*Rangel Alves
da Costa
Os meninos
daquela rua são os mesmos meninos do passado, de tempos outros de um sertão
mais empobrecido e mais feliz, de uma cidade muito mais modesta e mais segura e
acolhedora, de pessoas muito mais humildes e mais ricas em amizades,
cordialidades e humanismos.
Os meninos
daquela rua moravam tanto na Rua de Baixo como na Rua de Cima, tanto na Rua dos
Vaqueiros como na Ponta da Asa, tanto ao redor do Tanque Velho como no lado de
cá do Alto de João Paulo, tanto na Praça da Matriz como nos arredores do Projeto
Sertanejo. Como visto, aqueles meninos eram meninos de todo lugar, de todo o
Poço Redondo.
Meninos
daquelas ruas de cadeiras nas calçadas, de rendas de bilros pelas velhas e
hábeis mãos, de amigos e proseados, de arroz-doce e mungunzá, de pirulito e cocada
na janela. Menino desejoso do pirulito de Luisinha, do arroz-doce de Baíta, da
cocada de Quininha, do doce de frade de Cecília de Duié. Qual menino não
sonhava com o doce de leite de Noélia? Tudo tão doce como aquele tempo e seus
meninos de todas as ruas.
Os meninos
daquela rua, de todas as ruas de Poço Redondo, eram verdadeiros meninos. Os
meninos daquela rua tiveram a felicidade de crescer num sertão verdadeiramente
sertanejo, de brincar de pega-de-boi, de vaquejar boi-menino escondido pelos
quintais, de fachear passarinho em noite sem lua, de jogar bola em cima do chão
duro e espinhento, de jogar bola de gude, de fazer jogador com plástico
derretido, de catar fruta no mato e até de pular quintal alheio para afanar
goiaba. Menino que se dava ao trabalho de sair da cidade e ir roubar caju de
Luiz Doce. E corria de lá ameaçado de tudo.
Os meninos
daquela rua que já rapazinhos ainda tomavam banhos totalmente nus em dias de
chuvarada. Bastava chover forte e fugir da presença dos pais, aquele rebanho de
meninos pelados pulando e brincando, se jogando em lamaçais, escorrendo pelas
calçadas, fazendo festa debaixo das goteiras. Aqueles meninos nus que não eram
vistos e olhados senão pela vontade de expressar suas idades e seus
contentamentos em dias das tão preciosas chuvaradas sertanejas.
Aqueles
meninos sertanejos que sempre arranjavam um jeitinho de ir, sempre escondidos
dos pais, tomar banho nas águas do riachinho. Chovendo no sertão inteiro e
muito mais nas cabeceiras, quando chegava noite alta logo começava o barulho
tão conhecido. Era a cheia do Jacaré que vinha ligeira, voraz, derrubando tudo,
passando por cima de tudo, fazendo uma barulheira danada. Logo as pessoas
abriam suas portas e se bandeavam para sentir de perto aquele verdadeiro
espetáculo.
Chegava um
dizendo alarmado: “Coitado do dono da fábrica de queijo. Não teve tempo de
tirar seus porcos e acabou perdendo mais de cinco bacurins”. Já outra chegava
desesperada: “Na descida do Alto, um cavalinho e uma vaca não tiveram tempo nem
de fugir. A correnteza passou e levou tudo. O coitado do dono tá desesperado.
Se já não passaram por aqui, não vai demorar muito. E o pobre coitado só tinha
essa vaquinha e esse cavalo”.
Os meninos
daquela rua ouviam tudo isso, porém sequer davam maior atenção. Suas
preocupações eram outras. Em cada uma cabecinha sertaneja já o planejamento dos
banhos que ali iriam tomar. Bastava que desse mais umas duas cheias e as águas
limpassem mais para que todos chegassem ali escondidos dos pais para a festança
maior. Nos dias seguintes era uma meninada de não acabar mais. E logo se ouvia
os gritos nas proximidades ou já nas beiradas: “Menino teimoso da peste. Saia
daí agora mesmo e venha tomar chinelada na bunda. Lá em casa é que vai ver o
que é bom pra menino teimoso”.
Mas os meninos
daquela rua cresceram. E até parece que depois daqueles meninos, outros não
nasceram mais. De vez em quando fico imaginando se ainda existem meninos em
Poço Redondo e sinto que é até difícil certificar. A infância existe, a
meninice existe, as brincadeiras existem, mas tudo tão cimento, tão asfalto,
tão tecnológico, tão sem graça. Menino não brinca mais de cavalo de pau nem de
soltar papagaio. Suas mãos só servem para os botões e teclas do mundo
informatizado.
Mas é assim
mesmo. Só resta recorda os meninos daquela rua e das noites que todos iam se
apaixonar pelas belas sertanejinhas brincando de ciranda: “Alecrim, alecrim
dourado, que nasceu no campo sem ser semeado...”. Passado, meu passado, “como
poderei viver, como poderei viver, sem a tua, sem a tua companhia...”.
Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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