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quarta-feira, 22 de março de 2017

CASCA DE PAU

*Rangel Alves da Costa

Zezim Bonome, famoso bebedor das ribeiras sertanejas, já cantava ao pé do balcão: Bebida pede um motivo e sem cachaça não vivo. Caço um motivo na hora, da saudade que arvora, da dor que não vai embora. Seja motivo verdadeiro ou não, o que importa é a intenção. E depois do copo virado outro motivo é achado e um novo copo emborcado. Então bote mais uma aí que eu tô é apaixonado.

Já Pé de Cana, cujo apelido já dizia bem o que mais gostava de fazer, chegava chorando no botequim pra todo mundo perguntar o que estava se passando e logo ele dizia: Joaninha das Cabaças me traiu, e veja que triste sina a minha. Pra não morrer de desgosto vim aqui pedi um lenço aos amigos. Mas como ninguém usa lenço, então prefiro uma relepada boa, uma cachaça de copo cheio que é pra ver se diminui a desdita da maldita.

Famosa era a toada ecoada por Zé das Quebranças toda vez que entrava no Gineta, um famoso botequim do passado sertanejo. Descendo o chapéu de couro no balcão antigo, logo entoava: Escute aqui ô Seu Né essa mágoa sertaneja. Dia e noite na peleja nesse sol que não troveja, tudo causa um sofrer que só me resta beber pra na vida ter prazer. Desce um copo bem cheinho que esse cabra tá doidinho e não quer enlouquecer.

E assim os copos são cheios, virados e revirados por esse mundão afora. Cada um chegando ao pé do balcão com seu motivo de beberança. Seja na alegria ou na tristeza, pelo prazer em beber ou pelo motivo da hora, a verdade é que a branquinha não deixa de ser virada. Então, o cabra chega ao pé do balcão e diz a escolha ou aponta o dedo. O vendeirim volta de litro à mão e despeja na medida. E o copo de pinga todo mundo já sabe como é: fundo encardido e o resto amarelado.

O copo é o que menos importa, pois é o sabor da pinga que mais interessa. Mas existem cachaças e cachaças, pinga de todo tipo. Tem gente que tanto faz beber uma destilada ou uma artesanal, tanto faz beber aguardente de rótulo como virar uma lapada de cachaça com raiz de pau. Gente assim não sabe nem beber nem escolher. O bom bebedor é fiel a uma marca ou tipo de bebida, nunca mistura no pé de balcão ou diz que tanto faz uma como outra.


O sertanejo, por exemplo, só bebe cachaça de rótulo se não houver a casca de pau, preparada no esmero. E quando se fala em preparo, logo se tem a pinga legítima, branquinha de engenho, despejada em litro e misturada ao que existe na vegetação ao redor. Casca de pau, raiz, folha, fruto, tudo serve como mistura. Mas a aceitação é maior quando a planta é conhecida por todos, assim como angico, bonome, aroeira, hortelã, quixabeira, umburana, cravo, cidreira, e muito mais.

Além disso, engana-se quem imaginar que beber cachaça matuta é apenas o ato de virar a dose goela adentro e acabou. Do mesmo modo, comete injustificável equívoco aquele que disser que a beberança da pinga do mato é igual a outra qualquer. A sabedoria sertaneja já disse que a cachaça matuta é tanto remédio como revigorante, é tanto expulsadeira de mazelas como chamadeira de apetite. Até mesmo os mais velhos dão uma bicada quando querem afoguear.

No mundo matuto, muitos são aqueles que chegam ao pé do balcão batendo na barriga e dizendo que ela anda meio roncadeira, meio desajeitada. Então pede, na dose, o remédio certo. Outros se previnem das consequências de uma comida pesada ou gordurosa com uma cachaça preventiva. Já outros até inventam desculpas para ter o copo cheio perto dos beiços. E se há umbu verde ao lado, perna de preá, caju ou qualquer frutinha azedada, então a dose se torna em beberança.

Como a cachaça com raiz, folha, semente, lasca ou fruto do mato, não deve ser vista como aquela destilada de fabricação em lote, o mesmo se diga com relação ao jeito de beber, ao modo de sorver cada tiquinho da branquinha de engenho misturado ao sabor da planta escolhida. Pinga de rótulo se bebe aos poucos, enquanto a casca de pau é virada de vez, mas sem se esquecer de oferecer um tiquinho ao santo beberrão lá embaixo.

Muitos podem ser os nomes para a mesma cachaça depois de misturada: casca de pau, raiz de pau, cachaça de mato, cachaça com casca ou raiz de pau. Nas prateleiras ou nos cantos dos velhos balcões, os sortimentos para a escolha perfeita. E muitas são as opções para a mistura da cachaça. Alguns vendeirins misturam a casca ou raiz com aguardente branca destilada. Contudo, a verdadeira cachaça matuta só presta com a pinga nova de engenho, branquinha e pura, ainda com o gosto da cana.

Conheço por que já bebi. E muito. Hoje troquei o bar por sorveteria, como diz a música.

Escritor
Membro da Academia de Letras de Aracaju
blograngel-sertao.blogspot.com


 blogdomendesemendes.blogspot.com.br

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