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quinta-feira, 2 de fevereiro de 2017

OS MENINOS DAQUELA RUA

*Rangel Alves da Costa

Os meninos daquela rua são os mesmos meninos do passado, de tempos outros de um sertão mais empobrecido e mais feliz, de uma cidade muito mais modesta e mais segura e acolhedora, de pessoas muito mais humildes e mais ricas em amizades, cordialidades e humanismos.

Os meninos daquela rua moravam tanto na Rua de Baixo como na Rua de Cima, tanto na Rua dos Vaqueiros como na Ponta da Asa, tanto ao redor do Tanque Velho como no lado de cá do Alto de João Paulo, tanto na Praça da Matriz como nos arredores do Projeto Sertanejo. Como visto, aqueles meninos eram meninos de todo lugar, de todo o Poço Redondo.

Meninos daquelas ruas de cadeiras nas calçadas, de rendas de bilros pelas velhas e hábeis mãos, de amigos e proseados, de arroz-doce e mungunzá, de pirulito e cocada na janela. Menino desejoso do pirulito de Luisinha, do arroz-doce de Baíta, da cocada de Quininha, do doce de frade de Cecília de Duié. Qual menino não sonhava com o doce de leite de Noélia? Tudo tão doce como aquele tempo e seus meninos de todas as ruas.

Os meninos daquela rua, de todas as ruas de Poço Redondo, eram verdadeiros meninos. Os meninos daquela rua tiveram a felicidade de crescer num sertão verdadeiramente sertanejo, de brincar de pega-de-boi, de vaquejar boi-menino escondido pelos quintais, de fachear passarinho em noite sem lua, de jogar bola em cima do chão duro e espinhento, de jogar bola de gude, de fazer jogador com plástico derretido, de catar fruta no mato e até de pular quintal alheio para afanar goiaba. Menino que se dava ao trabalho de sair da cidade e ir roubar caju de Luiz Doce. E corria de lá ameaçado de tudo.

Os meninos daquela rua que já rapazinhos ainda tomavam banhos totalmente nus em dias de chuvarada. Bastava chover forte e fugir da presença dos pais, aquele rebanho de meninos pelados pulando e brincando, se jogando em lamaçais, escorrendo pelas calçadas, fazendo festa debaixo das goteiras. Aqueles meninos nus que não eram vistos e olhados senão pela vontade de expressar suas idades e seus contentamentos em dias das tão preciosas chuvaradas sertanejas.


Aqueles meninos sertanejos que sempre arranjavam um jeitinho de ir, sempre escondidos dos pais, tomar banho nas águas do riachinho. Chovendo no sertão inteiro e muito mais nas cabeceiras, quando chegava noite alta logo começava o barulho tão conhecido. Era a cheia do Jacaré que vinha ligeira, voraz, derrubando tudo, passando por cima de tudo, fazendo uma barulheira danada. Logo as pessoas abriam suas portas e se bandeavam para sentir de perto aquele verdadeiro espetáculo.

Chegava um dizendo alarmado: “Coitado do dono da fábrica de queijo. Não teve tempo de tirar seus porcos e acabou perdendo mais de cinco bacurins”. Já outra chegava desesperada: “Na descida do Alto, um cavalinho e uma vaca não tiveram tempo nem de fugir. A correnteza passou e levou tudo. O coitado do dono tá desesperado. Se já não passaram por aqui, não vai demorar muito. E o pobre coitado só tinha essa vaquinha e esse cavalo”.

Os meninos daquela rua ouviam tudo isso, porém sequer davam maior atenção. Suas preocupações eram outras. Em cada uma cabecinha sertaneja já o planejamento dos banhos que ali iriam tomar. Bastava que desse mais umas duas cheias e as águas limpassem mais para que todos chegassem ali escondidos dos pais para a festança maior. Nos dias seguintes era uma meninada de não acabar mais. E logo se ouvia os gritos nas proximidades ou já nas beiradas: “Menino teimoso da peste. Saia daí agora mesmo e venha tomar chinelada na bunda. Lá em casa é que vai ver o que é bom pra menino teimoso”.

Mas os meninos daquela rua cresceram. E até parece que depois daqueles meninos, outros não nasceram mais. De vez em quando fico imaginando se ainda existem meninos em Poço Redondo e sinto que é até difícil certificar. A infância existe, a meninice existe, as brincadeiras existem, mas tudo tão cimento, tão asfalto, tão tecnológico, tão sem graça. Menino não brinca mais de cavalo de pau nem de soltar papagaio. Suas mãos só servem para os botões e teclas do mundo informatizado.

Mas é assim mesmo. Só resta recorda os meninos daquela rua e das noites que todos iam se apaixonar pelas belas sertanejinhas brincando de ciranda: “Alecrim, alecrim dourado, que nasceu no campo sem ser semeado...”. Passado, meu passado, “como poderei viver, como poderei viver, sem a tua, sem a tua companhia...”.
  
Escritor
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