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sábado, 2 de maio de 2020

AMIGOS!


Por Antônio Corrêa Sobrinho

AMIGOS,

Leiam o texto abaixo, MARTE, do livro SENSAÇÕES EXTRAORDINÁRIAS, de um dos grandes nomes das letras brasileiras, o sergipano GILBERTO AMADO. Obra escrita quando este literato tinha apenas vinte e poucos anos de idade, tempo em que escreveu este e muitos outros dos seus belos artigos.

GILBERTO AMADO é imortal da Academia Brasileira de Letras.



MARTE
(A Abner Mourão)

Marte, o meu cão querido, guarda das minhas roseiras, era um galhardo adolescente, ágil, fresco, elástico, senhor do salto e da carreira, tendo asas de mercúrio nos jarretes e o ímpeto do raio na musculatura.

Como ele era belo! Muito branco, macio de pelo, o focinho agudo, clássico nos escavadores de toca, as pernas rijas e trêmulas, tão ágeis que pareciam conter nos tendões disparadas latentes, ele partia à conquista de uma pedra que eu atirava no jardim, sobre as árvores, com uma violência de arremesso prodigiosa! A distância desaparecia de súbito para ele, e o que mais me seduzia na sua carreira era a graça que ele tinha ao pular – instantânea beleza de escultura palpitante, criando vertiginosamente no espaço, em ondulações e tresvolteios, uma vibração aérea de brancura plástica. Com asas, seria um pequeno dragão mitológico.

Ele partia, à procura da pedra, no extremo do jardim, e voltava, logo, consternado.

Eu lia então nos seus olhos todo o desespero dos transplantados. Ele dizia: Eu nasci nas planícies geladas do norte, nas campinas áridas, povoadas de caças.

O meu salto foi feito para transpor os córregos profundos, os valados tenebrosos. Os meus pais foram grandes matadores de raposa das caçadas reais. Eu tenho ainda nos ouvidos o ressoo das tormentas solarengas. Os meus dentes se afeiçoaram à carne fremente de inimigos ferozes.

Tenho a saudade da carnagem e da violência. E o jovem hércules mostrava-me a exiguidade do jardim provinciano, como seu muro negro ao fundo, todo eriçado de vidros, com os seus carneiros familiares, trêmulos de roseiras, com a sua delicadeza pacífica e a sua graciosa trivialidade, onde apenas subiam como emblemas de força um oitizeiro e dois sapotizeiros, carregados de frutos.

A tristeza dos inadaptáveis transluzia-lhe então nos olhos duros e foscos de setentrional. Como o desgraçava essa vulgaridade de terreiro, esse comer em mão de criados, essa vida pacífica e descorada, sem lances de guerra, sem proeza brilhante, sem perigo! Viver sem perigo e sem glória, eis a maior desventura para um ser da minha raça gloriosa, parecia dizer-me ele na sua linguagem angustiada. A sua infância correu triste na luta com os espaços limitados; e era de ver como a sua imaginação se engenhava em criar de improviso, no terreiro, o cenário das caçadas; correr, pular, ganir estridulamente o seu grito ardido de guerra, clamar à matilha imaginária o apelo da coragem contagiosa, e gritar: vamos! cerca! corre! agarra!, na emulação ilusória da batida evocada, recompondo em torno de um sapoti que caia da árvore toda a sabedoria da estratégia hereditária que, tão de instinto nele, nem precisava da experiência para se mostrar maravilhosamente hábil.

Um dos maiores prazeres das minhas tardes de província, era assistir à encenação dessas escaramuças fantásticas e admirar o gênio desse pobre Aníbal fulvo na melancolia da sua inutilidade.

Era uma obsessão. Ele tinha a simplicidade de todos os temperamentos guerreiros e a monomania do seu destino. Era casto como Parsifal. À grade do jardim, vinham farejar, admiradas, fêmeas guapas, seduzidas de longe pela louçania do Herói. Nesse tempo, ele ostentava uma formosura de jovem dragão carrancudo. Sua fisionomia era grave e dura e todo ele, absorvido na imaginação do seu destino trasviado, nem dava olhos às dengues molezas que as cadelas lascivas exibiam através da grade. Elas vinham e sucediam-se, claras, negras, rajadas, grandes e membrudas como dinamarquesas; pequenitas e nervosas como portuguesas, de todas as formas, de todas as raças, de todos os aspectos. A cadela luxuosa e perfumada dos Nogueira (família rica da vizinhança), muito gorda e polpuda, viciosa como uma matrona lúbrica, também veio, e vinham vagabundas ainda fuscas da poeira das estradas, olhos ardidos da miséria, a pele sobre os ossos, improvisando requebros na sua graça extinta; plebeias e burguesas vulgares mas ardentes; e das casas fidalgas da Madalena surgiam cadelas novas, de raça, algumas da sua estirpe, que passavam também horas e horas defronte do jardim, a considerarem, úmidas, o herói desatento. Uma delas, nova, delgada, com um ventre esguio de areia, os olhos muito claros, silhueta longa e contemplativa, muitas horas se deteve, durante dias, na calçada, enamoradamente, mandando para o jardim, onde ele compunha os seus traçados de guerra, olhares de amor. Logo que ela descobriu o herói e se enamorou dele, baniu a dentadas, da frente do jardim, a turba desejosa. A cadela dos Nogueira, com a sua carne mole de velhusca artrítica, envenenada nas sonolências das digestões sedentárias, saiu ferida, gritando, e escapou de morrer; outras, escarmentadas, passavam de longe, lançando olhares tímidos, nos momentos em que não estava a cadela esgalgada. Esta queria-o só para si e a sua paixão se desvairou num instante em alucinação romântica. Longas horas, ela pascia absorta, taciturna, os olhos estendidos para a grade, babando, nessa ardente tristeza cheia de silêncio e de febre do desejo sensual insatisfeito.

Por momentos, Marte se aproximava da grade, nos lazeres da sua fadigosa obsessão de caçadas e guerrilhas. Distendia o olhar sobre o pilar e via-a do outro lado, tonta de volúpia, fina e esbelta, criando seduções no seu corpo flexível e voluptuoso como o de uma dançarina. Eram variadas e interessantíssimas as invenções da sua coquetterie. Torcia-se em atitudes lânguidas; um frêmito inesperado sacudia-a toda, um longo espreguiçamento dava ao seu corpo uma ondulação amortecida em que todas as experiências do seu desejo se exprimiam. Crendo que na carreira se desenvolveriam melhor os seus encantos, ei-la a correr na calçada aos altos, ágil, leve, garrida, luminosa. Admirável de graça essa cena inocente de comédia humana! Vendo os esforços dessa pobre cadela enamorada, eu lamentei que os cachorros não tivessem o instinto do ornato que tanto sobreleva na irresistibilidade das mulheres. Que combinações de vestimenta e de arrebiques não criaria ela para suscitar centelhas no coração rebelde?

Marte olhava-a com o prazer com que os olhos mais frios pousam nas formas graciosas e belas. Mas a sua índole casta nem de longe se apercebia dos ardores que a enlouqueciam; ele não suspeitava que era o Don Juan fatídica do bairro, Don Juan inerte, alheio ao amor, mas cuja presença tácita era bastante para acender furores e delírios.

Um dia, o portão tendo ficado aberto, a cadela entrou no jardim e se ofereceu. Pôs na sedução toda a sabedoria do seu sexo e todas as sugestões tocantes de um amor verdadeiro. O herói, no exclusivismo da sua preocupação, acolheu-a a princípio, com benevolência, na esperança de um companheiro para os seus tentames belicosos.

Mas, logo que surpreendeu no olhar da fêmea e nos seus meneios lascivos a solicitação do desejo, envolveu-se duramente na sua castidade de Parsifal. Senti, nesse momento, nos seus olhos uma piedade desdenhosa, misturada de repulsão, por essas baixas tristezas da carne.

Era o gênio da ação, era o predestinado à vida bárbara a que o dispunham os seus músculos e os seus nervos tensos de vida e de juventude. De tal ordem, mantinha ele essa fidelidade ao seu temperamento que nunca o surpreendi, mesmo em noites sonoras de luar, na atitude poética dos cães românticos. Nenhuma vez o admirei em postura lírica olhando as nuvens no céu esplêndido.

E, com as narinas sôfregas, a cabeça levantada, o olhar arrebatado para longe, saltando, pulando, correndo, com alternativas de alvoroço ingênuo, batalhas fictícias, atroadas, latidos, desesperados, doido, ele estrangulava no jardim estreito uma verdadeira tempestade de energia inútil.

Mas, um ladrão das roseiras, que há muito rondava, cobiçoso, as minhas maravilhosas Paul Neron, pôs, uma tarde, estricnina num bolo de carne, e atirou-o ao jardim.

À noite, ouvi um granir angustioso, e quando desci, apreensivo, encontrei o pobre Marte com os olhos vidrados na paresia instantânea do veneno, todo o corpo tomado de um temor convulso, doloroso de ver como uma agonia humana.

Subi consternado, e no dia seguinte, encontrei-o rígido, junto de um canteiro, coberto de pétalas que caíram da roseira com o orvalho da manhã.

... Assim acabou uma das mais dolorosas vidas das que tenho estudado ultimamente.

Fonte: Jornal o PAIZ (RJ) - 25/12/1913
Gilberto de Lima Azevedo Sousa Ferreira Amado de Faria OSE (Estância, 7 de maio de 1887 — Rio de Janeiro, 27 de agosto de 1969) foi um advogado, diplomata, jurisconsulto, escritor, jornalista e político brasileiro.

Foi membro da Academia Brasileira de Letras, eleito em 1963. Vem de uma família de escritores, na qual se incluem seus irmãos Genolino, Gildásio, e Gilson, além de seus primos, os irmãos James e Jorge Amado. Era também cunhado do jornalista pernambucano Tomé Gibson, sendo casado com Alice do Rego Barros Gibson. Era pai de Véra Gibson-Amado, mais conhecida como Véra Clouzot, atriz do cinema francês.

Fez os estudos primários em Itaporanga, também no interior do Sergipe. Depois estudou Farmácia na Bahia e diplomou-se pela Faculdade de Direito do Recife. (Wikipédia)


http://blogdomendesemendes.blogspot.com

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