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terça-feira, 16 de outubro de 2018

A MORTE DE SINHÁ DAGOMÉLIA

*Rangel Alves da Costa

Ninguém sabe ao certo a idade da velha quando ela deixou de acender o cachimbo e foi chamejar lá no céu. Aquele cheiro forte do cachimbo sendo aceso havia cessado de vez. Fogo na ponta de pau sem mais valia para o fumaçar.
Mesmo em vida, e até bem antes de morrer, difícil demais era imaginar quantos anos poderia ter aquele rosto já petrificado de tanta existência. Já não envelhecia nem murchava mais, apenas existia em si mesma e em suas profundas marcas.
Sinhá Dagomélia, mas será que alguém chorou por ela quando se findou dessa vida? Será que pessoa desse mundo teve a piedade de rezar uma ladainha e acender vela perante a esteira servindo como caixão e por cima do chão? Será que houve caixão defuntesco?
Dizem que um gato chorou. Dizem que o barro batido da parede chorou. Dizem que a velha andorinha da cumeeira também chorou. E o vento soprava choroso. As folhagens pareciam soluçar. Mas será que só?
Uma história muito triste de contar. E só vou contar por que me achei no dever de não deixar apagada de vez a memória de Sinhá Dagomélia. Eu mesmo já passei pela sua porta, bati e matei minha sede. Ainda mordi um pedaço de cocada de frade.
Já viúva desde muito, sempre esquecida por aqueles que fez vir ao mundo, levava seus dias entre as recordações de uma cadeira de balanço rente à janela, a solidão de seu barraco e o vazio de seu quintal.
Apenas um neto, já homem feito, de vez em quando aparecia por lá para saber se ela estava precisando de alguma coisa. Mas sempre voltava levando parte da miúda aposentadoria que a avó recebia. De resto, era uma vida de silêncio e de solidão.


Não tanto silêncio assim, pois quem passava pela janela sempre dizia tê-la ouvida conversando com o seu falecido: “Venha me buscar logo Totonho, venha...”. E repetia e repetia. “Totonho, meu Totonho, venha logo me buscar...”.
Dos olhos desciam lágrimas que faziam o velho rosto brilhar perante a luz entrando pela janela. Mas talvez ela chorasse mais por dentro do que por fora. Assim acontece quando a fonte de dentro é maior que o barreiro de fora.
Um dia, já ao entardecer e depois de repetir mais de dez vezes o pedido ao falecido, de repente ouviu um galope ao longe, e logo o cavalo chegando à sua porta. “Estou pronta, Totonho. Estou pronta!”. A ilusão dos adeuses.
Ali estava e ali mesmo ficou, com apenas a cadeira balançando o corpo sem vida. E balançava e balançava, lentamente balançava. A velha parecia sorrir pela partida. Já tudo no breu da noite, ainda assim dois candeeiros se acenderam sozinhos.
Uma flor foi trazida pelo açoite do vento e colocada sobre o seu peito. O silêncio parecia orar. A porta se abriu e um pedaço de luz se fez de manto àquela morte. A sala se encheu de folhagens tristes. Os bichos do mato chegaram para o último adeus. Mas coisa mais estranha ainda aconteceu.
Ao amanhecer, de repente o corpo da velha havia sumido. Até hoje ninguém sabe dizer o que realmente aconteceu. Mas dizem que um cavalo partiu da porta em disparada e foi sumindo pela estrada.

Escritor
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