por José
Gonçalves do Nascimento*
A canção “A
feira de Caruaru”, composta por Onildo Almeida e interpretada pelo imortal Rei
do Baião, além de ser um clássico da música popular brasileira, é também uma
bela e justa homenagem a uma das mais autênticas manifestações da cultura do
Nordeste: a feira livre. Tomando como referência a Caruaru dos grandes são
joões e do Mestre Vitalino, a moda de Gonzaga mostra o quão é rica e diversa a
feira livre do Nordeste.
A feira é, por
excelência, o lugar da diversidade. Nela se vende, se compra, se troca. Em cima
de esteiras, de caixotes, ou expostos em pequenas bancas cobertas de lona, são
ali oferecidos os mais diferentes gêneros e produtos, desde alimentos,
vestuários, até utensílios de cozinha e ferramentas de trabalho; a feira possui
sua culinária, seu modo de vestir, sua linguagem; na feira se come, se bebe, se
embriaga, se cai, se levanta; na feira se canta, se dança, se contam histórias,
se rememoram fatos; na feira se celebra o encontro, o ajuntamento, a roda de
amigos em torno da boa “cana; na feira, arranjam-se namoros, encontram-se
amantes, terminam-se casamentos; a feira é celebração, é acontecimento, é festa
(a própria etimologia já o indica: “dia de festa”); é a quebra da rotina e da
“mesmice” que marcam o cotidiano.
A feira é
também lugar de comunicação. Por ali circulam de boca em boca informações a
respeito de quase tudo: a chuva que caiu alhures; a vaca do amigo que deu boa
cria; a comadre fulana que partiu dessa pra melhor; a filha do sicrano que
fugiu com um marmanjo há pouco chegado de São Paulo; a mulher que chifrou o
marido com o filho do vizinho; a guerra que estourou longe dali; o deputado que
roubou lá pras bandas da capital; o prefeito que fraudou as urnas a fim de
ganhar a eleição; o padre que deu em cima da catequista da paróquia.
É na feira que
os artesãos expõem seus produtos e os artistas populares mostram a força do seu
talento. Quando eu era adolescente, não me cansava de parar para ouvir os
cantadores de ABC, poetas populares que percorriam as feiras do Nordeste
comercializando seus folhetos de cordel. Aliás, veio daí minha paixão por esse
gênero de poesia. Sempre admirei as feiras livres, em especial a de Monte
Santo, meu torrão de origem. Achava bonito o desfilar dos caminhões
paus-de-arara, que dos quatro cantos chegavam apinhados de pessoas a conduzirem
suas mercadorias. Encantava-me com os vendedores de pomadas e cascas de pau, a
divertirem o público com seus ousados ventríloquos, que falavam e contavam
piadas como se fossem gente. Adorava os bolos, manuês e arroz doce servidos
quentinhos, ainda fumaçando. Para mim, a feira era sempre uma festa, sendo rara
a semana que não a frequentava. Chegava de manhã, no começo, e saía à tardinha,
já no final.
A feira quebra
barreira, estreita laços, estabelece convivência. Ali cada um é tratado pelo
nome (Zé, Maria, João, Zefinha), como se fora um ambiente familiar. Ao freguês,
é facultado experimentar o produto, sem que isso gere qualquer compromisso. Sem
a rigidez das leis do Mercado, os preços ali são flexíveis e estão sempre
sujeitos à pechincha do consumidor. Dependendo da lábia e do choro do
comprador, uma dúzia deixa de ser doze para ser quinze unidades. O lucro é
importante, mas “agradar” o freguês torna-se mais importante ainda.
Muitas cidades
operam o tempo todo quase que em função da feira, dela recebendo todas as
influências possíveis. O intercâmbio com pessoas de outras procedências, algo
inevitável, acaba sempre acrescentando elementos novos à vida local. Aliás, a
troca de experiências entre pessoas e grupos diferentes será sempre um traço
marcante quando o assunto for feira livre. Assim surgiram e se desenvolveram
muitas das feiras do Nordeste – região historicamente cortada por peregrinos,
mercadores e viajantes. É sabido que antigos pousos de tropeiros
transformaram-se em feiras livres e, estas por sua vez, deram origem a muitos
dos atuais centros populacionais. Outros grupos sociais também tiveram
participação na construção desse patrimônio da cultura brasileira. Dentre eles,
há de se mencionar negros, índios, retirantes, beatos, cangaceiros, adivinhos,
feiticeiros, poetas, prostitutas, mendigos, cachaceiros... cada um emprestando
sua concepção acerca do mundo, das coisas e das pessoas.
Importante
fator de geração de renda, o que já é bastante significativo, haja vista as
condições sociais e econômicas da maioria das cidades nordestinas, a feira
representa também a ocupação do espaço urbano como lugar de encontro. No
momento em que os modernos meios de comunicação, caso das redes sociais, ou a
adoção de determinadas medidas de segurança, tendem a afastar as pessoas do
convívio social, a rua é reclamada como espaço de socialização, de
confraternização e de troca de experiências. E a feira livre desempenha esse
papel.
A feira livre
resistiu a todas as transformações por que passou o mundo ao longo dos séculos,
chegando aos nossos dias com toda a força simbólica que lhe é característica –
não obstante o advento dos novos expedientes comerciais, a exemplo dos
quilométricos hipermercados e das agilíssimas compras virtuais. Como sabiamente
salientou alguém, “a feira livre é como uma filha rebelde da modernidade que
insiste em desafiá-la”.
É necessário,
porém, que haja uma sólida política de preservação da feira livre. Há de se
empreender amplo trabalho de conscientização da sociedade acerca do papel da
feira enquanto expressão das culturas locais, não permitindo que novos modelos
desfigurem seu formato original. Formato que vai desde o dia e horário do
evento, até a espontaneidade com que os feirantes expõem seus produtos, não
tendo de se submeterem aos “padronismos” das modernas formas de comércio.
*Poeta e
cronista
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
jotagoncalves_66@yahoo.com.br
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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