Por Rostand Medeiros
E o Exemplo De
Uma Cidade Potiguar na Preservação de Um Dia Intenso
1927 foi um
ano bem intenso na história do Rio Grande do Norte. Enquanto os sobrevoos de
aeronaves vindas da Itália, Portugal, Estados Unidos e França faziam com que a
capital potiguar marcasse presença em jornais de circulação mundial com, o
nosso sertão era “visitado” pelo maior bandoleiro da história do Brasil, o
cangaceiro pernambucano Virgulino Ferreira da Silva, o famoso Lampião.
Seu ataque às
terras potiguares, junto com um numeroso e feroz bando de cangaceiros,
aconteceu em junho daquele ano e tinha como principal objetivo a progressista
cidade de Mossoró. Mas ao longo do trajeto algumas comunidades e muitas
propriedades foram invadidas, ultrajadas, roubadas e saqueadas. Em um
imemoriável frenesi de medo, terror, gritos, sangue e mortes.
O ataque de Lampião
ao Rio Grande do Norte jamais foi esquecido nestas comunidades e em alguns
destes locais existe uma luta muito interessante e louvável para preservar a
memória daqueles dias estranhos e intensos.
Um destes
locais é a cidade de Antônio Martins.
A Chegada dos
Celerados
Em 2010 eu
percorri pela primeira vez o caminho de Lampião no Rio Grande do Norte,
passando pelos territórios de dezenove municípios potiguares, como parte de uma
pesquisa para o SEBRAE-RN[1].
Cidade de
Antônio Martins
Quando estive
em Antônio Martins eu conheci e recebi o apoio do escritor Chagas Cristóvão,
que na época exercia o cargo de Secretário Municipal de Turismo e Cultura
daquela cidade.
Competente
pesquisador da história da sua comunidade, Cristóvão comentou que na época da
invasão dos cangaceiros a atual cidade de Antônio Martins tinha a denominação
de Boa Esperança. Era então uma pequena concentração de casas, onde viviam
cerca de 350 a 400 habitantes, sendo parte do território da cidade serrana de
Martins[2].
Em 11 de junho
de 1927, dia da chegada do bando de cangaceiros a localidade, coincidiu com as
celebrações da festa do padroeiro local, Santo Antônio.
De certa
maneira esta situação de comemoração, novenas e alegria do povo do lugarejo foi
muito útil para o grupo de celerados, pois pegou a todos na comunidade bastante
desprevenidos, sendo a pequena urbe rapidamente ocupada. Aquela localidade era
o primeiro núcleo urbano invadido pelo bando de cangaceiros de Lampião no Rio
Grande do Norte.
Justino
Ferreira de Souza, fundador do povoado de Boa Esperança.
Naquele mesmo
11 de junho, o povo de Boa Esperança aguardava a chegada de uma banda de música
da cidade paraibana de Catolé do Rocha. Mas por atraso da saída destes músicos
da cidade fronteiriça, não ouve o encontro da banda musical com os cangaceiros.
Para Cristóvão esta também é outra das razões para a população da cidade ter
sido pega totalmente de surpresa quando da entrada do bando. Vale ressaltar que
durante a entrada dos bandidos na vila, um deles fazia a função de corneteiro,
tocando um destes instrumentos que havia sido capturado dos policiais batidos
no combate da Caiçara[3].
Neste período
o fundador do lugar e líder político era Justino Ferreira de Souza. Ele foi
avisado da chegada do grupo, mas diante do fato consumado decidiu esperar e ver
o que acontecia.
Logo o bando
adentra a rua principal. Ao perceberem quem eram os cavaleiros o pânico se
instalou. Pessoas correram para todo lado. Os cangaceiros atiravam para o alto,
gritavam, urravam, batiam e galopavam invadindo e saqueando as casas do
lugarejo.
Lampião estava
particularmente raivoso. Entre as sandices cometidas em Boa Esperança temos o
suplício de Vicente Teixeira de Lira.
Aqui vemos
Vicente Teixeira de Lira, que escapou por milagre de morrer nas garras de
Lampião e dos seus homens.
O caso começou
quando Lira deu uma resposta que o chefe cangaceiro pernambucano considerou
insolente e foi “convocado” por Lampião. O humilde potiguar foi então obrigado
a seguir à frente do bando, segurando na correia da alimária de Lampião. Em
dado momento Lira escorregou no chão de terra e o cavalo do chefe dos bandidos
quase lhe colocou no chão. Foi o que bastou para o pobre aldeão levar uma
extensa cutilada de punhal. Para piorar sua situação, em frente à igreja de
Santo Antônio, outros bandoleiros fizeram pouco caso de sua má sorte e o
obrigaram a beber cachaça. Ele quase morreu.
Entre os
locais de comércio que foram atacados estava a mercearia e a casa de Francisco
Justino, onde os homens armados se abasteceram de vários gêneros e beberam
muita cachaça. Com muita conversa, jeito, extremo tato, este pequeno negociante
conseguiu que Lampião demovesse os seus seguidores de continuarem na sinistra
depredação.
Alguns reféns
anteriormente capturados pelos cangaceiros na passagem por propriedades que
ficavam localizadas antes desta comunidade conseguiram fugir em meio a toda
confusão reinante.
Na vila não
faltaram ameaças, espancamentos e roubos de produtos em casas comerciais.
Uma Novaes no
Rio Grande
Outro caso que
ficou famoso foi no momento em que Sabino, o braço direito de Lampião na
empreitada por terras potiguares, saqueava a loja e a residência de Augusto
Nunes de Aquino. Sabino se preparava para levar a mulher do comerciante, Dona
Rosina Novaes, como refém.
Dona Rosina
Novaes, mulher do comerciante Augusto Nunes de Aquino.
O sobrenome desta
pernambucana do Pajeú fez Lampião diminuir o ímpeto do ataque de seu bando a
pequena vila.
No momento de
ser colocada em um cavalo e seguir com a turba encourada, Dona Rosina desabafou
com o perigoso Sabino, comentando detalhes de sua procedência e a origem do seu
nome de família. Sabino, ao escutar o relato da mulher, chamou o chefe na
mesma hora.
Lampião
descobriu, naquele longínquo lugarejo potiguar, estar diante de uma parenta de
Elias e Emiliano Novaes, da cidade de Floresta, na época conhecida como
Floresta do Navio, na mesma região do Pajeú. Emiliano Novaes era comerciante,
membro de uma proeminente família, tido como amigo e coiteiro de Lampião.
Consta que chegou a cavalgar de arma na mão ao lado de cangaceiros[4].
Para muitos
habitantes da região, a situação na vila de Boa Esperança durante a invasão do
bando só não foi mais grave devido a Dona Rosina Novaes. Pelo fato dela possuir
laços familiares com pessoas que Lampião respeitava e temia em Pernambuco, fez
com que o ímpeto destrutivo do chefe em relação ao lugar fosse claramente
abrandado.
Lampião era
muito valente, mas era antes de tudo inteligente. Evidentemente ele percebeu
que quando retornasse para Pernambuco trazendo consigo a responsabilidade por
algo negativo ocorrido a Dona Rosina Novaes, a temida e glorificada capacidade
vingativa da família Novaes se faria sentir contra ele e seu bando. O melhor
era deixar aquela mulher em paz.
O comerciante
Augusto Nunes de Aquino.
Diante da nova
situação o chefe refreou os ímpetos violentos tanto dele, quanto do seu bando.
Lampião chega ao ponto de se desculpar com Dona Rosina pelo ocorrido. Alegava
desconhecer ser o lugar habitado por uma legítima representante do temido clã
dos Novaes[5].
Desfeito o
“mal entendido”, para Lampião o clima ficou mais tranquilo e ele chega a
solicitar que Dona Rosina prepare algo para eles jantarem. Mais adiante,
tranquilamente sentado na mesa, mais para se justificar diante dos seus atos e
do seu bando, o cangaceiro comenta “o porquê de estar nesta vida” – Comenta aos
presentes estar naquela vida bandida como fruto das perseguições que sofria,
destilou seu ódio contra a polícia e outras razões.
Diante da
esperada respeitabilidade que Lampião passou a demonstrar por Dona Rosina e seu
marido Augusto Nunes de Aquino, este último assume o papel de protetor dos
habitantes de Boa Esperança.
Por volta das
sete e meia da noite, o chefe prepara seu bando e seguem viagem.
Cangaceiros
Rezando na Igreja de Santo Antônio
Da época do
ataque de Lampião a Boa Esperança, poucos são os locais que se encontram
preservados atualmente.
A primeira
residência do atual município de Antônio Martins.
Um destes
pontos invadidos pelos membros do bando de Lampião é uma interessante
residência localizada na Rua Aureliano Saraiva, número 109. Construída em 1898,
esta casa pertenceu a Justino Ferreira de Souza e na época servia como uma pousada
para os viajantes que trafegavam na região. A casa se mantém original, sendo
continuamente habitada e considerada a residência mais antiga e precursora da
povoação de Boa Esperança.
O potiguar
Luís da Câmara Cascudo e o paulista Mário de Andrade em foto no sertão
nordestino.
Ainda sobre
este local, segundo Chagas Cristóvão, um ano e sete meses depois da passagem do
bando pelo lugar, no dia 19 de fevereiro de 1929, ali chegava um carro
transportando quatro homens que visitavam a região sertaneja. Entre estes
estavam o folclorista potiguar Luís da Câmara Cascudo e o poeta e escritor
paulista Mário de Andrade.
A passagem de
um dos criadores do movimento modernista no Brasil pela Região Oeste Potiguar
tinha como objetivo a observação dos costumes, das manifestações culturais e as
características do povo do sertão nordestino. Mesmo passado quase dois anos do
ataque de Lampião, chamou atenção do escritor paulista as marcas do medo da
população de Boa Esperança diante da terrível “visita” de Lampião[6].
Igreja de
Santo Antônio.
Vizinho a esta
antiga habitação se encontrava a igreja de Santo Antônio. Construída 1901, este
pequeno templo religioso era no dia 11 de junho de 1927 o principal local de
realização dos festejos relativo ao padroeiro local.
Até hoje nesta
festa religiosa é tradicional a realização das chamadas “trezenas”, onde
durante treze dias anteriores ao dia 13 de junho, a data consagrada a Santo
Antônio, são realizadas missas, cantos de benditos, encontros e outras
participações da comunidade neste templo católico.
Segundo Chagas
Cristóvão havia algumas pessoas da comunidade reunidas no local quando os
cangaceiros chegaram a Boa Esperança. Logo alguns cangaceiros ficaram diante do
templo e, visivelmente embriagados, proibiram a saída dos fiéis do local. De
dentro da igrejinha essas pessoas assistiram horrorizados os suplícios do jovem
Vicente Lira, que apunhalado e sangrando abundantemente, era obrigado a engolir
talagadas de cachaça.
Cristóvão
comentou ainda que existe uma versão onde diante da igreja aberta, outros
cangaceiros adentraram respeitosamente o local, se ajoelharam, rezaram, se
benzeram e depois saíram sem perturbar os atônitos presentes[7].
Velha casa do
extinto sítio Alto da Ema, atualmente um bairro da cidade de Antônio Martins.
Na saída da
zona urbana do atual município de Antônio Martins, temos a velha casa do sítio
Alto da Ema, que então pertencia a um senhor conhecido como “Coqueiro” e hoje
dá nome a um dos bairros da cidade. Neste ponto os comandados de Lampião
procuraram adentrar residência assobradada, que se encontrava desocupado devido
à fuga dos seus moradores. Eles utilizaram as coronhas dos seus fuzis na
tentativa de derrubar a porta. Entretanto, fosse pela pressa em seguir adiante,
ou pelo excesso de álcool, ou outra razão desconhecida, os cangaceiros não
alcançaram seu intento e seguiram adiante no seu caminho de saque e
terror.
A Memória da
Passagem de Lampião
Em 2007,
durante a passagem dos oitenta anos do ataque de Lampião ao Rio Grande do
Norte, a prefeitura local decidiu promover toda uma programação destinada a
marcar este momento dentro da comunidade. Em uma bela praça de eventos
localizada no centro da cidade foi fixada uma placa de bronze com a relação dos
trinta e um habitantes da antiga vila de Boa Esperança que sofreram violências
ao longo da passagem do bando.
Placa
comemorativa ao 80º aniversário da passagem de Lampião por Antônio Martins. Na
placa de bronze estão inscritos os nomes de 31 pessoas que foram atacadas em 11
de junho de 1927.
Aos
descendentes dos que foram atacados pelos cangaceiros, a Prefeitura Municipal
de Antônio Martins outorgou uma insígnia honorífica, personalizada, no formato
de uma pequena placa de acrílico, , alusiva aos fatos ocorridos. Esta
condecoração foi entregue a alguns dos descendentes em praça pública, no dia 11
de junho de 2007.
Insígnia
entregue em 11 de junho de 2007, aos descendentes dos que estavam na povoação
de Boa Esperança e sofreram com o ataque do bando de Lampião.
Igualmente
nesta mesma data, passava pela cidade de Antônio Martins a cavalgada
comemorativa aos 80 anos do ataque a Mossoró, onde foi repetido o mesmo ato
simbólico ocorrido na zona rural de Marcelino Vieira, com o descerramento de
outra placa comemorativa em relação à resistência ocorrida em Mossoró, quando
da passagem do bando pelo Rio Grande do Norte.
Placa da
cavalgada dos 80 anos da resistência ao bando de Lampião em Mossoró, fixada em
Antônio Martins.
Segundo Chagas
Cristóvão a prefeitura de Antônio Martins desenvolveu um projeto visando a
criação de um museu destinado a apresentar os principais aspectos da história
municipal, onde seria inserido a história do ataque do bando de lampião aquela
comunidade.
O museu
estaria direcionado para um público local e regional, tendo como outros pontos
focais a valorização das raízes locais e o desenvolvimento do turismo regional.
Pessoalmente não tive mais informações se este museu foi inaugurado.
Mas louvo
todas as iniciativas ali realizadas em relação a memória destes acontecimentos.
NOTAS
[1] Sobre
este trabalho e o caminho de Lampião no Rio Grande do Norte veja – https://tokdehistoria.com.br/2015/04/11/pelos-caminhos-de-lampiao/
[2] O
número da população de Boa Esperança na década de 1920 aqui apresentado é uma
dedução feita a partir do texto existente sobre a história desta cidade
existente no sitehttp://www.wikipédia.org(https://pt.wikipedia.org/wiki/Ant%C3%B4nio_Martins),
onde lemos que em 1920 havia “81 casas, com 327 moradores já estavam
permanentes em Antônio Martins”. Esse número mostra que houve um aumento
exponencial na população local, pois vinte e dois anos antes do ataque de
Lampião a Boa Esperança, temos a informação que moravam neste lugar cerca de
sessenta “fogos”, ou pessoas. Informação contida na mensagem do governador
potiguar Augusto Tavares de Lyra, lida na Assembleia Legislativa em 1905 e
publicada no ano seguinte, em um interessante detalhamento sobre o município de
Martins, Ver “Mensagens lidas perante o Congresso Legislativo do Estado do Rio
Grande do Norte”. Tipografia A República. Pág. 116, Natal-RN, 1906. Atualmente,
utilizando as modernas rodovias BR-226 e RN-117, a distância entre Antônio
Martins e Martins é de uns 35 quilômetros.
[3] Sobre
este combate ver –https://tokdehistoria.com.br/2011/10/25/o-grande-fogo-da-caicara-inicio-da-resistencia-ao-bando-de-lampiao-no-rn/
[4] Um
pouco sobre Emiliano Novaes, veja emhttps://tokdehistoria.com.br/2014/09/12/cangaceiros-atras-das-grades-fim-da-ilusao/
[5] Não
é muito difícil na região do Oeste Potiguar encontrar inúmeras referências de
famílias cujos antepassados eram provenientes do sertão do Pajeú, ou de outras
áreas do sertão Pernambuco. Acreditamos que esse processo tem haver com o
trânsito de pessoas e mercadorias, que seguiam principalmente em direção a
Mossoró, em comboios de cargas transportados por mulas e jegues.
[6] O
resultado desta empreitada sertaneja subsidiaria Mário de Andrade a escrever a
obra “O turista aprendiz”.
[7] Durante
todo nosso percurso pesquisando a passagem do bando de Lampião no Rio Grande do
Norte em 2010 e em três outras viagens por este caminho em 2012, 2014 e 2015,
esta foi a única informação que consegui sobre a presença de que alguns
cangaceiros do bando teriam adentrado um templo católico com o intuito de
rezar.
https://tokdehistoria.com.br/2016/04/17/o-ataque-dos-cangaceiros-de-lampiao-a-antonio-martins-rn/
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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