mataram senhor Delmiro
num dia de quarta-feira
mandada por Zé Rodrigues
Foi aquela cabroeira.”
Coronel José Rodrigues de Lima, chefe político e intendente de Piranhas - AL,
foi um dos acusados, devido a interesses contrariados e aborrecimentos por
questões de fornecimento de lenha a Paulo Afonso. Era comprador de peles e de
certo vira diminuir-se seu movimento comercial desde que Delmiro se instalara
em Pedra.
Outro apontado como mandante do crime foi José Gomes, chefe político de Jatobá,
hoje Tacaratu, Pernambuco, cuja filha de criação Delmiro raptara quinze anos
antes. Hipótese completamente fantasiosa. Firmino Rodrigues foi acusado por
motivos tão fantasiosos quanto os que justificaram a acusação de José Gomes.
A Machine Cottons apenas foi apontada dez anos depois do assassinato, quando,
“discretamente”, conseguiu comprar a maquinaria da fábrica de linhas de Pedra,
sua única concorrente, inutilizando-a e jogando-a no Rio São Francisco. Este
procedimento, que lembra o de Roma na conquista de Cartago, chamou atenção dos
interessados no caso.
As autoridades encarregadas de investigar o homicídio prenderam os três
supostos mandatários: Róseo Morais do Nascimento, José Inácio Pia, vulgo
“Jacaré” e Antônio Felix do Nascimento, conhecido como Leão.
Róseo e Jacaré
A princípio, Róseo e “Jacaré” acusaram José Rodrigues como mandante do crime,
concordando com uma versão da política segundo a qual teriam encontrado aquele
chefe político às margens do Rio Piranhas (não confundir com Ipiranga) e
combinado os detalhes do atentado. Interrogados separadamente, a pedido do
advogado de José Rodrigues, caíram em contradição. Enfim declararam ter
confessado o crime sob coação e espancamento. Retiradas as camisas que vestiam,
todos viram que os homens tinham sido impiedosamente seviciados.
Foram condenados a 30 anos de prisão simples. Por ocasião da transferência dos
supostos criminosos de Água Branca para Maceió, os jornais de Alagoas
noticiaram: “Aí vem três feras – Somente anteontem partiram de Água Branca para
serem recolhidos à Casa de Detenção os perversos assassinos de Delmiro Gouveia,
os quais acabam de, pelo moralizado júri daquela comarca, receber a confirmação
do devido castigo que mereciam. Conduz as feras o Tenente Manoel Lucena”.
Uma das “feras”, a mais perigosa era José Inácio Pia, “Jacaré”, homem franzino
e doente “pois tinha uma costela quebrada a coice de fuzil e uma cicatriz no
lado superior da vista esquerda, de tacão de botinas dos soldados do Capitão
Pedro Nolasco”. Evadiu-se da penitenciária duas vezes, sendo morto em tiroteio
com a polícia, quando de sua captura, Jacaré jamais admitiu ter assassinado
Delmiro Gouveia. Por ocasião do júri, declarou nunca ter confessado o crime. O
seu compadre Róseo, não aguentado mais o “interrogatório” do Capitão Nolasco,
foi quem confessou, para se contradizer logo depois. A “fera” Róseo Morais do
Nascimento é um homem que não fez queixa, “não demonstra ódio ou hostilidade.
Notei apenas que estremeceu e ficou com as feições alteradas quando falei de
Capitão Pedro Nolasco”, diz Lima Júnior no seu livro.
Róseo – que ainda hoje se diz inocente – cumpriu apenas 14 anos, 9 meses e 15
dias de prisão, sendo solto imediatamente por decreto de Tasso de Oliveira
Tinoco, que reduziu e comutou diversas penas, entre elas a de Róseo para 10
anos de prisão simples.
Na noite do assassinato, os “criminosos” dormiam na estação de Jarapatuba, rumo
à Bahia. Na tarde de 11, saltaram em Maroim lá começando a trabalhar como
pedreiros. Cientes de sua acusação, conseguiram declaração do industrial que os
empregara, dizendo ser impossível a autoria do crime, pois Róseo e “Jacaré”,
naquele dia, estavam bastante longe de Pedra, depois de lhes ter prestado
serviço por alguns dias. De nada adiantou a declaração nem outros testemunhos
evidentes.
O importante para a Polícia era achar um bode expiatório, não importa quem,
contanto que ela dê impressão de competência e bons serviços. Aliás, isto não é
peculiaridade da polícia brasileira, não. Os Estados Unidos, protótipo da
civilização ocidental, empregam amiúde este “método” de investigação e tem dado
sobejos exemplos de sua eficiência: desde a tragédia de Sacco e Vanzetti,
passando pelo Barbara Gran, o assassinato das oito enfermeiras, culminando com
a tragédia da “Família Kennedy”.
Nascido a 5 de junho de 1863, em Ipu, Ceará, Delmiro Gouveia, instalou o
primeiro Mercado Modelo do Brasil, nesta capital, Recife, onde é hoje o parque
Derby. Em Alagoas construiu 520 quilômetros de estradas. Na cidade de Pedra,
Alagoas edificou uma fábrica de linha de cozer que, no início do século
abasteceu todo o mercado brasileiro e os dos países vizinhos. Aí está a razão
de sua morte. Se alguém perguntar a qualquer nordestino, quem matou Delmiro
Gouveia, ele responderá: “A Machine Cottons”. Para as autoridades, porém o
assassinato continua sendo um mistério. Mas, justiça se faça a Cia. Inglesa:
ela deve ter ponderado que o pioneiro nascera fora de tempo, e cuidou de
providenciar o acerto das coisas. Se fosse ainda o tempo da Inquisição Delmiro
seria assado vivo numa monumental fogueira erigida pela Machine Cottons. Fácil
seria provar ser Delmiro feiticeiro; não vivia o homem a fazer diabruras.
Coisas incríveis? O seu mercado modelo, no Derby, e sua fábrica de linhas em
Pedra, não eram eletrificadas por ele, quando no Brasil ainda nem se ouvia
falar em luz elétrica?
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