Por Abellard
Franca
Quando o
exército de fome marchou pela estrada escaldante nas manhãs sem pão e sem água
dos dias de 1877, já os velhos e esqueléticos jumentos olhavam para o céu,
estirando o pescoço murcho para ver se Deus lhes acudia, com a sombra de uma
nuvem ou se lhes respondia os gritos com a descarga elétrica das trovoadas. A
indiferença, porém, foi longa. E o milagre tardou. A distância que separava
aquele povo amaldiçoado dos outros mais felizes matou, para sempre, na alma de
toda aquela gente, a crença herdada de quatro séculos de promessas e fitas
bentas. E o peito do caboclo, vestido de queimaduras e de rosários, foi,
lentamente, mudando de indumentária.
A seca piorava. Estava iniciando-se o período triste do fim. O prelúdio daquela sinfonia horrenda morrera com o primeiro filho que a fome devorara. E tanto a sede trabalhou nos pobres camelos humanos que um dia o crime lhes aparecera como única porta de saída para a vida.
O drama de 77. No fundo o cenário da paisagem árida, profundamente má. A casa de taipa, deserta, pendida sobre escoras com imagens preás pelas paredes do rancho. Os santos são as companhias mais íntimas do sertanejo. Ficam na casa abandonada para que o Diabo não venha ser inquilino. O sertanejo sabe que volta, de qualquer maneira. Eles quando partem, na retirada faminta, deixam tudo: desde os cacarecos de estimação ao plantio que morreu de tanto esperar as chuvas. Mas, a maior saudade que eles levam, na mochila da marcha, é a da terra. Da terra que os enxota sem piedade, sem lágrimas.
Num contingente de vinte sertanejos na vinte medalhas com a efígie do padre Cícero Romão Batista. Os santos ficam esperando o milagre, mas a fé que eles ensinaram aos retirantes é tão grande que ela vai também, no corpo, no calo das mãos, nas chagas e nos trapos.
Passam as colunas. E atrás das secas como espantalho, está o cangaceiro. O produto do meio, a fruta venenosa da árvore que o verão matou. Desesperam as mães, porque o filhinho gemeu de sede. O pai fica olhando a encruzilhada do destino terrível. E do roubo ao crime é um passo rápido, natural. O homem trabalhador, fiel ao seu dever, trocou a enxada pelo punhal das tocaias.
Os homens de governo, entretanto quando estudam planos para combater os bandidos, que em determinadas épocas aparecem pelas regiões do Nordeste, não procuram saber antes a origem desses indivíduos desalmados. E partem blindados até os olhos atrás de um Antonio Silvino ou de um Manoel Germano. Lampião está aí como exemplo, herdeiro autêntico de quatro gerações martirizadas. Quantos Lampiões a esta hora estão agindo pelos sertões do Nordeste, matando para poder viver?
Não se
recordam os moradores de Quixadá, da época em que o seu açude, o maior do
sertão, ficasse como está agora: sem uma gota d’água.
Recordo-me de
uma tarde, viajando pelo sertão paraibano, na fronteira rio-grandense do norte,
parei num rancho para ouvir duas palavras de uma velhinha que fiava à porta,
sentada no batente de pedra.
Tudo para mim, naquela região vermelha, era inédito. E aqueles oitenta anos, onde uma linda cabeleira branca parecia prata fundida ao sol, pertenciam por certo, a uma personagem típica das histórias das calamidades.
- Mora só, velhinha, neste deserto?
- Não, seu moço, moro com Deus. Os quinze filhos que tive partiram:
uns para o
Amazonas, outros para o Acre e dois para o Sul...
- E nunca mais voltaram?
- Todos estão enterrados ali – respondeu a pobre viúva apontando com o dedo. Correram mundo e, um a um, todos voltaram, sem que ninguém chamasse. A terra sertaneja tem mandinga. O último que voltou foi o mais velho. Andou doze anos dentro do Amazonas e um dia a voz do sertão cantou perto dele... desceu nas águas do maior rio do mundo e veio morrer de sede aqui, juntinho de mim, juntinho da terra...
No céu, enquanto a velha falava, bandos de jandaias, muito altos, passavam, como esquadrilhas aéreas, anunciando o verão que recomeçava...
“Correio da
Manhã" (RJ) – 24.04.1932
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