Por: Rangel Alves da Costa(*)
JAGUNÇOS SERTÃO ADENTRO
Coronel Eleotério Pantoja subiu no garboso alazão, animal sem igual em toda a região do Mundaréu, ajeitou seu corpo envelhecido e balofo sobre a sela macia, chamou seu faz-de-tudo aos pés do estribo e segredou-lhe que ficasse de olho bem aberto por ali enquanto ia mais adiante e voltava já.
Como fazia uma vez por semana, esse ir adiante e voltar já significavam uma visitinha à casa da rapariga, moça novinha e quase tirada à força das mãos da família, devidamente colocada numa casa mais afastada, porém ali mesmo dentro das terras de sua propriedade. Morava sozinha com uma velha escolhida a dedo pelo patrão. Ainda assim ninguém era besta nem de passar perto da alcova sertaneja.
Seguindo no trote costumeiro, o coronel dobrou a direita e depois à esquerda, e logo tomou o rumo da estrada que o levaria, uns dois quilômetros arriba, diante do aroma moreno da quase escravizada flor do campo. Estrada estreita, de terra batida, num misto de massapê e terra roxa, recoberta de espinhos e pedras, cheia de curvas e ladeada por tufos de matos e verdadeiros labirintos.
A menos de um quilômetro da moradia da amante, assim que dobrou mais uma das curvas e galopou cerca de cinquenta metros, recebeu um balaço bem no meio da testa, tiro tão certeiro que fez o chapéu espantar para um lado e o corpo cair quase por cima. Bastou um tiro e o famoso Coronel Eleotério Pantoja ficou estrebuchado no chão. O linho branco e surrado da vestimenta coronelista começou a vermelhar.
Ainda respirando, ouviu passos se aproximando e ao lado do seu rosto uma bota envelhecida, de muita estrada perigosa e fivela carcomida, suja e malcheirosa de estrume. Bota de jagunço, calçado de matador. Ainda que pudesse nem precisava olhar mais acima para saber ter sido alvejado por um pistoleiro de mando, um jagunço igual a tantos que possuía para fazer o mesmo tipo de serviço. Só que com os outros.
Tanto tinha mandado matar que agora acabou acertado. O outro lado da moeda, ou o vice-versa do latifúndio, do coronelismo e da pistolagem jaguncista. Agora cobra velha engolindo o próprio veneno. E nenhum dos seus homens por ali para revidar, para tentar salvar sua vida. Jamais imaginou que jagunço fedesse tanto quanto aquele terrível capanga em pé diante do seu corpo. Ou seria o fedor do sangue bandido, de covarde valentia, impregnando o nariz banhado de seu dono?
Nunca pensou que a morte chegasse assim e fosse tão feia, com tamanha queimação, sufocante, tornando um senhor de bicho, terra e gente num reles desvalido que sangrava por todo lugar. Também nunca pensou que jagunço algum tencionasse tocaiar, emboscar e fuzilar um poderoso de sua estirpe, um coronel de muitos sertões. Mas como sentia agora tudo diferente, como doía morrer, como fazia sofrer a entranha varada de chumbo quente, de bala pontiaguda.
Recebeu um chute no rosto apertado de lancinante dor e por fim a voz que sabia que viria: “Presente do Coronel Titó, sua cobra ruim. E tome pra calar seu chocalho, sua jararaca!”. E o último disparo. A boca abriu como se quisesse gritar, os olhos se viram crispados, um tormentoso espanto no rosto enrugado, a agonia, o último suspiro querendo levantar pra fugir, e a morte. E que coisa mais feia é a morte sob encomendada, empreendida daquele jeito, voraz, feroz, repugnante...
Mas não haveria de ser espanto algum. Nos sertões não há estrada ou vereda onde não haja cruz na beira da estrada e capelinha de defunto construída. Não há um só dia que as moitas de beira de passagem não recebam visitantes armados até os dentes, chegando ali furtivamente, rastejando igual bicho matreiro. Chegam e se entocam, se escondem, mal respirando para não levantar suspeitas. Parece não haver ninguém por ali.
Mas há a fera, o bandido, o matador, o assassino de aluguel ou de mando, o fiel cumpridor das ordens coronelistas. Ali entocado, mudo, solenemente fúnebre, está o tenebroso jagunço, o temido pistoleiro, o cabra que veio esperar o momento certo de tirar a vida do desafeto de seu patrão. Mas nem sempre inimigo mortal, adversário de igual poder, coronel de disputado domínio. Muitas vezes um zé-ninguém, um pobre coitado marcado pra morrer porque não quis entregar seu pedacinho de chão a preço vergonhoso ao coronel, ou mesmo porque deixou de lhe dever obediência para se submeter a outro senhor.
Por isso mesmo que os caminhos e as matarias sertanejas cheiram tanto a pólvora, a fumaça, a zinco, a ferro queimado, a carvão dos ossos esturricados. E igualmente fede a sangue, a podridão, a covardia, a restos ossudos esquecidos nas brenhas. Ainda que no silêncio, é como se a todo instante surgisse um estampido, uma rajada lancinante, um trotar de tiro. E na maioria das vezes não é imaginação.
Os urubus souberam do acontecido com o Coronel Eleotério Pantoja antes que qualquer pessoa. Como o cadáver de morte recente ainda não era hora de atacar, mas somente lá pelo entardecer do dia seguinte, quando a flacidez da pele de cor indefinida já se desprendia com qualquer bicada, ficavam apenas rondando de cima o corpo estirado, pousando de catingueira em catingueira, se aproximando e recuando. Por enquanto somente os carnicentos velavam o que restava do tão poderoso.
Mas não esquecido por muito tempo. Somente o fato de o coronel não haver retornado no horário costumeiro, já havia deixado o seu jagunço-mor de alerta. Quanto mais o tempo passava mais a preocupação aumentava. E a situação ficou realmente insustentável quando este começou a avistar pelo alto a urubuzada fazendo círculos, e certamente rondando alguma coisa morta. Mas não pode ser. Pensou o jagunço. Dum grito chamou mais três, mandou que se guarnecessem de armas e farta munição, e riscaram cortando estrada.
Guiados pelos abutres das caatingas, após a curva da estrada o afamado pistoleiro levantou o braço num sinal que parassem e descessem dos animais. Havia avistado um vulto estendido no meio da estrada. Logo em seguida reconheceu o alazão que saiu do mato e não teve mais dúvida. Ali por cima da terra estava o corpo do coronel seu patrão. Chamou os dois cabras, segredou baixinho e todos se dispersaram por dentro da mata.
Nesse momento se esperaria que seguissem o mais rapidamente possível na direção do corpo do patrão. Mas não. A estratégia jaguncista é bem outra, é muito diferente. Ainda que enxergue um corpo caído e com aparência de morte, a prudência pistoleira ensina que se deve evitar rápida aproximação. Muito cabra já havia morrido assim, numa tocaia de fingimento, na astúcia perpetrada se fazendo de morto para matar. Ademais, aquele corpo bem poderia não ser do coronel, ainda que aquele fosse o seu cavalo.
Dois jagunços por um lado e dois pelo outro, ora cuidadosa e silenciosamente mais próximo à estrada ora se afastando um pouco mais. Venciam os garranchos e esticavam o olho por todo lugar, tentando enxergar algum vulto se mexendo por trás de tufo de mato, e do mesmo modo olhando pra baixo a ver se avistavam pisadas recentes. De repente, um fez o sinal para o outro e apontou: uma cartucheira no chão, talvez descuidadamente esquecida ali.
E quase um grito cortou o silêncio: “Achei. Cartucheira ferrada, marca do inimigo maior do coroné. E se aquele defunto é do Coroné Pantoja, entonce o seuviço foi obra de cabra do Coroné Titó”. Ao ouvir sobre a descoberta e não poder mais duvidar que seu patrãozinho estivesse ali estrebuchado no chão, o jagunço maior baixou a cabeça por uns dois minutos, mordeu um pedaço de fumo, deu uma cusparada negra de mais de metro e disse:
“Quiró, bote o corpo do coroné pru riba do alazão e leve lá pra casa-grande. Vocês dois venha comigo. Vamo fazer uma visitinha aos pistoleiro do Coroné Titó. Quero ver agora se são cabra macho mermo, se enfrenta homem a num ser de tocaia. Rumbora cambada...”. Montaram nos animais e galoparam numa velocidade desesperada e estonteante.
Como que completamente cegos, sem medo algum, sem se importarem com nada, já chegaram atirando nos arredores do casarão do coronel. Mas não demorou nem um minuto e as balas já zuniam em sentido contrário, numa defesa que também era ataque. E daí em diante travou-se a feroz batalha entre jagunços, tão medonha e violenta que nunca se viu outra igual. Tiro pra não acabar mais, gritos, correria, tufos vermelhos jorrando pra todo lado, jagunço rastejante, jagunço morto, um sertão empoçado de sangue.
Outro dia dois viajantes passaram pelo lugar, diante da fazendeirama agora totalmente abandonada, e um perguntou ao outro se ali era também cemitério. E este respondeu que não. Mas que gostaria que fosse e naquele local estivesse enterrada de vez toda a violência jaguncista de um dia. Mas as sombras violentas do passado sempre levantam dos túmulos e tomam assento nos caminhos de todo sempre.
E contou ao outro toda a história. E ouvi tudo sem querer acreditar.
Poeta e cronista
e-mail: rac3478@hotmail.com
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