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domingo, 3 de junho de 2018

OROBÓ: UMA COMUNIDADE INDÍGENA REBELDE NO ESPÍRITO SANTO


Por Luís Rafael Araújo Corrêa

“Anchieta e Nóbrega na cabana de Pindobuçu”, por Benedito Calixto (1927). Acervo do Museu do Ipiranga. A pregação de jesuítas como Anchieta e Nóbrega no Brasil foi uma inculturação recíproca entre a influência do cristianismo para as crenças e costumes dos nativos, utilizando elementos da cultura indígena como uma melhor forma de ensinar a doutrina cristã para eles.

Em meados do século XVIII, povoado capixaba serviu de exemplo de resistência para comunidades indígenas brasileiras que viviam a opressão jesuíta.

Uma ameaça comparável ao Quilombo de Palmares. Era assim que o Conde das Galvêas, então vice-rei do Brasil, expressava em uma carta a sua preocupação com o conflito que deu origem a comunidade indígena rebelde de Orobó, em meados do século XVIII. Constituída por índios dissidentes da aldeia de Reritiba, Orobó, localizada ao sul do atual estado do Espírito Santo, tornou-se um exemplo de subversão à política missionária no Brasil colonial, uma vez que os seus moradores, outrora aldeados, viviam da maneira que queriam, sem seguir os ensinamentos dos padres jesuítas. Como se não bastasse, havia um grande temor por parte das autoridades coloniais de que a comunidade de Orobó servisse de inspiração aos índios de outros aldeamentos, o que poderia vir a ser um risco para a própria colonização. O objetivo deste artigo é investigar a resistência dos grupos indígenas por meio do breve resgate da história desta comunidade.

Festejo, levante e conflito: o surgimento de Orobó

Orobó tem a sua história ligada a uma revolta ocorrida no século XVIII em Reritiba, célebre aldeia capixaba onde o padre José de Anchieta (1534-1597) viveu os seus últimos anos. A missão, que sempre se destacou como uma das principais da capitania, cumprindo papel importante como centro de onde partiam expedições que visavam o descimento de índios dos sertões, viveu momentos turbulentos desencadeados por um episódio aparentemente banal.

No dia 29 de setembro de 1742, o que era para ser um festejo transformou-se em um levante. Durante a celebração do dia de São Miguel, que costumava ocorrer em Reritiba todos os anos, uma briga começou após um estudante da Companhia de Jesus, Manuel Alves, ter repreendido o índio Fernando Silva (1) em virtude de seu “comportamento inconveniente” durante a solenidade.

A rusga inflamou os ânimos dos aldeados, que tomaram partido do índio Fernando. Na tentativa de apaziguar a contenda, os missionários do aldeamento foram substituídos por outros missionários, vindos da região dos Goitacazes. A recepção dos índios em relação aos novatos, porém, foi hostil, obrigando os padres recém-chegados a se refugiarem na fazenda jesuítica de Muribeca. Diante do impasse, a situação foi momentaneamente solucionada com a intermediação de Antônio Siqueira de Quental, arcediago (2) do Rio de Janeiro, que conseguiu convencer os índios a aceitarem os novos missionários. Sem oposição, eles assumiriam suas funções no dia 24 de janeiro de 1743.

Este não seria, no entanto, o fim do conflito. Nas entrelinhas dos documentos disponíveis sobre o episódio, as razões das tensões em Reritiba revelam-se mais complexas, sugerindo que a revolta ia muito além de um mero desentendimento. Embora o desgaste na relação entre os missionários e os aldeados fosse o suficiente para gerar tensões em Reritiba, disputas internas entre os índios e o interesse de pessoas de fora do aldeamento contribuíram para a retomada da revolta na região – inclusive podemos perceber pistas de tensões entre colonos e jesuítas. Com o apoio de moradores de Guarapari, um grupo liderado pelo índio Manuel Lobato, tinha ido se encontrar no calor dos acontecimentos com o ouvidor-corregedor do Espírito Santo, Paschoal de Veras, na vila de São Salvador. Lá eles receberam o aval do ouvidor-corregedor do Espírito Santo, interessado em reduzir a influência exercida pela Companhia de Jesus em sua jurisdição, para expulsar os jesuítas e assumir funções de mando na aldeia (3).

O bando retornou à Reritiba dois dias após a posse dos novos missionários. Dispostos a fazer valer as ordens que receberam do ouvidor-corregedor, o grupo chefiado por Manuel Lobato deixou a aldeia em pé de guerra. Um violento confronto se sucedeu no local, dividindo os índios entre aqueles que se mantiveram leais tanto aos jesuítas, quanto às lideranças indígenas já estabelecidas, e os que apoiavam as pretensões do bando de Lobato. Mesmo diante da intervenção das autoridades, o conflito se arrastou até 1746. Após diversas mortes e a prisão de alguns líderes do levante, incluindo o próprio Manuel Lobato, deportado para a colônia de Sacramento, a situação chegou a ser controlada em Reritiba a partir de ações autorizadas pela Coroa portuguesa e os missionários puderam retornar. Contudo, a sedição dividiu de vez o aldeamento: insatisfeitos com a volta dos padres e com os rumos dos acontecimentos, um grupo significativo de índios desertou da missão, fundando a comunidade indígena de Orobó (4).

A comunidade “rebelde” de Orobó

Orobó estava a apenas 9,6 quilômetros de distância de Reritiba e as tensões que levaram ao surgimento do novo povoado continuaram existindo. Segundo os documentos informam, os índios da comunidade rebelde, afeitos ao rompimento definitivo com os missionários, realizavam ataques, roubos e ciladas frequentes contra o aldeamento jesuítico, um verdadeiro incômodo para a atividade de evangelização. De nada adiantando as tentativas de paz e entendimento entre as duas comunidades, o padre superior de Reritiba mandou vir duas peças de artilharia da vila de Vitória para garantir a defesa da aldeia. O conflito estava armado.

Os rebeldes, agora liderados por Manuel Lopes, índio que se envolveu desde o início com o motim e perdeu dois de seus filhos nos conflitos ocorridos em Reritiba, eram um péssimo exemplo aos aldeados. Orobó tornou-se um espaço onde os indígenas viviam segundo as suas próprias vontades, sem a influência dos padres. Insubmissos, os habitantes impediam a entrada de qualquer autoridade no local. Tanto os emissários ligados à administração colonial quanto o Bispo, que buscava oferecer-lhes a crisma, foram recebidos com armas prontas para atacar. Além disso, sem contar com a direção espiritual católica, os índios de Orobó também não seguiam a doutrina cristã ou os sacramentos, mas apenas a liderança de Manuel Lopes.

Os únicos que tinham acesso à Orobó eram certos colonos, provavelmente se tratava dos mesmos que apoiaram a revolta no seu início. Enquanto alguns forneciam produtos aos que viviam no lugar, outros deviam tirar proveito do trabalho dos índios recrutando-os para as suas fazendas, sendo esse o principal interesse que levou os colonos a incentivarem a desobediência entre os índios – numa forma de disputa com os jesuítas na busca por mão de obra. De acordo com os relatos, a povoação de Orobó se tornou também um esconderijo para criminosos, talvez também para escravos fugidos.

De fato, a localização geográfica de Orobó favorecia a sua função enquanto refúgio. Estabelecida em um vale cercado por morros, a região permitia aos rebeldes o controle do espaço e dos diferentes acessos que conduziam até a comunidade. Como se não bastasse, os caminhos até Orobó eram de difícil percurso, o que exigia a presença de índios da aldeia de Reritiba, práticos daqueles matos, para guiar as autoridades ou emissários que se dirigiam até lá (5).

Para o vice-rei, o Conde das Galvêas, a comunidade de Orobó era um desastre para os interesses da colonização. Além de ser um entrave para a evangelização dos nativos e privar a Coroa portuguesa dos inúmeros serviços que os aldeados prestavam, ela representava algo mais perigoso: um exemplo a não ser seguido. O Conde temia que os demais aldeamentos, até então ordeiros e pacíficos segundo ele, seguissem o mesmo caminho iniciado em Reritiba, espalhando conflitos pela América portuguesa. Em seu receio, ele chegou inclusive a admitir a possibilidade de que os aldeados em revolta se aliassem aos muitos índios que viviam nos sertões, contrariando uma das principais funções dos aldeamentos: ser “os antemuros do gentio bárbaro” (6). Orobó deveria, então, ser sufocada urgentemente.

Modelo para outras aldeias

As notícias sobre a rebeldia no sul do Espírito Santo se espalharam como rastilho de pólvora nas aldeias circunvizinhas, justificando o medo das autoridades. Em uma consulta do Conselho Ultramarino, em 1746, consta que os índios das aldeias de Reis Magos, no Espírito Santo, e São Pedro de Cabo Frio, no Rio de Janeiro, lembravam do exemplo de Orobó quando os padres tentavam repreendê-los ou castigá-los. O motim havia se tornado de fato uma inspiração para os indígenas, de modo que, enquanto a sua memória permaneceu viva, o caso de Orobó foi explorado pelos aldeados em suas negociações cotidianas com os missionários.

Contudo, a complexa relação entre índios e jesuítas, agravada pelo surgimento da comunidade rebelde, propiciou mais do que ameaças. Em 1752, a aldeia capixaba de Reis Magos seguiu o exemplo de Orobó: liderados por um índio chamado José da Rocha, os aldeados expulsaram os missionários, bem como os oficiais indígenas que participavam da condução do aldeamento. Na ausência da supervisão dos jesuítas, os índios passavam a maior parte do tempo nas fazendas dos colonos, transgredindo a vida regrada que os padres tentavam fazer valer nas missões. Alguns anos depois, no Rio de Janeiro, o reitor do Colégio dos jesuítas, Félix Xavier, informava com preocupação que os índios das aldeias de São Lourenço, São Barnabé, São Pedro de Cabo Frio e São Francisco Xavier de Itaguaí desobedeciam aos missionários e fugiam em grande número para as propriedades dos moradores vizinhos, razões pelas quais estes aldeamentos se encontravam em franca decadência. O medo das autoridades havia se tornado realidade.

O destino de Orobó

Assim como os das rebeldias que a seguiram, o destino de Orobó perde-se diante das lacunas dos documentos e da ausência de mais informações. O mais provável é que elas tenham sido contornadas após a expulsão dos jesuítas da América portuguesa, em 1759, e a adoção da política indigenista elaborada durante a administração do Marquês de Pombal. Em um novo contexto no qual visava-se integrar os índios à sociedade como súditos indistintos aos demais, estimulando a interação e o casamento com os colonos, é possível que uma reconciliação dos rebeldes de Orobó com Reritiba, convertida em vila segundo os moldes da lei do Diretório, tenha sido facilitada, visto que as referências à comunidade praticamente desaparecem nos documentos. Seja como for, o caso de Orobó torna claro o protagonismo dos índios frente à política de aldeamentos, comprovando que os aldeados, mais do que objetos da dita política, foram capazes de agir conforme os seus próprios interesses e motivações.

Notas

1 Vale observar que os índios aldeados recebiam nomes portugueses como parte do processo de evangelização e ressocialização que vivenciavam nos aldeamentos.

2 Cargo eclesiástico que era encarregado pelo bispo de exercer os poderes junto dos párocos e curas de uma parte de determinada diocese.

3 Arquivo Histórico Ultramarino, Espírito Santo, cx.03, doc.241.

4 Arquivo Histórico Ultramarino, Espírito Santo, cx.03, doc.253.

5 Arquivo Histórico Ultramarino, Espírito Santo, cx.03, doc.300.

6 Arquivo Histórico Ultramarino, Espírito Santo, cx.03, doc.241.

Referências Bibliográficas

CORRÊA, Luís Rafael Araújo. A revolta dos índios de Reritiba: conflitos e disputas políticas em um aldeamento do Espírito Santo (1742-1758). In: Revista de História da UEG, Porangatu, v.6, n.1, p. 24-49, jan./jul. 2017.

LAMEGO, Alberto. A Terra Goitacá à luz de documentos inéditos. Rio de Janeiro: Livraria Garnier, 1913.

LEITE, Serafim. História da Companhia de Jesus no Brasil. Tomo VI, Rio de Janeiro, Belo Horizonte: Itatiaia, 2000.

PENNA, Misael. História da província do Espírito Santo. Rio de Janeiro: Typographia de Moreira, Maximino& C., 1878.

RUBIM, Braz da Costa. Memórias históricas e documentadas da província do Espírito Santo. In: Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil, Rio de Janeiro, tomo XXIV, 1861.

Luís Rafael Araújo Corrêa é professor efetivo do Colégio Pedro II e coordenador de História do campus Duque de Caxias. Doutor e mestre em História Social pela Universidade Federal Fluminense (UFF), tem experiência na área de História, com ênfase em História Moderna, atuando principalmente nos seguintes temas: Colonização na América Portuguesa, Povos Indígenas, Aldeamentos Indígenas, Companhia de Jesus, Processos de Mestiçagem, Diretório dos Índios, Micro-História e Inquisição portuguesa.

Como citar este artigo

CORRÊA, Luís Rafael Araújo. Orobó: uma comunidade indígena rebelde no Espírito Santo (artigo).  In: Café História - história feita com cliques. Disponível em: www.cafehistoria.com.br/comunidade-indigena-rebelde/ Publicado em: 17 abr. 2018. A-cesso: [informar data].

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