Seguidores

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

Uma História de Amor e Fúria: Da Balaiada ao Cangaço Parte II

Por: Verônica Kobs


Se a Balaiada é uma espécie de movimento precursor do Cangaço, a análise que se faz de uma revolta também vale para a outra. Nesse aspecto, importa, sobremaneira, a revisão que se faz das “figuras de herói (Duque de Caxias) e vilão (o Balaio, líder do movimento)”. No final do século XX, às vésperas de o Brasil completar 500 anos, vários momentos e personagens fundamentais de nossa História foram revisados, em um processo longo e determinante para a reconstrução da identidade nacional, baseado em uma leitura mais crítica e questionadora dos fatos e no apagamento das divisas entre Ficção e História.


Os filmes Carlota Joaquina, princesa do Brazil; Desmundo; e Baile perfumado são alguns exemplos dessa reavaliação histórica, cujo principal objetivo era, a partir do distanciamento, da objetividade, apresentar os dois lados de cada questão, permitindo reflexão, crítica e propiciando até mesmo a invalidação dos mitos construídos pelo discurso histórico ao longo do tempo.
 
O Baile Perfumado

Dessa forma, a nova análise que pode ser feita do movimento da Balaiada (e que, pela relação resgatada em Uma história de amor e fúria, vale também para o Cangaço), em contraposição ao discurso histórico (e hegemônico), enfatiza mais as causas das revoltas (ou seja, o que levou os balaios e os cangaceiros a agirem como agiram, confrontando o poder oficial), destaca o aspecto humano dos movimentos e problematiza a manutenção da ordem a qualquer preço (com a vitória dos governantes e a derrota dos revoltosos por morte ou prisão).

A exemplo da Balaiada, o Cangaço também agia contra o Estado. Até mesmo as ações de Jesuíno Brilhante e de Lampião são em parte justificadas pela sede de vingança contra a Polícia. Isso sugere os desmandos e os abusos de poder daqueles que deveriam proteger e manter a ordem, mas que cometiam atrocidades, em nome do poder oficial. De fato, os papéis de herói e vilão não eram bem delineados, de modo que contradição e ambivalência atingiam todas as esferas de poder (incluindo a Polícia, os donos de terra e também os movimentos da Balaiada e do Cangaço). Aliás, esse tipo de conflito é comum a todos os movimentos políticos e sociais. Por trás de toda revolta e de todo líder revolucionário há um rastro de violência e de tragédias. 


Entretanto, o outro lado aparece na luta pelos ideais e no perfil de coragem e tenacidade de quem comanda a reação. Negro Cosme, por exemplo, que foi um dos líderes da Balaiada, “no período, foi visto por muitos como um bandido sanguinário, um facínora sem escrúpulos e até como feiticeiro chegou a ser tratado. Muitos desconhecem suas qualidades de grande líder” (SOUSA, 2013).

Com Lampião não foi diferente. Hobsbawn analisa esse tipo de duplicidade fazendo uso do conceito de “bandido social” para se referir àqueles que são “encarados como criminosos pelo Estado, mas que continuam a fazer parte da sociedade camponesa e são considerados por sua gente como heróis, como campeões, vingadores, paladinos, justiceiros, talvez até mesmo líderes da libertação (...)” (HOBSBAWN, 1969, p. 73).

Também relacionadas à causa de muitos sertanejos terem decidido entrar para o Cangaço estavam as tentativas de ascender social e economicamente e de garantir a proteção da família e de suas propriedades. A “política do medo”, a certeza do poder extraoficial e o mito da justiça social eram consequências da vida no Cangaço e, para muitos, significavam a possibilidade real de alcançar o que o poder oficial por si só não garantia a todos. Essa é mais uma semelhança entre os balaios e os cangaceiros, que acreditavam no levante como única forma de lutar por melhores condições de vida (e, muitas vezes, pela sobrevivência), em uma sociedade em que as leis e os direitos não eram iguais para todos. 


Evidente que isso não se relaciona apenas ao aspecto antropológico que o diretor de Uma história de amor e fúria quis enfatizar, como afirmou nas entrevistas em que falou sobre o filme, mas associa-se também à hierarquia e ao escalonamento social, próprios da filosofia marxista. Em ambos os casos, importam as diferenças entre os grupos sociais e os acordos e conflitos que elas estabelecem.

Como na Balaiada e nos demais episódios históricos representados no filme de Bolognesi, o Cangaço surgiu como um grito da sociedade civil contra o poder hegemônico. O atavismo que é mostrado na trajetória do protagonista do filme não está apenas nas sucessivas rebeliões. Ele aparece também nos diferentes modos de dar nome às classes participantes dos conflitos: ricos e pobres; patrão e operário; colonizador e colonizado; senhor e escravo; dominante e dominado. Mudam os nomes, muda a História, só não muda a política de dominação (que justifica a ênfase dada ao maniqueísmo, no filme), razão de inúmeras guerras - as que já foram e as que ainda estão por vir.

Verônica Daniel Kobs
Professora de Imagem e Literatura e de Literatura e Estudos Culturais,
no Mestrado em Teoria Literária da Uniandrade (Curitiba-PR). 



Referências:
sombria-do-brasil/>. Acesso em: 30 mai. 2013.
GUIMARAENS, G. Crítica: Uma história de amor e fúria. Disponível em:
. Acesso em: 30 mai. 2013.
HOBSBAWN, E. Bandidos. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1969.
PASTORELLO, F. Uma história de amor e fúria. Disponível em:
. Acesso em: 30 mai. 2013.
SCHENKER, D. Entrevista: Luiz Bolognesi. Disponível em:.
Acesso em: 25 nov. 2013.
SCHWARZ, R. As idéias fora do lugar. In: _____. Ao vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Livraria Duas Cidades; 34, 2000.
SERRA, A. A Balaiada. Rio de Janeiro: Bedeschi, 1948.
SOUSA, R. M. da C. Negro Cosme: uma página esquecida de nossa história. Disponível em: . Acesso em: 26 nov. 2013.
UMA HISTÓRIA de amor e fúria. Direção de Luiz Bolognesi. BRA: Gullane Filmes; Europa Filmes, 2013. 1 dvd (75min); son.


http://cariricangaco.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com

Nenhum comentário:

Postar um comentário