Por Affonso Romano
de Sant’Anna
Que relação
haveria entre Mariel e Lampião? Será que os bicheiros são uma espécie de Robin
Hood dos subúrbios patrocinando o carnaval dos pobres? Qual a relação de
Padrinho Cícero e de Antônio Conselheiro com o fenômeno da marginalidade?
Prestes e Lamarca quando abandonam o Exército viraram bandidos ou
revolucionários? Como entender o encontro de um Fernando Gabeira com um Lúcio
Flávio na Ilha Grande? Por que o Exército americano se aproximou da máfia
siciliana na Segunda Guerra Mundial?
É urgente escrever a História do Banditismo no Brasil para sabermos o que significam Mineirinho, Cara de Cavalo e entender melhor tanto um delegado Fleury quanto a indústria da marginalidade incrementada em torno do jogo do bicho.
E se eu disse
que o que se passa hoje na questão do jogo do bicho não é uma simples luta
entre banqueiros, nem um combate entre polícia e bandidos, nem um simples caso
de corrupção que envolve até o judiciário e a política?
E se eu dissesse que Mariel está para nossa sociedade industrial assim como Lampião está para a sociedade rural nordestina? Exatamente. Que Mariel era uma espécie de Lampião do asfalto e que poderia merecer aquela classificação de E. J. Hobsbawm, de “bandido nacional”? Não há dúvida. Se tivesse nascido há uns 200 anos na Catalunha ou na Sicília seria um “salteador de estradas” e viveria de “atividades rapinantes”. Ou se fosse inglês seria um pirata prestando serviços à coroa inglesa e ao comércio marítimo internacional.
Vivendo, contudo, no Rio ele faz parte de um enredo tipo “samba do crioulo doido” onde jogo do bicho, esquadrão da morte e corrupção envolvendo judiciário, polícia e política se misturam. Mas a confusão do enredo da Escola de Samba Unidos do Brasil só existe para os menos avisados. Há uma grande coerência nisto tudo que está acontecendo. Mas isto, a gente só pode entender se operar um deslocamento na análise dos fatos. Quer dizer: assim como a renúncia de Jânio Quadros pertence muito mais à psicanálise do que à política propriamente dita, o assassinato de Mariel e os quiproquós em torna da repressão do jogo do bicho não dizem respeito somente à Secretaria de Segurança. Na verdade, são um dos capítulos mais apaixonados da sociologia e da antropologia brasileiras.
Bandido também tem história. – No seu livro Os Bandidos, Hobsbawm dá um significado social e histórico aos bandidos nas diversas sociedades. Ele estuda o “ladrão nobre” tipo Hobin Hood, “o vingador”, tipo Lampião, e os guerrilheiros haidkus da península Balcânica. Estudando a máfia, os bandidos chineses e russos Hobsbawm também abre um espaço considerável para Lampião, com referência ao Padrinho Cícero e a outro cangaceiro, Antônio Silvino.
Está lá registrada a contribuição brasileira à história universal do banditismo. Um registro incompleto, é verdade. É urgente que alguém escreva a história da marginalidade brasileira. Urgentíssimo que se componha a História dos Bandidos do Brasil, que nas universidades deve ser estudada ao lado da História das Ideias no Brasil de João Cruz Costa, História Econômica do Brasil de Caio Prado ou da História Concisa da Literatura Brasileira de Alfredo Bosi. A história de um povo é também a história de seus bandidos.
Não estou brincando não. Nem blasfemando. Recentemente alguns historiadores franceses criaram o que chama de “história nova”: uma maneira de estudar a história do país ou das comunidades não através das datas, revoluções e personagens, mas um modo de estudar alguns aspectos antes considerados desprezíveis e que, no entanto, informam mais sobre a estrutura ideológica da comunidade que esses compêndios de história clássica. No Brasil, por exemplo, enquanto não se estudar devidamente o jogo do bicho, o futebol, a macumba e o carnaval, pouco se conhecerá dessa coisa chamada cultura carioca.
Nenhum bandido surge aleatoriamente. Cada sociedade tem o bandido que merece. E a história que vem de Lampião a Mariel é a ilustração da passagem de um universo rural feudal para uma sociedade urbana e industrial que, no entanto, não eliminou seus problemas estruturais. E assim como em literatura a gente pode organizar o estudo dos escritores em diversas gerações estudando os substratos históricos de cada grupo através de títulos como “O Modernismo de 1922”, “A geração 45”, “As vanguardas de 1956”, também na história social do crime em nosso país se poderia disciplinar tal coisa através das gerações.
Por que não falar por exemplo de Lampião e a geração de 30? E que tal Zé da Ilha, Sete Dedos, Cara de Cavalo e a geração dos anos 40 e 50? E por que não Tião Medonho e Mineirinho e a geração 60? É fundamental analisar Lúcio Flávio e a geração 70. E, finalmente, Mariel, o “homem de ouro” da geração 80. Assunto que dá direito a um subtítulo: A morte de Mariel e a abertura política do Governo Figueiredo.
Alguém pode dizer: esses bandidos não são “autores”, são “personagens”. Engano. São mais concretos que dois terços da literatura brasileira. E mais: são símbolos. Eles dramatizam, ritualizam e exemplificam uma série de conflitos latentes de nossa sociedade. São símbolos vivos. Deles escorre sangue.
Nem bandido nem polícia – muitos se lembram nos anos 70, quando Lúcio Flávio explodiu nessa frase: “Polícia é polícia e bandido é bandido.” Referia-se a sua exaustão diante da figura ambígua de Mariel. Estava cansado de ter que dividir o roubo continuamente com a polícia.
Pois bem. Lúcio Flávio errou. Muito mais certo está o general Muniz, secretário de Segurança, quando reconhece que o jogo do bicho está aí e o jeito é legalizá-lo, como forma de controlar e eliminar a corrupção. Certamente o coronel Cerqueira partilha muito mais da teoria de Lúcio Flávio. Mas quem está com a razão é o general Muniz. Porque do lado dele estão não só a história e a sociologia como a própria realidade brasileira.
Polícia não é polícia e bandido não é bandido. Tal diferença só existe nos fichários dos órgãos de repressão. Exemplo primeiro: durante a Segunda Guerra Mundial o Exército americano através do FBI firmou um acordo com a máfia siciliana para o desembarque das tropas aliadas na Itália. Como Mussolini havia engrossado contra a máfia, esta era sua inimiga. Os aliados não tiveram dúvida: guerra é guerra, e, por consequência, o mafioso, de repente, passou a ser herói.
Segundo exemplo: em 1926 a Coluna Prestes andava solta pelo interior do país infernando a vida das polícias estaduais e o Exército não conseguia deter os revoltosos. Diante disto o Governo resolve convocar o Padrinho Cícero para ajudá-lo. Exatamente. O famoso messias cearense, político de enorme intuição, que mantinha ótimas relações com Lampião, resolveu chamar esse “bandido nacional” para lhe propor, em nome do Governo, que fosse dar combate à Coluna Prestes.
Lampião chegou a se entusiasmar com o projeto e além dos armamentos recebeu a patente de capitão dada pelo próprio Padrinho Cícero. Talvez sonhasse em mudar de lado, ajeitar sua vida junto ao Poder. Advertido, porém, por um “coronel” seu amigo, Lampião deu uma contramarcha. Tivesse ido em frente, vejam só, e a história do comunismo e das esquerdas brasileiras teria sido outra.
Existe, portanto, um sistema de trocas entre a legalidade e crime. E esses papéis às vezes se misturam. A PM carioca continuamente expulsa de seus quadros alguns criminosos. Já na Rússia do Czar era diferente. Quando o indivíduo ia ser soldado ele morria para o mundo. Seu compromisso era perpétuo. Por isto, diz Hobsbawm, “seus parentes liam o serviço fúnebre ao se despedirem deles à saída da aldeia. Homens que voltam de longe, sem amo nem terra, representam um perigo para a estabilidade da hierarquia social. Os ex-militares, tal como os desertores, constituem matéria-prima natural para engrossar as fileiras do banditismo”.
Mas do Exército, pode sair também o bandido-revolucionário, como Prestes e Lamarca. E revolução e criminalidade podem também se encontrar. Quem leu o primeiro livro de Fernando Gabeira encontrou lá uma passagem onde narra seu encontro com Lúcio Flávio quando ambos saíam presos, num barco, da Ilha Grande: “Na época era o único preso político que estava viajando. No mesmo porão iam uns 15 presos comuns. Um deles, que tinha um rádio de pilha na mão, aproximou-se de mim. Parecia descendente de imigrante: meio louro, de olhos claros. Perguntou-me se queria ouvir um pouco de rádio e começou a conversar. Sabia quem eu era e queria conhecer a minha história. Rapidamente consegui me desvencilhar de minha história e fazer com que me contasse a sua. Era Lúcio Flávio Vilar Lírio, e, no cabo de algumas horas de viagem, propunha que fugíssemos juntos quando chegássemos ao PP, na Milton Dias Moreira.”
Abertura e jogo do bicho. No Brasil há várias saídas para a revolta: a revolucionária (guerrilha dos anos 60 e 70), o banditismo (Lampião), o messianismo (Antônio Conselheiro) e, finalmente, a malandragem. O jogo do bicho trabalha com o banditismo e a malandragem. Os bicheiros não são uma comunidade revolucionária. Como disse Castor de Andrade, eles estão sempre em cima do muro. No que, aliás, se assemelham ao clássico político pessedista. E tanto não têm uma intenção revolucionária, que financiam o carnaval que, tecnicamente, é a antirrevolução, quando não seja uma rebelião erótica instantânea, após a qual tudo continua como dantes no quartel de Abrantes.
Os jornais recentemente deram destaque à figura do capitão Ailton Guimarães, dizendo que atuou no DOI-CODI durante os anos brabos da repressão. Segundo essas versões ele teria passado da repressão para a contravenção, sendo hoje um dos grandes bicheiros do Estado. Ora, se existe uma relação entre revolução e banditismo, outra relação existe entre banditismo e a repressão. Como não lembrar os inúmeros casos em que as forças da repressão pilharam as casas das vítimas, submeteram-nas a sevícias e abusos sexuais numa atividade semelhante à rapina dos bandos primitivos? Como não lembrar do delegado Fleury, para quem Frei Tito e o pior dos criminosos eram a mesma coisa?
Se a abertura política visa desmobilizar essa “indústria do anticomunismo” é preciso desmobilizar também a incrível indústria da corrupção montada em torno do jogo do bicho. Se a abertura possibilitou que os marginais de nossa política (guerrilheiros, banidos, cassados) ingressassem de novo na legalidade é necessário agora legalizar esse imenso universo de outros tantos marginais, que no Rio dizem ser 300 mil. A democracia é exatamente o regime que luta para que não haja marginalizações. É já é tempo de acabar com a indústria da marginalidade não só política e ideológica, mas a marginalidade social que cria as falsas diferenças entre bandido e mocinho. Depois dos anos 60 aprendemos todos que é falso esse mundo de oposições entre direita e esquerda, capitalismo e comunismo, o certo e o errado. Aliás, entre nós é preciso acabar com isto também de que Governo é Governo e oposição é oposição. É necessário construir um sistema menos reacionário que este.
Bandido não é bandido e mocinho não é mocinho. Cristo, considerado marginal pelo Império Romano, foi crucificado entre dois bandidos, e ainda levou um deles para o céu. Nem sempre bandido é bandido e nem sempre polícia é polícia. Tudo depende das testemunhas e de quem é o escrivão de plantão na delegacia da História.
Jornal do
Brasil – 08/11/1981
Material do acervo do pesquisador5 do cangaço Antônio Corrêa Sobrinho
http://blogdomendesemendes.blogspot.com
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