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terça-feira, 26 de junho de 2018

A BAGACEIRA


*Rangel Alves da Costa


Bem que eu poderia tratar do famoso “A Bagaceira”, obra-prima da literatura regionalista brasileira e escrita por José Américo de Almeida, publicada em 1928. Ou mesmo sobre “A Bagaçada”, cordel-primor da literatura popular nordestina, tão prometido e até declamado pelo seu autor, o Mestre Vitorino das Quixabeiras, mas que nunca foi transformado em livreto. E não, segundo ele, por que não haveria papel no mundo que desse para imprimir sua obra disputada por todos, e até no tapa.
Em “Bagaceira”, o José Américo de Almeida situa o engenho como o cosmos de uma realidade social brutal e apavorante, onde chama para o seu contexto não só o poderio senhorial como a pobreza e a miserabilidade dos brejeiros e sertanejos. E o termo bagaceira para identificar o local onde, nos engenhos, são juntados os bagaços, os restos da moagem. Tudo o que não presta mais se torna em bagaceira. No caso específico do romance enquanto crítica social, a bagaceira se traduz nos restos humanos e suas desvalias. Quanto ao conteúdo de “A Bagaçada”, é melhor deixar pra lá.
Talvez seja mesmo melhor deixar pra lá por que muita gente já colocou as tripas pra fora perante o descrito em “A Bagaçada”. Somente para dar uma noção, Vitorino das Quixabeiras, seu autor cordelista, certamente que exagerou no ponto ao transformar seu folhetim numa inversão da sociedade nordestina então predominante. Desqualificou totalmente o poderio coronelista, chafurdou a força política e o mando, e ergue no patamar social, como personagens de uma casta maior, os escravizados dos canaviais, os pés descalços pelas vielas, as prostitutas e as rampeiras do cais. Neste aspecto, o bagaço era refeito e valorizado em detrimento do sumo social poderoso.
Pois bem. Bagaço, termo que origina a bagaceira, é o nome que se dá aos restos depois de moídos e espremidos. Diz-se do resultado do processo de compressão da matéria-prima, onde o refugo serve como subproduto para reaproveitamento e novas utilidades. Por consequência, a bagaceira pode ser tida não só como o entulhamento do bagaço como aquilo que está em desordem, na baderna, na esculhambação. Ou ainda o que está abaixo de outros níveis na camada social, considerando-se a riqueza e a pobreza.
No sentido usado por José Américo de Almeida, a bagaceira possui o duplo sentido de ser o resto da cana depois de moída e também de ser a camada social submetida ao império do senhor do engenho e por este tratada como coisa que outra valia não tem senão à escravização ao trabalho, ao mando e ao poder. Astuto, Vitorino das Quixabeiras dizia ainda que a sua bagaçada servia para demonstrar como a sociedade se escraviza por conta própria, vez que em constante desordem e defendendo posições sempre discordantes ou contrastantes. Bastava valorizar mais quem realmente deveria ser valorizado e tudo estaria resolvido.
Contudo, a realidade atual demonstra que um novo engenho foi se formando e outra coisa não produz senão bagaceira. Não se fala mais no sumo da cana ou, no caso específico, naquilo que é de melhor produzido, mas tão somente nos seus entulhos. Engenho que bem poderia se chamar de política, de poder ou de governança, o mesmo que ao invés de produzir o melhor para a sociedade vai se achando no direito de apenas amontoar a bagaceira no povo. É este povo que vai chafurdando de tudo o que é ruim e que continuamente vai sendo lançado pela política e pelos políticos.
Ora, as máquinas do engenho continuam em pleno vapor, continuamente trabalhando perante os seus objetivos. Mas o que é construído senão bagaço, bagaceira, restos, entulhos? O sumo da cana, ou o que de melhor possam fruir e usufruir logo vai se tornando benesses de poucos. Mas a bagaçada é lançada ao povo, é jogada bem no seio social mais carente e necessitado. Ao invés de colher um pouco de sua luta, pois no povo o sacrifício para alimentar as riquezas, o que se tem é uma sociedade alienada dos frutos por ela mesma produzida. A esta somente o bagaço, tudo o que não preste e não possui uma digna serventia.
No engenho do poder e do mando, a bagaceira, pois, não é outra senão o povo. Não somente visto como imprestável, o povo ainda tem que receber sobre si todo o fardo do que é contra si produzido pelas governanças e pela política. Servindo como verdadeiro lixão, a sociedade tem de acolher os amontoados de dores e sacrifícios lançados daquele voraz e impiedoso engenho. Vive na bagaceira, é a bagaceira, é sempre tratado como bagaço. Não importa que ali esteja o homem, o trabalhador, pois ao poder importa somente que ele vive amontoado em seus próprios restos.
Quem possui mais valia em meio à bagaceira, será o homem ou será um bicho de lixo qualquer? Tanto faz, segundo diz aquele do pedestal. E afirma ainda que o homem convive com segurança, com educação, com saúde, com qualidade de vida. Esquece apenas que tudo isso, no Brasil, também não passa de bagaceira.

Escritor
blograngel-sertao.blogspot.com

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