Rangel Alves da Costa
Num tempo muito distante, onde os seres da natureza também falavam – e palavras muito diferentes das pronunciadas pelos humanos -, uma velha senhora, quase sem enxergar mais nada da luz do dia, morava sozinha numa casinha bem longe de qualquer vizinho.
Sempre sentada na sua cadeira de balanço, para sobreviver dependia do que familiares que moravam na cidade de vez em quando levavam ou de algum alimento que pessoas deixavam ao passar por ali. Comia quase nada, saboreando muito mais das tantas saudades e relembranças.
Com o passar dos anos, foi passando a conhecer quem chegava apenas pela voz. Tudo turvava ao redor e não havia jeito de saber se quem estava era um parente, um conhecido ou desconhecido senão pelo som que ouvia. Assim, a voz do outro era espalhada na mente como a imagem que queria fazer.
Certamente que ao lado do parente que sempre chegava ali, o desconhecido era logo reconhecido. Ora, a voz jamais ouvida lhe despertava mais atenção, mais interesse, mais acuidade. E principalmente porque temia um estranho que chegasse com o único e exclusivo intuito de fazer maldade.
Por isso mesmo gostava muito era de conversar com os bichos. Talvez o último tamanduá existente naquela região nutrisse por ela uma profunda amizade. Chegava ali com o seu focinho enorme e os dedos afiados e começava um proseado de não acabar mais. Ela perguntava se estava namorando e ele respondia que só se fosse com as formigas do formigueiro que vivia fuçando.
Ela era também muito amiga de um pequeno sagüi que vivia lá por cima de uma bananeira que havia em seu quintal. O macaquinho chegava aos pulos, rodeando a sala inteira e ficava bem na janela diante da velha senhora. Sempre perguntava se ela estava triste naquele dia e ela respondia sempre que não. Mas um dia o amigo avistou lágrimas descendo dos olhos sem luz e indagou porque estava assim. E a senhora apenas disse que estava assim porque ele iria embora. E não se sabe por que, mas ele nunca mais apareceu por ali.
Outro dia, ao entardecer, bateram à sua porta. Um, dois, três toques. E ela achou estranho porque ninguém fazia isso, vez que apenas chegava e ia logo empurrando a porta pra entrar. Assim, ao ouvir os toques ela falou que fizesse o favor de falar pra se reconhecia quem era pela voz. E a voz anunciou que era apenas um visitante.
Mas a velha senhora não conhecia ninguém com aquela voz. Aliás, ficou imaginando quem deveria ser aquele homem, pois era voz masculina, com aquele falar diferente, tão leve, tão educado, tão estranhamente bonito, suave e agradável. Um falar que parecia chegar no vento, pairar pelo ar, estando em muitos lugares ao mesmo tempo. Entre, disse ela.
Ela não ouviu a porta rangendo ao se abrir, nada bater, nenhum barulho, mas de repente a voz já estava como se fosse ao seu lado, na frente, por cima, não sabia realmente de onde ela vinha. Então ela perguntou se ele estava sentado no banquinho perto dela.
O visitante respondeu que estava sim, ali no banquinho e em outros lugares. Ela não entendeu e perguntou por que em tantos lugares ao mesmo tempo. E a visitante respondeu que sempre procurava estar onde as pessoas quisessem encontrá-lo, até mesmo dentro do coração muitas vezes.
Então ela disse que somente Deus poderia ser assim como ele dizia ser. E em seguida perguntou quem era e o que fazia ali. Então ele respondeu que seria bom que ela mesma o enxergasse para saber que era. Mas eu não enxergo mais, a não ser sempre um vulto em tudo que olho, mas em você parece que vejo uma luz.
Enxerga-me, disse o visitante. E ela viu a face divina como toda a sua vida tinha orado para ver um dia. Mas nada mais que uma luz, e ela enxergava a face divina. Então ela disse: Oh, meu Deus, tu és luz e que belo e suave tem a luz da face divina!
E a face de Deus sorriu. E em tudo ela passou a ver o sorriso de Deus. No pequeno animal, no vento, e até no estranho que não tinha mais forças para chegar ali com a face embrutecida.
Poeta e cronista
e-mail: rangel_adv1@hotmail.com
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